
Entre as den�ncias estruturais por superlota��o e as cr�ticas de impunidade, os sistemas carcer�rio e Judici�rio brasileiros se viram obrigados a enfrentar a nova realidade imposta pela pandemia em um ambiente no qual uma doen�a infecciosa pode se alastrar de forma incontrol�vel.
As solu��es encontradas para isso, que resultaram na soltura de milhares de detentos em todo o pa�s, por�m, est�o longe de ser consensuais, como mostra o Estado de Minas na segunda reportagem sobre os efeitos da COVID-19 sobre o sistema prisional.
Ainda no in�cio da pandemia, o Conselho Nacional de Justi�a (CNJ) recomendou a libera��o de detentos brasileiros para a deten��o domiciliar. A sugest�o, que depois virou determina��o, levantou o debate sobre a gest�o do sistema prisional no pa�s e tirou de tr�s das grades, s� em Minas Gerais, 11.721 prisioneiros, sob a justificativa de manuten��o da sa�de em meio � crise.
Mas um percentual desse contingente acabou voltando aos pres�dios por cometer crimes novamente. No estado, de acordo com o Tribunal de Justi�a, at� o �ltimo dia 14, 1.015 foram levados de volta ao c�rcere no pouco tempo de liberdade – 8,6% do total.
O juiz Evaldo Elias Penna Gavazza, da Vara de Execu��es Criminais da Comarca de Juiz de Fora, explica como funciona a portaria conjunta entre estado e TJMG. Segundo ele, quem estava em regime fechado, presos que n�o podiam sair da pris�o nem para trabalhar, s� p�de ir para o domiciliar em fun��o da crise na sa�de se apresentasse algum fator de risco, como diabetes e hipertens�o.
J� aqueles no semiaberto – que podiam trabalhar externamente, mas tinham que dormir na pris�o – foram todos beneficiados pela medida.
“Para quem estava no semiaberto, a altera��o foi que, em vez de dormir na unidade prisional, passou a dormir em albergues ou em casa. O CNJ deliberou isso porque esses detentos poderiam se tornar vetores da doen�a dentro dos pres�dios por trabalhar fora”, afirma o magistrado, que coordena o Grupo de Monitoramento e Fiscaliza��o do Sistema Carcer�rio do TJMG.
Liberados sem fian�a
Com base em outra recomenda��o do CNJ, mais uma condi��o foi inclu�da aos casos de liberdade de presos durante a pandemia. O Superior Tribunal de Justi�a (STJ) concedeu habeas corpus coletivo para assegurar a soltura de todos os detentos que tinham liberdade provis�ria condicionada ao pagamento de fian�a.
O conjunto de medidas que resultou na libera��o de detentos em todo o pa�s, por�m, est� longe de ser consenso. Com tr�nsito frequente no sistema prisional, o advogado Sidney Gon�alves pensa que havia maneiras de garantir a seguran�a da popula��o carcer�ria na pandemia sem a libera��o de presos.
Integrante das comiss�es de Assuntos Penitenci�rios e de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB/MG), a advogada Tamita Rodrigues Tavares teve 16 clientes beneficiados pela portaria do TJMG em conjunto com o governo de Minas, e analisa a medida como positiva.
“Percebemos uma melhora muito grande da autoestima desses detentos. A gente precisa entender que a pena tem o objetivo de ressocializa��o, n�o s� de punir. Essa soltura por causa da COVID-19 provou que v�rios detentos t�m condi��es de se ressocializar”, afirma. Segundo ela, nenhum de seus clientes retornou ao pres�dio durante a pandemia.
O debate em torno do tema, no entanto, vai al�m: a medida n�o representaria um tipo de impunidade?. Dos 11.721 liberados at� o �ltimo dia 14, 45,35% s�o jovens entre 18 e 29 anos, que pelo crit�rio de idade n�o fazem parte do grupo de risco da COVID-19 – apesar de a portaria n�o considerar somente esse fator para conceder o regime domiciliar.
Ludmila Ribeiro, professora associada ao Centro de Estudos de Criminalidade e Seguran�a P�blica (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), defende a decis�o da Justi�a e do governo de Minas. “Se os presos t�m direito � soltura, ent�o, n�o h� que se falar em impunidade. A impunidade ocorre quando pessoas que cometeram crimes graves n�o s�o processadas e punidas. Nossa pesquisa mostra que, em Belo Horizonte, a chance de puni��o para os homic�dios � de apenas 9 em cada 100 casos. Isso, sim, � impunidade”, argumenta.
Criminalidade em queda o estado
A portaria conjunta entre Tribunal de Justi�a e governo de Minas Gerais foi publicada em mar�o. Daquele m�s at� agosto, o estado computou quedas nos �ndices de criminalidade em rela��o aos mesmos meses de 2019, segundo dados da Secretaria de Estado de Justi�a e Seguran�a P�blica (Sejusp), apesar de mais detentos em liberdade.
Contudo, vale ressaltar que o isolamento social for�ado pela pandemia da COVID-19 fez os dados ca�rem em todo o mundo, justamente pelo menor n�mero de pessoas nas ruas. “Os dados disponibilizados pelo governo do estado indicam que um n�mero menor de roubos e furtos foi registrado, tend�ncia que tamb�m foi verificada em outros pa�ses. Com menos gente circulando, esses crimes de oportunidade diminuem”, afirma Ludmila Ribeiro.
N�meros da Sejusp mostram que 20.758 crimes violentos foram cometidos em Minas Gerais entre mar�o e agosto deste ano. � o menor consolidado dos �ltimos cinco anos. Na compara��o com 2019, quando a pasta computou 40.858 ocorr�ncias do tipo, a queda � de 49,1%.
Ainda assim, outros tipos de crime, como a viol�ncia contra a mulher, n�o registram queda t�o acentuada: 69.584 neste ano contra 72.284 no ano passado – diferen�a de 3,7% entre mar�o e agosto. Os estelionatos, por outro lado, cresceram no estado: de 4.752 em 2019 para 10.916 entre mar�o e setembro, segundo a Pol�cia Civil. Tal fator, � atribu�do ao maior n�mero de transa��es financeiras por meio da internet na pandemia, como o aux�lio emergencial, por exemplo.
“Em Montes Claros, foram liberados 150 presos para a pris�o domiciliar. Desses, dois foram flagrados cometendo crimes. Outros 18 foram flagrados descumprindo as condi��es: n�o estavam em casa. J� recolhemos (ao sistema prisional) todos”, diz o tenente-coronel Gild�sio R�mulo Gon�alves, comandante do 10º Batalh�o da Pol�cia Militar da cidade do Norte de Minas.
“Fiscalizamos todos os que tiveram direito ao benef�cio. De alguma forma, isso inibe esses indiv�duos, que est�o em processo de reabilita��o, de cometer novos delitos”, completa.
Outra delibera��o conjunta entre Judici�rio e Executivo foi a cria��o das unidades sentinela. Todos os criminosos e suspeitos que foram presos durante a pandemia foram encaminhados, inicialmente, para esses 30 locais, onde permaneceram em isolamento por 15 dias – o tempo de incuba��o do novo coronav�rus.
Rotina alterada nos pres�dios
A pandemia alterou a din�mica do sistema prisional. Desde as visitas at� a maneira como s�o julgados os processos administrativos – situa��o frequente em um sistema extremamente saturado. A falta de crit�rio para dar a um detento o direito de ir para o regime semiaberto, e por consequ�ncia para a pris�o domiciliar, tamb�m � ponto de debate de especialistas.
Uma das preocupa��es das autoridades no in�cio da pandemia dizia respeito �s visitas carcer�rias. Suspensos desde mar�o, os encontros entre detentos e amigos e familiares voltaram a ocorrer no fim de setembro, a partir de protocolos semelhantes ao do Minas Consciente – fases vermelha (mais restrita), amarela (de alerta) e verde (controlada). Os crit�rios foram estabelecidos pela Sejusp, que administra o sistema prisional.
Para lidar com a quest�o, a pasta adotou visitas por videoconfer�ncia, alternativa vista pelo juiz Evaldo Elias Penna Gavazza como ferramenta a ser explorada no futuro. Mais de 6 mil delas j� aconteceram.
“No encontro por v�deo, o detento � quem visita a fam�lia, n�o o contr�rio. No pres�dio, o encontro � restrito muitas vezes a uma s� pessoa. A dist�ncia, ele pode ver sua casa e conversar com um conjunto de pessoas, por exemplo”, afirma. Outras possibilidades foram as cartas e as liga��es telef�nicas.
Outra mudan�a diz respeito aos processos administrativos. Antes da pandemia, se um detento cometesse uma falta grave, como portar drogas ou telefone celular, ele precisava passar por um julgamento que j� come�ava na unidade prisional.
“Um conselho disciplinar formado por um agente penitenci�rio, um pedagogo e um assistente social levantava provas e ouvia testemunhas para elaborar um parecer, posteriormente encaminhado ao juiz respons�vel pela execu��o penal. Com os trabalhos dessa comiss�o suspensos, isso onerou e muito o Judici�rio”, explica o advogado Sidney Gon�alves, que tem tr�nsito frequente em pris�es da Grande BH.
Ele lembra que a falta de servidores � respons�vel em parte pela enorme disparidade entre detentos e vagas no sistema prisional. “A popula��o carcer�ria � formada em grande medida por presos provis�rios. Eles ficam detidos por mais tempo do que o ideal, porque a Justi�a n�o tem pessoal e equipamento suficientes para atender � demanda”, diz.
O juiz Evaldo Gavazza, da Comarca de Juiz de Fora, concorda, mas faz ressalvas. “Realmente, essa comiss�o interna das unidades auxiliava muito o trabalho dos ju�zes. Por�m, se aumentou por um lado o trabalho, diminuiu por outro, j� que muitas audi�ncias deixaram de acontecer por causa da pandemia”, analisa.
Mais um ponto abordado por Sidney Gon�alves � a falta de crit�rios para que os ju�zes concedam progress�o de um determinado detento para o regime semiaberto. Antes da pandemia, a an�lise do Judici�rio se baseava em estudo psicossocial elaborado por psiquiatras, assistentes sociais e psic�logos.
Mesmo com o parecer, caso o juiz tivesse d�vidas quanto � progress�o, poderia solicitar um exame criminol�gico, com psiquiatras do Centro de Apoio M�dico Pericial. “Todo esse procedimento deixou de existir por causa da pandemia. Da�, eu pergunto: como um juiz vai tomar essa decis�o de progredir ou n�o o regime de pena de um detento? A an�lise se torna subjetiva”, questiona o advogado.