
Profissionais do direito, como ju�zes, integrantes do Minist�rio P�blico, promotores, defensores e advogados, lan�aram em julho um grupo para fomentar a discuss�o sobre “pr�ticas violentas e in�teis na aplica��o da Lei de Drogas”, iniciativa que ganhou o nome de Repensando a Guerra �s Drogas. A preocupa��o � a redu��o da viol�ncia, al�m de promover uma atua��o racional no �mbito criminal, sobretudo quanto � pol�tica antidrogas.
“Prende-se muito, mas mal, o que n�o contribui para reduzir a viol�ncia e sim para exacerb�-la. O objetivo do grupo � dialogar com nossos colegas, mas tamb�m com a sociedade civil, de uma forma simples e direta, sem ‘juridiqu�s’, porque boa parte das convic��es que as pessoas t�m � respeito de como lidar com a quest�o das drogas � baseada em falsas premissas e no desconhecimento de como funciona o sistema de justi�a criminal”, explica a promotora de Justi�a do MP-MG Cristina Labarr�re.
“O fato � que todos n�s integrantes do Repensando atuamos diretamente com o direito penal e notamos uma inefici�ncia e falta de razoabilidade na cadeia de persecu��o penal, que vai desde o policiamento ostensivo, passando pela investiga��o criminal, pela atua��o do Minist�rio P�blico ao mover a a��o penal e, finalmente, pelo Judici�rio e sistema penitenci�rio”, afirma a procuradora.

Os resultados de d�cadas de pol�tica de confronto, segundo Labarr�re, demonstram que as organiza��es criminosas permanecem intocadas. As delegacias, promotorias e f�runs ficam abarrotados de inqu�ritos e processos que n�o v�o resultar na puni��o das condutas mais graves, tendo o efeito preocupante de encarcerar em massa indiv�duos que n�o t�m alta periculosidade.
Brasil lidera ranking de viol�ncia
Felipe Carvalho Pinto, Procurador da Rep�blica do Minist�rio P�blico Federal, chama a aten��o para os n�meros que apontam que o Brasil chegou “� assombrosa marca de, aproximadamente, 60 mil homic�dios/ano”. Estudos da Organiza��o das Na��es Unidas e de outras organiza��es j� revelaram que 19 das 50 cidades mais violentas do mundo s�o brasileiras. “O cidad�o leigo poderia ent�o imaginar que o sistema criminal est� ocupado da urgente tarefa de reduzir referidos crimes graves e violentos. No entanto, n�o � o caso: investigamos cerca de 5% a 8% das mortes violentas”, explica.
"Muitos estudos apontam que o maior motivo desse fracasso de reduzir a criminalidade � a pol�tica de guerra �s drogas. Tentar reduzir o consumo e a disponibilidade de drogas por meio de mecanismos criminais severos"
David Pinter Cardoso, juiz da 3� Vara Criminal de Ribeir�o das Neves
O maior motivo de encarceramento no pa�s est� relacionado �s leis sobre drogas (63.368/76 e 11.343/06) e tr�fico internacional, respons�veis por 43% das ocupa��es nos pres�dios. Outros 6,13% por associa��o ao tr�fico. N�meros superiores aos presos por homic�dios qualificados (28,74%), homic�dios simples (6,94%) e latroc�nio (3,77%), de acordo com o Levantamento Nacional de Informa��es Penitenci�rias, Infopen, do Minist�rio da Justi�a, com dados atualizados em junho de 2020.
O Brasil abriga em pres�dios estaduais 748.009 presos, sendo 362.547 em regime fechado, 133.408 no semiaberto e 222.558 em seguran�a provis�ria. Os demais se encontram em tratamentos de sa�de ou sob medidas de seguran�a.
Carvalho ressalta que, como os recursos do sistema criminal (policiais, pris�es, armas, ju�zes etc) s�o finitos, e ao negar que � preciso eleger racionalmente prioridades de atua��o, o sistema acaba se dedicando aos casos mais numerosos e simples, “aqueles que podem ser resolvidos com abordagens de rua e pris�es em flagrante, como o porte de pequenas quantidades de droga.”
Uma vez ocupado “dessa multid�o de casos insignificantes”, fica o sistema criminal impedido de investigar casos realmente graves e complexos, aqueles que envolvem crimes violentos, “que t�m no Brasil taxas alarmantes”, al�m de crimes do colarinho branco, como corrup��o, lavagem de dinheiro e sonega��o de tributos.
Carvalho ressalta que, como os recursos do sistema criminal (policiais, pris�es, armas, ju�zes etc) s�o finitos, e ao negar que � preciso eleger racionalmente prioridades de atua��o, o sistema acaba se dedicando aos casos mais numerosos e simples, “aqueles que podem ser resolvidos com abordagens de rua e pris�es em flagrante, como o porte de pequenas quantidades de droga.”
Uma vez ocupado “dessa multid�o de casos insignificantes”, fica o sistema criminal impedido de investigar casos realmente graves e complexos, aqueles que envolvem crimes violentos, “que t�m no Brasil taxas alarmantes”, al�m de crimes do colarinho branco, como corrup��o, lavagem de dinheiro e sonega��o de tributos.
Diferen�a de tratamento
Mas os custos n�o s�o apenas financeiros. O procurador chama a aten��o para quando a guerra �s drogas prende usu�rios como se fossem traficantes ou autoriza o uso de viol�ncia contra certas pessoas e comunidades, estigmatiza indiv�duos, desestrutura fam�lias, mata pessoas, alimenta organiza��es criminosas que ocupam o sistema prisional, gerando uma cadeia de danos invis�veis, mas de consequ�ncias reais e nefastas. Felipe ressalta existirem alternativas a esse cen�rio, mas faltam espa�os institucionais de di�logo sobre o tema.

O crime de tr�fico � tratado como hediondo pela lei “e existe uma cultura de relacionar a ele os �ndices de viol�ncia urbana e uma tend�ncia a decretar a pris�o preventiva de pessoas flagradas mesmo que com pequena quantidade de droga”, explica Labarr�re. Drogas circulam em todas as classes sociais, mas o perfil dos presos n�o varia: s�o jovens, negros e pobres em sua grande maioria.
"O cidad�o leigo poderia ent�o imaginar que o sistema criminal est� ocupado da urgente tarefa de reduzir referidos crimes graves e violentos. No entanto, n�o � o caso: investigamos cerca de 5% a 8% das mortes violentas"
Felipe Carvalho Pinto, Procurador da Rep�blica do Minist�rio P�blico Federal
Segundo o Departamento Penitenci�rio Nacional, mais de 60% dos presos no Brasil tem idade entre 18 e 34 anos. “� urgente e necess�rio discutir por que isso ocorre, essa seletividade. N�o � dizer que grandes organiza��es criminosas n�o tenham um efeito delet�rio para o tecido social, mas como reconheceu o STF, � imperioso distinguir entre o grande traficante e indiv�duos de baixa periculosidade”, afirma Labarr�re.
Os dados do Infopen nacional indicam a taxa de ocupa��o do sistema carcer�rio de 161%. Entre os presos 49,88% das vagas est�o ocupadas por pessoas pardas, 16,81% pretas, 29% brancas, 5,29 amarelas e 0,21% de ind�genas. Nos pres�dios administrados pelo estado, em Minas Gerais, em torno de 70% dos internos s�o pardos ou negros.
Mudan�a para presos provis�rios
Em Minas s�o 75 mil pessoas encarceradas para 41 mil vagas, sendo aproximadamente 30 mil presos provis�rios. A promotora de Justi�a do MP-MG Cristina Labarr�re explica que existem duas circunst�ncias que tornam um preso provis�rio: uma � quando sequer existe condena��o. Ele est� apenas sendo investigado ou j� respondendo a processo criminal e est� preso porque teve a preventiva decretada.
Essa pris�o antes da condena��o n�o tem car�ter punitivo (embora depois seja descontada da pena eventualmente aplicada). Ela tem objetivo cautelar ou seja, evitar que o indiv�duo continue a praticar crimes, que fuja, que ameace testemunhas, destrua provas etc. J� o outro tipo de preso provis�rio � aquele que foi condenado, mas em que h� ainda possibilidade de recurso, pois a senten�a n�o transitou em julgado.

Quando a pessoa responde presa ao processo e � condenada, o juiz precisa analisar novamente na senten�a se est�o presentes os requisitos da pris�o cautelar, j� que a pris�o n�o � efeito imediato da condena��o, porque o sentenciado sempre pode recorrer. Labarr�re reconhece a complexidade dos motivos para a superlota��o, mas chama a aten��o que uma parte se deve �s pris�es provis�rias e definitivas relacionadas ao tr�fico de drogas, sendo a maior parte dos presos pequenos traficantes, traficantes ocasionais ou at� usu�rios erroneamente identificados como traficantes, uma vez que a legisla��o n�o estabelece crit�rios objetivos para distinguir cada caso.
Na primeira semana de setembro, a sexta turma do Superior Tribunal de Justi�a (STJ) concedeu habeas corpus coletivo a mais de mil condenados em S�o Paulo que estavam presos em regime fechado pelo crime de tr�fico de drogas ocasional. Desde 2006, a lei sobre drogas determina que deve ser considerado o tratamento diferenciado entre os crimes de tr�fico de drogas organizado e de tr�fico de drogas ocasional. A medida, decidida por unanimidade, foi adotada tamb�m em car�ter preventivo, para impedir a Justi�a paulista de aplicar o regime fechado a novos condenados nessas situa��es.
"Prende-se muito, mas mal, o que n�o contribui para reduzir a viol�ncia e sim para exacerb�-la"
Cristina Labarr�re, promotora de Justi�a do MP-MG
Segundo o STJ, o habeas corpus foi necess�rio “diante do reiterado descumprimento da jurisprud�ncia das cortes superiores”, para fixar o regime aberto a todas as pessoas condenadas no estado por tr�fico privilegiado, com pena de um ano e oito meses. O relator, o ministro Rogerio Schietti Cruz, criticou o aumento exponencial do encarceramento de pessoas sob a acusa��o de tr�fico, cujo n�mero cresceu 508% entre 2005 e 2017 apenas no estado de S�o Paulo, segundo dados da Secretaria de Administra��o Penitenci�ria.
Inefici�ncia pol�tica
O juiz David Cardoso, de Ribeir�o das Neves, cidade da Grande BH que concentra o maior n�mero de pres�dios em Minas, destaca que o ponto principal da decis�o do STJ � trazer ao Judici�rio discuss�o, j� antiga nos meios acad�micos, sobre seletividade, desumanidade e inefici�ncia da pol�tica de guerra �s drogas. O termo ficou famoso nos anos 1970 nos Estados Unidos por meio do ent�o presidente Richard Nixon, que lan�ou esse tipo de abordagem para tentar conter o tr�fico e o uso de drogas.
“O STF tamb�m vem sinalizando sua preocupa��o com o encarceramento em massa de pessoas presas com quantidade pequena de drogas e a puni��o desproporcional nesses casos. O HC (habeas corpus) 127.753/SP expressamente cita a necessidade de tratar diferenciadamente pessoas violentas e integrantes de organiza��es criminosas de outras que n�o praticaram atos violentos e por vezes vendem drogas para retroalimentar seu pr�prio v�cio.”
O habeas corpus impetrado pela Defensoria P�blica de S�o Paulo foi em favor de um preso, com pedido de extens�o a todos os demais nas mesmas condi��es. No caso individual, o r�u foi denunciado por armazenar 23 pedras de crack (com peso l�quido de 2,9g) e quatro saquinhos de coca�na (com peso l�quido de 2,7g), supostamente para com�rcio il�cito. Ele foi condenado a um ano e oito meses de reclus�o, no regime inicial fechado, mais multa.
Ao fixar o regime aberto em favor do r�u, o colegiado determinou a mesma provid�ncia para todos os presos que se encontrem em situa��o igual no estado e estejam no regime fechado, e tamb�m para todos os que forem condenados futuramente.