
A receptividade mineira com prosa amig�vel, p�es de queijo e caf� s�o tra�os culturais que nem o rompimento da Barragem 1 da Mina C�rrego do Feij�o conseguiram eliminar de Brumadinho, trag�dia que completa um ano no s�bado, dia 25. Mas a avalanche de lama e rejeitos de mais de 10 milh�es de metros c�bicos (m3) que resultou na morte de 270 pessoas, sendo 11 desaparecidas, acrescentou � realidade da popula��o atingida caixas e mais caixas de medicamentos para a sa�de mental, debilitando radicalmente seu comportamento.
“Sem o medicamento, a gente n�o dorme. Com ele, ficamos vagando, como se f�ssemos zumbis. Mas, pelo menos, n�o volta aquilo tudo que a gente passou de novo (tens�o e dificuldades ap�s o rompimento da barragem). Miseric�rdia”, conta a dona de casa Marli Rodrigues dos Santos Souza, de 52 anos, moradora do Bairro Parque da Cachoeira, localidade que foi dilacerada pela inunda��o de lama, pedras e res�duos de min�rio de ferro ap�s a ruptura do barramento da mineradora Vale.

"Custava a parar de chorar"
A dona de casa estava no tanque lavando as roupas da fam�lia no momento do rompimento da barragem e dos fundos da casa ouviu o ru�do, que compara ao de uma explos�o. Das ruas do bairro come�ou a escutar carros buzinando e gente gritando que a barragem tinha rompido e que era para que todos fugissem. “Larguei tudo do jeito que estava, peguei meu carro e corri para o lugar mais alto que tinha. Passei o dia ali torrando debaixo do sol quente, ligando para Deus e o mundo para saber not�cias das pessoas. Rastrearam o celular do meu genro numa mata. Mas quando o acharam, j� estava morto”, lembra.

Da� em diante, a rotina de atendimentos m�dicos, psicol�gicos e com assistentes sociais n�o parou mais. “Custava a parar de chorar e conseguir dormir. A�, sonhava que tinha lama entrando para dentro de casa pelas janelas, debaixo da porta, e eu ficando sem ar. Acordava e n�o dormia mais. Com o rem�dio, pelo menos me esque�o disso”, afirma a dona de casa.
De acordo com o secret�rio municipal de Sa�de de Brumadinho, Junio Ara�jo Alves, o aumento de atendimentos da �rea de sa�de mental tem rela��o direta com o rompimento da barragem e mudou a rotina do munic�pio. “Essa trag�dia mexeu com o emocional das pessoas e com seu comportamento, desencadeando agressividade, viol�ncia, ang�stia e uma s�rie de quest�es que trazem o adoecimento mental”, afirma.

Antes do rompimento, o administrador da pasta afirma que o atendimento era equilibrado com as demandas. “Foi necess�rio contratar para atender as pessoas no p�s-rompimento, que nos trouxe desequil�brio, pois as pessoas est�o doentes”, diz. O n�mero de funcion�rios da sa�de aumentou 160% e o de psic�logos 33% para fazer frente �s necessidades crescentes.
Os custos desses encargos deveriam ser arcados pela Vale, depois da assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) intermediado pelo Minist�rio P�blico. “Mas essa � uma rela��o bastante dif�cil, pois a empresa paga apenas em parcelas, tudo precisa passar pela auditoria interna dela, que est� habituada a lidar com empresas privadas e n�o entende os procedimentos p�blicos”, afirma o secret�rio. Segundo Alves, o governo estadual auxiliou apenas com apoio t�cnico-cient�fico e o federal com o mesmo tipo de ajuda acrescida de recursos financeiros.

O secret�rio conta que � um atendimento complexo, pois muitos pacientes evitam os servi�os de sa�de e sofrem sozinhos ou em fam�lia. “Criamos um contingente de pessoal especializado para identificar e acolher pacientes de sa�de mental dentro da popula��o. Capacitamos o pessoal das unidades b�sicas de sa�de e equipes de sa�de da fam�lia para que os identifiquem. H� tamb�m os servi�os de portas abertas para os casos agudos, nos quais as pessoas chegam de forma espont�nea ou levadas por familiares quando est�o numa crise.
Mais de 6 mil atendimentos
”Tr�s equipes credenciadas no Minist�rio da Sa�de em sa�de mental e compostas por psiquiatras, psic�logos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais foram institu�das para treinar, pelo menos duas vezes por semana, os profissionais das unidades de sa�de para esse acolhimento aos pacientes. “Do rompimento da barragem pra c�, fizeram mais de 6 mil atendimentos”, calcula o secret�rio.
Bra�os, antebra�os, pesco�o, costas, barriga e pernas co�am tanto que o al�vio s� vem quando a comerciante Maria Marques dos Santos, de 64 anos, crava suas unhas na pele e chega a abrir ferimentos nela. Dona de um dos �nicos restaurantes ainda em funcionamento no Bairro C�rrego do Feij�o, em Brumadinho, a mulher achava que as irrita��es cut�neas se deviam a algo presente na �gua fornecida na regi�o ap�s o rompimento da barragem B1 da Mineradora Vale.
Contudo, assim como Maria, v�rias pessoas daquela comunidade e de outras �reas do munic�pio diretamente atingidas pelo desastre come�aram a apresentar rea��es adversas devido ao estresse p�s-traum�tico que a experi�ncia trouxe, levando-os a desenvolver depress�o e ansiedade. Muitos ali conheciam ou eram parentes dos 270 mortos pela trag�dia, sendo que 11 ainda n�o tiveram seus corpos encontrados ou reconhecidos para receber um funeral adequado.
"Jesus Cristo, � uma coceira braba demais. A gente co�a com for�a para ver se passa e n�o passa de jeito nenhum. Estamos ficando doentes aqui no C�rrego do Feij�o. Precisamos que algu�m nos ajude e olhe por n�s aqui. J� tentei de tudo, tomar banho para ver se passa, mas tem vez que de tanto co�ar a pele se enche de bolhas que depois abrem e ficam feridas iguais �s de queimaduras", descreve a comerciante Maria Marques. Ela conta que devido a essa condi��o, precisa ir frequentemente ao posto de sa�de, onde, al�m de medicamentos para a coceira, passou a fazer acompanhamento com psic�logos do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS).
Sintomas decorrentes da trag�dia
Depress�o e ansiedade passaram a fazer parte de sua vida desde que a barragem B1 da Mina C�rrego do Feij�o se rompeu, h� quase um ano. Mesmo seu estabelecimento tendo ficado sempre cheio durante a �poca das buscas. “Assim que a Vale me indenizar, vou embora para minha cidade, Nanuque (Vale do Rio Mucuri, a 600 quil�metros de Belo Horizonte). Brumadinho para mim acabou. Tenho 64 anos, n�o quero come�ar a vida toda de novo aqui”, desabafou.

Para conseguir dormir e tentar controlar os sintomas que tornaram sua pele t�o irritada, a comerciante passou a utilizar medica��o psiqui�trica forte. Atualmente, ela toma Alprazolam, um medicamento utilizado frequentemente no tratamento de ansiedade e s�ndrome do p�nico, e Sertralina, que � um antidepressivo. “Foram 20 anos lutando aqui em Brumadinho, no C�rrego do Feij�o, agora chegou a hora de desistir e ir embora. Buscar sossego de novo”, lamentou.
De acordo com o secret�rio municipal de Sa�de de Brumadinho, Junio Ara�jo Alves, devido aos problemas psiqui�tricos, muitas pessoas desenvolvem outros sintomas, como � o caso de Maria Marques. “Quest�es cl�nicas acabam sendo potencializadas tamb�m. Cefaleias (dores de cabe�a), infec��es respirat�rias agudas, cistites (infec��es da bexiga), erup��es, alergias e rea��es autoimunes aumentam devido a uma baixa de imunidade associada a essa situa��o estressante em que as pessoas se encontram”, afirma o secret�rio.
“Por n�o procurar atendimento, muitas pessoas acabam em sofrimento e se automedicando para sintomas que deveriam ser tratados com especialistas das nossas equipes de sa�de mental”, afirma o secret�rio de Sa�de de Brumadinho. Uma das pessoas que se queixam de problemas para dormir e de estar se sentindo atormentada pelas mem�rias do desastre � o encarregado de manuten��o de vag�es de trens Jo�o Ribeiro da Silva, de 56, que trabalhava prestando servi�o para a Vale.
Desde o desastre, est� desempregado. “Podia ter sido eu debaixo dessa lama, porque meu turno acabou na quinta-feira, �s 9h30, e o acidente foi na sexta-feira. Depois de ter passado os dias, de ter ajudado a socorrer gente de dentro da lama, isso veio em minha cabe�a. N�o paro de pensar nisso”, afirma o desempregado.
De acordo com ele, foi no posto de sa�de do C�rrego do Feij�o que os funcion�rios perceberam que o desempregado estava abalado e que precisava procurar ajuda profissional na sa�de mental. “Me disseram (no posto de sa�de) que era para eu procurar o pessoal psic�logo e assistentes sociais, mas at� hoje n�o fui. N�o procurei ningu�m ainda, mas sempre penso nisso. N�o paro de pensar nisso”, disse Jo�o.
Solidariedade para se reerguer
Al�m da Prefeitura de Brumadinho, v�rias institui��es, organiza��es n�o governamentais e igrejas fazem trabalhos de aux�lio � popula��o marcada pelo rompimento. A Arquidiocese de Belo Horizonte, por exemplo, atuou no atendimento emergencial com acolhida espiritual � popula��o em vel�rios, nos lares, dedica��o permanente aos familiares por meio da escuta, orienta��o, conforto e incentivo; doa��o de cestas b�sicas, roupa, material escolar, itens de higiene. Nos tr�s primeiros meses ap�s a trag�dia foram realizados 810 atendimentos.Logo a seguir, a Arquidiocese, a partir da PUC Minas, com a sua extens�o universit�ria, iniciou a��es dedicadas a Brumadinho, planejadas a partir dos seguintes eixos: educa��o, gest�o, assessoria jur�dico-cont�bil, amparo psicossocial e sociocomunit�rio, sa�de humana, sa�de animal e socioambiental. N�meros totais dessas iniciativas, realizadas a partir do segundo semestre de 2019, tiveram 2.300 benefici�rios diretos e 12.820 indiretos.
Integra��o com a sociedade
Entre as a��es, destacam-se empreendedorismo como estrat�gia de desenvolvimento em Brumadinho, acolhimento e orienta��o jur�dica, em parceria com a Defensoria P�blica da Uni�o, previd�ncia rural, projeto integrado de educa��o em sa�de, oficinas e encontros psicossociais, servi�o de atendimento jur�dico itinerante, or�amento familiar e gest�o financeira, oficinas de comunica��o para jovens, assessoria jur�dico-cont�bil, reciclagem solid�ria e inclusiva.A Vale informou, por e-mail, que 600 fam�lias est�o sendo acompanhadas por profissionais do Programa Refer�ncia da Fam�lia, como forma de garantir assist�ncia �s pessoas diretamente atingidas pelo rompimento. “Como se trata de um luto coletivo, os esfor�os voltados � sa�de emocional devem envolver n�o s� um trabalho direcionado aos familiares, mas � popula��o como um todo. Por isso, a empresa assinou acordo de coopera��o com a prefeitura para repasses que j� totalizam R$ 32 milh�es, destinados, exclusivamente, � amplia��o da assist�ncia de sa�de e psicossocial no munic�pio. Em 2019, foram realizados mais de 18 mil atendimentos m�dicos e acolhimentos psicossociais � popula��o.”