
Quais as consequ�ncias da pandemia e do fechamento prolongado das escolas pa�s afora? Na sa�de, os resultados vis�veis s�o certamente os milh�es de contaminados e mortos, mas por tr�s dessas cifras superlativas, a crise sanit�ria disfar�a outro lado nefasto, de n�meros tidos como assustadores, por�m ainda desconhecidos. Ele esconde velhos problemas que historicamente calam crian�as e adolescentes v�timas de viol�ncia f�sica e sexual, desafiam diariamente portadores de autismo e outras condi��es limitantes na luta por seus direitos e mascaram a maior das chagas da educa��o brasileira: a evas�o escolar.
Apesar de antigos, eles se tornaram, nos �ltimos 17 meses, t�o invis�veis quanto o v�rus. O Estado de Minas mostra, a partir de hoje, como os mais vulner�veis dessa parcela da popula��o foram silenciados em uma sociedade paralisada pela COVID-19. Para eles, o distanciamento da sala de aula desde mar�o de 2020 deixou comprometido n�o apenas o aprendizado: instalou uma esp�cie de efeito colateral de ramifica��es sem precedentes ao colocar lado a lado, mais do que nunca, agressores e v�timas; ao deixar estudantes fragilizados por condi��es patol�gicas sem o eixo vital de seu desenvolvimento intelectual e humano; e ao criar terreno f�rtil para o abandono definitivo de livros e cadernos.
Sonhos e Agress�es
Ele tinha apenas 6 anos e como toda crian�a nessa idade gostava absurdamente de brincar. Morava com a av�, respons�vel legal depois da morte precoce da m�e, quando o menino ainda tinha 1 ano e meio de idade. Era feliz, mas lhe faltava o senso da fam�lia e, na falta do abra�o materno, n�o entendia por que n�o podia encontrar conforto no aconchego do pai, morador de Caratinga, cidade vizinha � sua Santa B�rbara do Leste, no Vale do Rio Doce.
A exemplo das rela��es que via na TV ou nas ruas, queria tamb�m estar ao lado dele. Em um dos dias em que conseguiu, o pequeno Elias Emanuel Martins Leite sorriu pela �ltima vez. O pai agrediu o garoto, que n�o resistiu. O motivo: ter errado o dever de casa.
Elias entrou para a lament�vel estat�stica de agress�es, maus-tratos e mortes subnotificada nesses �ltimos meses. Assim como o garoto do interior de Minas, um incont�vel n�mero de crian�as e adolescentes s�o v�timas diariamente de crueldades f�sica e sexual, mas, agora, al�m de sufocados pela viol�ncia, est�o imobilizadas tamb�m pelos efeitos colaterais do novo coronav�rus.
A pandemia n�o cessou o aparecimento de casos na esfera oficial nem o trabalho da pol�cia, Justi�a ou conselhos tutelares. Mas autoridades e especialistas s�o un�nimes em dizer que o atual banco de dados, subnotificado, est� longe da realidade.
Com o esvaziamento das salas de aulas por tanto tempo, fechou-se tamb�m uma das principais portas de den�ncia desse tipo de crime. Uma realidade que preocupa a Vara Especializada em Crimes contra a Crian�a e o Adolescente, do F�rum Lafayette, em BH. L� existem 3,5 mil processos, sendo 90% crimes de estupro. A ju�za Marixa Fabiane Rodrigues, uma das titulares da vara, afirma que, em Minas e em todo o Brasil, a crise sanit�ria coincide com uma redu��o dr�stica no n�mero de den�ncias de crimes contra crian�as e adolescentes.
"M�es e crian�as foram inibidas de falar, pois ficaram 'encarceradas' em casa. E o professor ou outro profissional que no conv�vio di�rio estabelece relacionamento afetivo e de proximidade n�o pode mais assumir essa tarefa"
Marixa Fabiane Rodrigues, ju�za titular Vara Especializada em Crimes contra a Crian�a e o Adolescente do F�rum Lafayette, em BH
Foram 8.888, em 2018; 8.564, em 2019; e, no ano passado, 2.053. “� a s�ndrome do espelho. Voc� olha e v� o dado invertido. Ele n�o confere com a realidade. Na maioria dos crimes o agressor est� dentro de casa. Familiares que deveriam proporcionar a prote��o integral e acabam violentando a crian�a naquele ambiente”, relata a magistrada. “Com a pandemia, m�es e crian�as foram inibidas de falar, pois ficaram ‘encarceradas’ em casa. E o professor ou outro profissional que no conv�vio di�rio estabelece relacionamento afetivo e de proximidade n�o pode mais assumir essa tarefa”, completa.
No Brasil, relat�rio recente da Organiza��o para a Coopera��o e o Desenvolvimento Econ�mico (OCDE) mostra que as escolas ficaram fechadas por mais de 40 semanas, uma das maiores m�dias do mundo. Em grande parte de Minas Gerais e particularmente em Belo Horizonte, alunos do ensino infantil foram autorizados a retomar o caminho das salas de aula no in�cio de maio e os do ensino fundamental, desde o �ltimo dia 26 de junho – do 1º ao 9º ano de escolas particulares e at� o 3º ano de estabelecimentos municipais.
Preocupa��o por tr�s dos port�es fechados
Na escola, educadores e outros funcion�rios costumam perceber ind�cios quando algo vai mal na casa de algum estudante: um roxo no corpo, a blusa de manga comprida em pleno ver�o, a mudan�a de comportamento na forma de introspec��o ou agressividade... Mas o isolamento social necess�rio na pandemia, ironicamente, aproximou como nunca agressores e v�timas, ao mesmo tempo que afastou aqueles que muitas vezes representavam a salva��o. “Essa � uma das nossas principais preocupa��es, pois s�o situa��es que ocorriam antes da pandemia. O sil�ncio das crian�as e dos adolescentes n�o significa que esses casos n�o estejam acontecendo. Numa situa��o normal, eles j� n�o denunciam. Descobr�amos muitos casos a partir das observa��es de professores e monitores”, afirma diretor de uma escola p�blica da Regi�o de Venda Nova, em Belo Horizonte, que prefere o anonimato.
Ele conta um fato marcante de uma sexta-feira de agosto de 2016, para revelar a import�ncia da escola na vida dessas crian�as. Na ocasi�o, a coordenadora pediu autoriza��o a uma fam�lia para dar banho em um menino de 8 anos que estava indo � aula sem condi��es m�nimas de higiene. “Descobrimos marcas de espancamento. Na mesma hora, chegou uma conselheira tutelar para levar tamb�m a irm�, de 6 anos. No caminho, a garotinha come�ou a narrar como o padrasto abusava dela e o menino a interrompeu, dizendo que a m�e lhes havia dito se tratar de segredo”, relata. “Se aqui eles n�o t�m coragem de contar, imagine dentro de casa, presos? Sofremos por algo que n�o sabemos como est� e em que n�o temos como intervir neste momento”, desabafa o diretor.