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Estado de Minas OS INVIS�VEIS DA PANDEMIA

Pandemia agrava e mascara viola��es contra crian�as e adolescentes

S�rie de reportagens revela que fechamento de escolas e isolamento social aproximou agressores e v�timas, ao mesmo tempo em que dificultam den�ncias


15/08/2021 04:00 - atualizado 15/08/2021 07:48

(foto: Freepik)
(foto: Freepik)

 

Quais as consequ�ncias da pandemia e do fechamento prolongado das escolas pa�s afora? Na sa�de, os resultados vis�veis s�o certamente os milh�es de contaminados e mortos, mas por tr�s dessas cifras superlativas, a crise sanit�ria disfar�a outro lado nefasto, de n�meros tidos como assustadores, por�m ainda desconhecidos. Ele esconde velhos problemas que historicamente calam crian�as e adolescentes v�timas de viol�ncia f�sica e sexual, desafiam diariamente portadores de autismo e outras condi��es limitantes na luta por seus direitos e mascaram a maior das chagas da educa��o brasileira: a evas�o escolar.

 

Apesar de antigos, eles se tornaram, nos �ltimos 17 meses, t�o invis�veis quanto o v�rus. O Estado de Minas mostra, a partir de hoje, como os mais vulner�veis dessa parcela da popula��o foram silenciados em uma sociedade paralisada pela COVID-19. Para eles, o distanciamento da sala de aula desde mar�o de 2020 deixou comprometido n�o apenas o aprendizado: instalou uma esp�cie de efeito colateral de ramifica��es sem precedentes ao colocar lado a lado, mais do que nunca, agressores e v�timas; ao deixar estudantes fragilizados por condi��es patol�gicas sem o eixo vital de seu desenvolvimento intelectual e humano; e ao criar terreno f�rtil para o abandono definitivo de livros e cadernos. 

Sonhos e Agress�es

Ele tinha apenas 6 anos e como toda crian�a nessa idade gostava absurdamente de brincar. Morava com a av�, respons�vel legal depois da morte precoce da m�e, quando o menino ainda tinha 1 ano e meio de idade. Era feliz, mas lhe faltava o senso da fam�lia e, na falta do abra�o materno, n�o entendia por que n�o podia encontrar conforto no aconchego do pai, morador de Caratinga, cidade vizinha � sua Santa B�rbara do Leste, no Vale do Rio Doce.

 

A exemplo das rela��es que via na TV ou nas ruas, queria tamb�m estar ao lado dele. Em um dos dias em que conseguiu, o pequeno Elias Emanuel Martins Leite sorriu pela �ltima vez. O pai agrediu o garoto, que n�o resistiu. O motivo: ter errado o dever de casa. 

 

Elias entrou para a lament�vel estat�stica de agress�es, maus-tratos e mortes subnotificada nesses �ltimos meses. Assim como o garoto do interior de Minas, um incont�vel n�mero de crian�as e adolescentes s�o v�timas diariamente de crueldades f�sica e sexual, mas, agora, al�m de sufocados pela viol�ncia, est�o imobilizadas tamb�m pelos efeitos colaterais do novo coronav�rus.

 

A pandemia n�o cessou o aparecimento de casos na esfera oficial nem o trabalho da pol�cia, Justi�a ou conselhos tutelares. Mas autoridades e especialistas s�o un�nimes em dizer que o atual banco de dados, subnotificado, est� longe da realidade.  

 

Com o esvaziamento das salas de aulas por tanto tempo, fechou-se tamb�m uma das principais portas de den�ncia desse tipo de crime. Uma realidade que preocupa a Vara Especializada em Crimes contra a Crian�a e o Adolescente, do F�rum Lafayette, em BH. L� existem 3,5 mil processos, sendo 90% crimes de estupro. A ju�za Marixa Fabiane Rodrigues, uma das titulares da vara, afirma que, em Minas e em todo o Brasil, a crise sanit�ria coincide com uma redu��o dr�stica no n�mero de den�ncias de crimes contra crian�as e adolescentes. 

 

"M�es e crian�as foram inibidas de falar, pois ficaram 'encarceradas' em casa. E o professor ou outro profissional que no conv�vio di�rio estabelece relacionamento afetivo e de proximidade n�o pode mais assumir essa tarefa"

Marixa Fabiane Rodrigues, ju�za titular Vara Especializada em Crimes contra a Crian�a e o Adolescente do F�rum Lafayette, em BH

 

Foram 8.888, em 2018; 8.564, em 2019; e, no ano passado, 2.053. “� a s�ndrome do espelho. Voc� olha e v� o dado invertido. Ele n�o confere com a realidade. Na maioria dos crimes o agressor est� dentro de casa. Familiares que deveriam proporcionar a prote��o integral e acabam violentando a crian�a naquele ambiente”, relata a magistrada. “Com a pandemia, m�es e crian�as foram inibidas de falar, pois ficaram ‘encarceradas’ em casa. E o professor ou outro profissional que no conv�vio di�rio estabelece relacionamento afetivo e de proximidade n�o pode mais assumir essa tarefa”, completa. 

 

No Brasil, relat�rio recente da Organiza��o para a Coopera��o e o Desenvolvimento Econ�mico (OCDE) mostra que as escolas ficaram fechadas por mais de 40 semanas, uma das maiores m�dias do mundo. Em grande parte de Minas Gerais e particularmente em Belo Horizonte, alunos do ensino infantil foram autorizados a retomar o caminho das salas de aula no in�cio de maio e os do ensino fundamental, desde o �ltimo dia 26 de junho – do 1º ao 9º ano de escolas particulares e at� o 3º ano de estabelecimentos municipais.  

 

Preocupa��o por tr�s dos port�es fechados 

 

Na escola, educadores e outros funcion�rios costumam perceber ind�cios quando algo vai mal na casa de algum estudante: um roxo no corpo, a blusa de manga comprida em pleno ver�o, a mudan�a de comportamento na forma de introspec��o ou agressividade... Mas o isolamento social necess�rio na pandemia, ironicamente, aproximou como nunca agressores e v�timas, ao mesmo tempo que afastou aqueles que muitas vezes representavam a salva��o. “Essa � uma das nossas principais preocupa��es, pois s�o situa��es que ocorriam antes da pandemia. O sil�ncio das crian�as e dos adolescentes n�o significa que esses casos n�o estejam acontecendo. Numa situa��o normal, eles j� n�o denunciam. Descobr�amos muitos casos a partir das observa��es de professores e monitores”, afirma diretor de uma escola p�blica da Regi�o de Venda Nova, em Belo Horizonte, que prefere o anonimato.  

 

Ele conta um fato marcante de uma sexta-feira de agosto de 2016, para revelar a import�ncia da escola na vida dessas crian�as. Na ocasi�o, a coordenadora pediu autoriza��o a uma fam�lia para dar banho em um menino de 8 anos que estava indo � aula sem condi��es m�nimas de higiene. “Descobrimos marcas de espancamento. Na mesma hora, chegou uma conselheira tutelar para levar tamb�m a irm�, de 6 anos. No caminho, a garotinha come�ou a narrar como o padrasto abusava dela e o menino a interrompeu, dizendo que a m�e lhes havia dito se tratar de segredo”, relata. “Se aqui eles n�o t�m coragem de contar, imagine dentro de casa, presos? Sofremos por algo que n�o sabemos como est� e em que n�o temos como intervir neste momento”, desabafa o diretor. 

Den�ncias foram sufocadas

A notifica��o de viol�ncia e abuso contra crian�as e adolescentes � obrigat�ria tanto para o servi�o de educa��o quanto para o de sa�de. No in�cio da pandemia, foram canceladas e adiadas v�rias audi�ncias no F�rum Lafayette, em Belo Horizonte, retomadas de forma presencial depois de a legisla��o incluir essa presta��o jurisdicional no rol de servi�os essenciais.
 
A ju�za Marixa Fabiane Rodrigues, da capital, relata um julgamento que presidiu recentemente sobre um caso ocorrido antes da pandemia: um pai agrediu o filho por uso excessivo de celular. Ele bateu na crian�a com uma vara e cortou suas costas. Na escola, a professora viu a blusa suja de sangue, notificou o Conselho Tutelar e foi feito boletim de ocorr�ncia. Ao longo do processo, apurou-se que as agress�es eram recorrentes.   

“Houve redu��o dr�stica desse tipo de notifica��o, o que � absolutamente incompat�vel com a experi�ncia de quem agride ou viola. A crian�a dentro de casa pedir� ajuda a quem?”, questiona. No momento atual, outra quest�o dificulta avan�ar nesse terreno, naturalmente delicado. “A crian�a percebe que a m�e � economicamente dependente do pai e, em tempos de pandemia, com desemprego, tocamos em algo ainda mais inibidor, que � o medo at� da fome. Ela sabe que a den�ncia tem consequ�ncias e se sente culpada”, explica.

“J� na agress�o sexual, se a m�e n�o tem depend�ncia econ�mica, ela denuncia, mas muitas n�o t�m olhar apurado para ver o que est� acontecendo. J� tivemos casos de den�ncia contra a m�e, por omiss�o. Sabia que a menina estava sendo estuprada e, por n�o querer se separar, n�o denunciou e passou a integrar a pr�tica do crime”, relata a magistrada. 

A ju�za ressalta que a agress�o f�sica � mais notificada que a pr�pria agress�o sexual. J� as “mais leves” normalmente n�o s�o denunciadas, visto que o grupo familiar compreende o ato como forma de corre��o. “As pessoas precisam evoluir e entender que n�o se educa crian�a espancando, mas com conversa, di�logo. Pode dar castigo restringindo um lazer, uso de eletr�nicos, mas n�o com agress�o f�sica, principalmente nas classes menos favorecidas, em que muitos pais foram criados assim”, diz.  

Entretando, crimes desse tipo n�o escolhem classe, cor nem religi�o. Se nas faixas menos favorecidas as den�ncias esbarram na depend�ncia econ�mica, nas mais altas elas s�o inibidas por n�o se acreditar no sistema judici�rio ou pela vergonha. “As fam�lias preferem tratar do assunto no div� do psicoterapeuta e colocam o adolescente para fazer terapia. J� tivemos not�cias de aluno de escola cara de BH se cortando, com sinais de depress�o, porque estava sendo abusado”, relata Marixa Rodrigues.  

Para o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Fam�lia (IBDFAM) muda s� o conte�do. “Um espanca porque o menino amassou panela velha e o outro porque quebrou o controle, mas o ser humano � um s�,  entre rico ou pobre, independe da classe”, afirma. Ele evoca a Lei da Palmada, importante para mudar a concep��o de educa��o das crian�as. “� a evolu��o do pensamento, que d� outra no��o que n�o a de bater e caracteriza o ato como viol�ncia dom�stica.” 

De toda forma, restam as inc�gnitas nessa face oculta da pandemia. Rodrigo da Cunha tamb�m acredita em crescimento exponencial da viol�ncia f�sica e sexual durante o per�odo. “Aumenta o n�vel de agressividade, porque aumenta tamb�m a intimidade, que � para o bem e para o mal. Freud diz que � na intimidade da fam�lia que eclodem os maiores conflitos.”

MORTE

Em um dos casos mais recentes de agress�o familiar, o Brasil ficou chocado com a morte do pequeno Elias Emanuel. “Moramos s� eu e minha filha. Ele tinha necessidade da figura masculina na vida dele. Sonhava com o pai e pedia muito por ele”, relata a av� materna, a lavradora Maria Aparecida Martins, de 48 anos. Ela conta que resolveu deixar o garoto com o pai por vontade do menino. No Conselho Tutelar de Santa B�rbara do Leste, a informa��o � de que ela tomou a decis�o motivada tamb�m por impossibilidade financeira de cuidar do neto. Mas, tanto a av� quanto conselheiros afirmam que n�o tinham conhecimento de agress�es anteriores.  

“Elias tinha contato com a fam�lia do pai e gostava muito do primo. Sonhava com carrinhos e que tivesse o pai para brincar com ele. Nunca imaginamos que algo assim aconte�a com a gente”, diz. No �ltimo domingo de junho, o pai se irritou com o filho enquanto ele fazia o dever de casa. De acordo com o boletim de ocorr�ncia, ele deu tapas, socos, pontap�s e, por �ltimo, uma rasteira que fez a crian�a cair e bater a cabe�a na quina de um m�vel.  

O acusado, de 26 anos, prestou socorro ao filho: desenrolou a l�ngua do garotinho, que entrou em convuls�o, deu um banho frio na tentativa de reanim�-lo e, finalmente, o levou a uma unidade de pronto-atendimento de Caratinga. Elias chegou a ser transferido para uma unidade de terapia intensiva (UTI) do Hospital Jo�o XXIII, na capital, mas n�o resistiu. Teve morte cerebral e a fam�lia doou todos os �rg�os. “Conforta saber que um pedacinho do meu neto est� batendo no peito de algu�m, que ele continua vivo em outras pessoas, em algum lugar deste Brasil. Ele n�o p�de sobreviver, mas ajudou a salvar outras vidas”, tenta consolar-se Maria Aparecida.   


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