
Longas horas sem descanso, sobrecarga de trabalho, press�o nas 24 horas do dia, preconceito, medo de contamina��o e muitos outros impactos emocionais e f�sicos em quase dois anos de pandemia. A vida dos profissionais de sa�de tem sido uma montanha-russa que parece, �s vezes, estar perto de sair do trilho. “Estamos em duas dire��es: do medo e das incertezas”, avalia um motorista de ambul�ncia de Belo Horizonte.
O cen�rio se torna mais dram�tico para os mais de 2 milh�es de homens e mulheres, de n�vel t�cnico e auxiliar, que exercem atividades de apoio na assist�ncia, no cuidado e no enfrentamento � COVID-19, conforme estudo in�dito da Funda��o Oswaldo Cruz (Fiocruz). O grupo de profissionais considerados “invis�veis e perif�ricos” inclui maqueiros (que conduzem as macas dos pacientes), motoristas de ambul�ncia, pessoal da manuten��o, de apoio operacional, equipe da limpeza, da cozinha, da administra��o e gest�o dos estabelecimentos.
Os resultados do estudo da Fiocruz apontam que 53% dos “invis�veis” da sa�de n�o se sentem protegidos contra a COVID-19 no trabalho. E mais: 80% dos trabalhadores e trabalhadoras vivem situa��o de desgaste profissional relacionado ao estresse psicol�gico, � sensa��o de ansiedade e ao esgotamento mental.
“Esses profissionais parecem ficar no ‘limbo’, numa situa��o de invisibilidade, embora desempenhando atividades muito importantes nos hospitais e em outras institui��es de sa�de. Com a pandemia, a situa��o deles, que j� era dif�cil, piorou, com as amea�as, agress�es, perda de direitos, constantes reivindica��es por equipamentos de prote��o individual (EPI), al�m do quadro dram�tico com o n�mero de mortes, esgotamento devido ao excesso de trabalho e os perigos n�o s� de contamina��o como de recontamina��o”, diz a coordenadora do estudo, a pesquisadora da Fiocruz, Maria Helena Machado, belo-horizontina residente no Rio de Janeiro (RJ).
Os problemas mais vis�veis e complexos est�o na Regi�o Sudeste (Rio de Janeiro, S�o Paulo e Minas Gerais), com registros, especialmente quanto a dificuldades de acesso a EPIs, nos estados do Norte e Nordeste. Na sequ�ncia, os resultados ser�o divulgados nos conselhos regionais e entidades de classe, e apresentado �s autoridades.
Cidadania social
Se causou mais de 600 mil mortes no Brasil, a pandemia, conforme a pesquisa, aprofundou “as desigualdades, a explora��o e o preconceito”. Na conversa com os trabalhadores, os n�meros ganham a emo��o armazenada desde os primeiros casos da COVID no pa�s – em 11 de mar�o, a Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS) declarou o novo coronav�rus uma pandemia.
T�cnica de enfermagem no hospital municipal de Pedro Leopoldo, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, Dilceia Madalena de Almeida, de 46 anos e m�e de um rapaz de 18, diz amar a profiss�o escolhida, ter muita f� em Deus e receber apoio dos irm�os, pois n�o tem mais os pais. Mas durante a pandemia, sofreu preconceitos e at� a perda do namorado. “Parei de ir ao hospital vestida de branco, porque escutava, no ponto de �nibus, as pessoas dizendo assim: ‘Olha l� a COVID-19! Trabalho com a vida, ent�o n�o dava ouvidos, pois sei que no hospital estamos mais protegidos”, conta Dilceia.
Logo nos primeiros meses da pandemia, Dilc�ia se surpreendeu com o namorado ap�s sete anos de relacionamento. Temendo a contamina��o da m�e idosa, ele terminou o namoro, informando que s� falariam por telefone. Muito tempo depois, quando a vida parecia voltar ao normal, ela o perdoou, os dois reataram a rela��o, mas, com o tempo, achou melhor p�r um ponto final. “Muita gente acha que somos m�quinas, rob�s, se esquecem de que somos seres humanos, que temos fam�lia.”
O esgotamento, o medo e o estresse permeiam os relatos. “Sou motorista de ambul�ncia h� 10 anos e, com certeza, esse per�odo de quase dois anos � o pior desse tempo todo. Vivemos sempre na incerteza, com o medo de chegar em casa, pelos riscos de contamina��o. H� um grande cansa�o f�sico e mental, e nem h� jeito de relaxar”, conta Edivaldo Santos, de 42 anos, motorista de ambul�ncia.
Outro condutor de ambul�ncia, de 26, que prefere n�o se identificar, destaca a sobrecarga de trabalho e os olhares enviesados do preconceito. “As demandas aumentaram durante a pandemia, ent�o, consequentemente, trabalhamos muito mais horas, ficando al�m do tempo no servi�o. No per�odo mais barra pesada, sofremos preconceito, pois, quando falava sobre minha ocupa��o, as pessoas logo pensavam em COVID”.
Mais valoriza��o para a profiss�o � fundamental, garante Ana Paula Gon�alves Maia, t�cnica de enfermagem em dois hospitais de BH. “Corremos riscos de contamina��o, enfrentamos insalubridade e, nesse per�odo da pandemia, ficamos sobrecarregados. Devido � doen�a, sempre h� funcion�rios ausentes, e muitas vezes um substitui tr�s ou quatro pessoas”, afirma.
Os dados alarmantes da pesquisa n�o surpreendem o diretor de sa�de do Sindicato dos Trabalhadores da Sa�de de BH e Regi�o (Sindeess), Joaquim Valdomiro Gomes, para quem � not�ria a situa��o da categoria, que inclui t�cnicos de enfermagem, maqueiros (que conduzem as macas com os pacientes nos hospitais), alguns motoristas de ambul�ncia, pessoal de recep��o, de higieniza��o e servi�os de cozinha, entre outros. “H� uma sobrecarga de trabalho, muitos afastamentos causados pela doen�a, o que faz um trabalhar por dois, junto ao medo constante de contamina��o”.
Situa��o de desgaste
O estudo que analisou as condi��es de vida, o cotidiano do trabalho e a sa�de mental desse contingente revela que 80% deles vivem situa��o de desgaste profissional relacionado ao estresse psicol�gico, � sensa��o de ansiedade e ao esgotamento mental. A falta de apoio institucional foi citada por 70% dos participantes do estudo e 35,5% admitiram sofrer viol�ncia ou discrimina��o durante a pandemia. A maioria de tais agress�es (36,2%) ocorreu no ambiente de trabalho, na vizinhan�a (32,4%) e no trajeto casa-trabalho-casa (31,5%).
A pesquisa “Os trabalhadores invis�veis da Sa�de: condi��es de trabalho e sa�de mental no contexto da COVID-19 no Brasil” contou com a participa��o de 21.480 trabalhadores de 2.395 munic�pios de todas as regi�es do pa�s e descortinou a dura realidade de pessoas cujas vidas s�o marcadas pela aus�ncia de direitos sociais e trabalhistas. Apesar de j� atuarem h� dois anos na linha de frente de combate � pandemia, muitos deles sequer possuem “cidadania de profissional de sa�de”, destaca Maria Helena Machado. Tamb�m integram a lista de participantes do levantamento os t�cnicos e auxiliares de enfermagem, de sa�de bucal, de radiologia, de laborat�rio e an�lises cl�nicas, agentes comunit�rios de sa�de e agentes de combate �s endemias.
Nas palavras da pesquisadora, a gravidade da situa��o: “As consequ�ncias da pandemia para esse grupo de trabalhadores s�o muito mais desastrosas. S�o pessoas que trabalham quase sempre cumprindo ordens de forma silenciosa e completamente invisibilizadas pela gest�o, por suas chefias imediatas, pela equipe de sa�de em geral e at� pela popula��o usu�ria que busca atendimento e assist�ncia. Portanto, s�o desprovidos de cidadania social, t�cnica e trabalhista. Falta o valioso pertencimento de sua atividade e ramo profissional.” A pesquisa in�dita, portanto, evidencia “uma invisibilidade assustadora e cruel nas institui��es”, cujo resultado � o adoecimento, o desest�mulo em rela��o ao trabalho e a desesperan�a.
Resultados
Os resultados do estudo da Fiocruz apontam que 53% dos “invis�veis” da sa�de n�o se sentem protegidos contra a COVID-19 no trabalho. O medo generalizado de se contaminar (23,1%), a falta, escassez e inadequa��o do uso de EPIs (22,4%) e a aus�ncia de estruturas necess�rias para efetuar o trabalho (12,7%) foram mencionados como os principais motivos de desprote��o. Ainda de acordo com 54,4% dos trabalhadores, houve neglig�ncia acerca da capacita��o sobre os processos da doen�a (Covid-19) e os procedimentos e protocolos necess�rios para o uso de EPIs.
As exig�ncias f�sicas e mentais a que esses trabalhadores est�o submetidos durante as atividades realizadas – press�o temporal, interrup��es constantes, repeti��o de a��es e movimentos, press�o pelo atingimento de metas e tempo para descanso, entre outros fatores – foram consideradas muito altas por 47,9% deles. Al�m disso, 50,9% admitiram excesso de trabalho.
As mulheres (72,5%) representam a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras invis�veis da sa�de. S�o pretos/pardos 59%. A pesquisa mostra que 32,9% deles s�o jovens com at� 35 anos, e a maior parte (50,3%) se encontra na faixa et�ria entre 36 e 50 anos. Ainda assim, embora sejam relativamente jovens, 23,9% admitiram ter comorbidade anterior � COVID-19, chamando a aten��o para: 31,9% hipertens�o; 15,1% obesidade; 12,9% doen�as pulmonares; 11,7% depress�o; e diabetes 10,4%.
Mais da metade (52,6%) trabalha nas capitais e regi�es metropolitanas. O estabelecimento de atua��o predominante s�o os hospitais p�blicos (29,3%), seguidos pela aten��o prim�ria em sa�de (27,3%) e os hospitais privados (10,7%). Os resultados da pesquisa tamb�m revelam que 85,5% possuem jornada de trabalho de at� 60 horas semanais, e 25,6% necessitam de outro emprego para sobreviver.
“Temos depoimentos recorrentes da realiza��o de ‘plant�es extras’ para cobrir o colega faltoso – por afastamento provocado por contamina��o ou morte por COVID-19 –, mas eles n�o consideram essa atividade outro emprego, e sim um bico. Muitos deles declaram fazer atividade extra como pedreiro, ajudante de pedreiro, seguran�a ou porteiro de pr�dio residencial ou comercial, motot�xi, motorista de aplicativo, bab�, diarista, manicure, vendedores ambulantes etc. � um mundo muito desigual e socialmente inaceit�vel”, explica a coordenadora do estudo.
“Perif�ricos” na Sa�de
- 80% dos trabalhadores e trabalhadoras vivem situa��o de desgaste profissional relacionado ao estresse psicol�gico, � sensa��o de ansiedade e ao esgotamento mental
- 53% dos “invis�veis e perif�ricos” da sa�de n�o se sentem protegidos contra a COVID-19 no trabalho
- 35,5% admitiram sofrer viol�ncia ou discrimina��o durante a pandemia. A maioria de tais agress�es (36,2%) ocorreu no ambiente de trabalho, na vizinhan�a (32,4%) e no trajeto casa-trabalho-casa (31,5%)
- 54,4% dos trabalhadores dizem que houve neglig�ncia acerca da capacita��o sobre os processos da COVID-19 e os procedimentos e protocolos necess�rios para o uso de equipamentos de prote��o individual (EPIs)
Depoimentos
PRECONCEITO
Dilc�ia Madalena de Almeida, t�cnica de enfermagem de 48 anos e m�e de jovem de 18
ESGOTAMENTO
Edivaldo Santos, de 52 anos, motorista de ambul�ncia em Pedro Leopoldo, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte
SOBRECARGA
“As demandas aumentaram durante a pandemia, ent�o, consequentemente, trabalhamos muito mais horas, ficando al�m do tempo no servi�o. No per�odo mais barra pesada, sofremos preconceito, pois, quando falava com algu�m sobre minha ocupa��o, as pessoas logo pensavam em COVID”
M, de 26 anos, motorista de ambul�ncia em Belo Horizonte
DESVALORIZA��O
Ana Paula Gon�alves Maia, t�cnica de enfermagem em hospital de Belo Horizonte
MEDO
Margarete Braga, de 48 anos, enfermeira h� 17 anos, trabalha em dois hospitais
ESTRESSE
“Se n�o fosse a fam�lia, minha mulher e minha filha, n�o sei como aguentaria, pois o trabalho na pandemia mexeu muito com meu lado psicol�gico. Al�m de maqueiro, sou mec�nico de caminh�o e motoboy... ent�o imagina o estresse, que aumenta pelo nervosismo de muitos pacientes. Ter v�rias ocupa��es � fundamental para garantir o sustento”
T, de 25 anos, maqueiro (auxiliar de t�cnico de enfermagem que conduz as macas com os pacientes)
PREOCUPA��O
“Os profissionais de sa�de enfrentam uma enorme sobrecarga de trabalho, h� muitos afastamentos causados pela doen�a, o que faz um trabalhar por dois... sem falar no medo constante do coronav�rus. H� um percentual alto de contamina��o”
Joaquim Valdomiro Gomes, diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Sa�de de BH e Regi�o (Sindeess), que representa 35 mil profissionais
AMEA�AS
Maria Helena Machado, coordenadora do estudo da Fiocruz “Os trabalhadores invis�veis da Sa�de: condi��es de trabalho e sa�de mental no contexto da COVID-19 no Brasil”
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