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Estado de Minas VIDAS EM TRANSI��O

1917: o mundo em que BH noticiava primeiras cirurgias de "mudan�a de sexo"

Cirurgia pioneira que redefiniria g�nero de rapaz criado como mulher at� os 19 anos despertou espanto e preconceito em sociedade abalada pela 1� Guerra Mundial


10/08/2022 04:00 - atualizado 10/08/2022 06:20

Belo Horizonte - MG. Reproduções de páginas antigas do Jornal Estado de Minas para matéria sobre operações de desambiguação de sexo em Belo Horizonte no início do século 10, em 1917
(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

 

Eram tempos sombrios e de fatos hist�ricos no mundo �s v�speras da pandemia da gripe espanhola, que ainda seria respons�vel pela morte de milh�es de pessoas. Estavam em cena a Grande Guerra (1914-1918), como era ent�o chamada a Primeira Guerra Mundial, as apari��es de Nossa Senhora aos tr�s meninos pastores, em F�tima, Portugal, e a Revolu��o de Outubro de 1917, na R�ssia, que derrubou o regime czarista de mais de 300 anos. Foi tamb�m naquele m�s que Belo Horizonte assistia a uma “revolu��o” na medicina, e, consequentemente, nos costumes, com o caso “Em�lia-David”: uma cirurgia que definiu a redesigna��o de g�nero de um rapaz com malforma��o genital, criado como menina at� os 19 anos.

 

As cirurgias feitas no Hospital S�o Vicente de Paulo (atual Hospital das Cl�nicas), pelo m�dico David Corr�a Rabello (1885-1939), conhecidas popular e equivocadamente na �poca como opera��es de “mudan�a de sexo”, assombravam e desafiavam a tradicional sociedade mineira do in�cio do s�culo 20. Interven��es que “tratavam”, na verdade, diagn�sticos de pseudo-hermafroditismo ou hiposp�dia (malforma��o genital que acomete pessoas do sexo masculino) e mudaram a vida da jovem Em�lia Soares (1898-1951), que, no p�s-bisturi, se tornou David Soares, mas tamb�m de mais de duas dezenas de pacientes, alguns operados contra a pr�pria vontade.

 

Reproduções de páginas antigas do Jornal Estado de Minas
(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

 

Nesta quarta reportagem da s�rie “Vidas em transi��o – De Em�lia a David”, o Estado de Minas prop�e uma viagem no tempo para conhecer “a voz corrente” no fim da d�cada de 1910 e nas duas seguintes, quando se registraram mais de 20 casos semelhantes, com repercuss�o na imprensa local e de outros estados.

 

POR QUE BH?

 

A novidade intrigou o povo, e o cronista Moacyr Andrade (1897-1979), do Estado de Minas e do extinto Di�rio da Tarde, registrou, sob o pseud�nimo de Jos� Clemente: “Mas a verdade � que a sequ�ncia de tais fatos obriga-nos a uma pergunta, que a pr�pria ci�ncia, segundo supomos, n�o estava apta a responder satisfatoriamente. A pergunta � esta: por que esses epis�dios s� se d�o em Belo Horizonte?”. E completava: “Por que nunca lemos que fato id�ntico ocorrera em S�o Paulo, em Porto Alegre, em Blumenau, em Juazeiro ou no Alto Purus? S� e s� em Belo Horizonte”.

 

Reproduções de páginas antigas
(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)

 

O professor, pesquisador e escritor Luiz Morando, autor do trabalho “Miloca que virou David – Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939)”, que recupera a mem�ria daquela �poca, explica: “O imagin�rio popular foi alimentado ao longo do tempo, criando a impress�o de que Belo Horizonte era uma cidade onde era poss�vel ocorrer qualquer situa��o esdr�xula. Essa teia tamb�m foi respons�vel pela cria��o de um substrato social que avan�a pelas d�cadas seguintes no que concerne � constru��o de imagens e representa��es sobre a homossexualidade na cidade”.

 

REPERCUSS�O

 

Os fatos ocorridos levaram um cronista carioca a escrever, em 1939, que, quando os leitores lessem a manchete “Uma senhora deu � luz um batr�quio”, n�o teriam dificuldade em entender que se tratava de “fato registrado em Belo Horizonte ou em outro local de Minas, mas sempre not�cia de Belo Horizonte”. E foi al�m: “S�o as mulheres que se tornam homens, s�o homens que se alimentam de terra da casa velha, � o bode que d� leite, s�o duas mulheres casadas como esposo e esposa, � o m�dium Chico Xavier fazendo revela��es sensacionais”.

 

A refer�ncia a duas mulheres casadas decorre de “den�ncia” registrada em setembro de 1931. Estabelecido havia 15 meses em Belo Horizonte, o casal Dorival Rocha Reples e Idalina Aversani foi denunciado � Delegacia de Costumes de Belo Horizonte por falsidade ideol�gica. Ap�s exame, Dorival foi identificado como Maria Manuela Perez. As duas mulheres haviam se casado em 4 de maio de 1930, em Ribeir�o Preto (SP), e se mudado para BH, onde Dorival trabalhava como alfaiate.

 
1917
Soldados no front europeu, diante de casas em ru�nas devido aos combates do primeiro conflito b�lico de propor��es mundiais, que acabaria por tamb�m afetar o Brasil no ano de 1917 (foto: Arquivo O Cruzeiro/EM)
 

O Brasil e o mundo em 1917

Fatos que marcaram o ano da primeira opera��o de desambigua��o de sexo em Belo Horizonte

  • Queda do czar na R�ssia (15 de mar�o), na primeira fase da Revolu��o Russa
  • A Gr�-Bretanha declara o caf� como produto sup�rfluo (30 de mar�o) no contexto da Grande Guerra, proibindo a importa��o do produto e atingindo em cheio a economia brasileira
  • Comunica��o direta por cabo entre o Brasil e os Estados Unidos (em mar�o) quebra o monop�lio ent�o detido pela Gr�-Bretanha
  • Entre maio e outubro, tr�s pequenos pastores portugueses anunciam vis�es da Virgem Maria, em F�tima (Portugal) 
  • Vindo do ex�lio (abril), L�nin sa�da a revolu��o socialista
  • Rompimento das rela��es Brasil-Alemanha (11 de abril), ap�s ataque alem�o a navio brasileiro. Em junho, em resposta a novos ataques, o pa�s ingressaria na Primeira Guerra Mundial
  • Revolu��o Russa de outubro de 1917: bolcheviques, liderados por L�nin e Trotski, chegam ao poder e d�o in�cio � experi�ncia do socialismo real
  • Greve geral: a cidade de S�o Paulo � completamente paralisada em virtude de movimento organizado para reivindicar melhores condi��es de trabalho
  • Declara��es de guerra norte-americanas. Os Estados Unidos declaram guerra � Alemanha e ao Imp�rio Austro-H�ngaro

Fontes: Sistema Integrado de Com�rcio Exterior do governo brasileiro/Internet
 
 
“O patinho torto” e outras ironias
 
No mesmo m�s da cirurgia de desambigua��o de sexo de Em�lia Soares, o jornal carioca Gazeta de Not�cias (16/10/1917) publica uma reportagem sobre o caso intitulada “As surpresas da vida”. O texto inspirou o maranhense Coelho Neto (1864-1934), radicado no Rio de Janeiro, a escrever a pe�a teatral “O patinho torto”, em cujo in�cio transcreve uma parte da mat�ria para esclarecer a origem da obra, “uma com�dia ligeira”, que remete ao “caso aut�ntico” tratado “picarescamente”, conforme observa Luiz Morando em sua pesquisa.

Citando a reportagem da Gazeta de Not�cias, o poeta Joaquim Mendes de Oliveira (1878-1918), que trabalhava no Di�rio de Minas, publicou em outubro de 1917 e em 1918, v�rios textos c�micos “alfinetando” David Soares. Entre eles, um coment�rio datado de 17/1/1918: “Quem v� cara n�o v� cora��o... Este ditado caiu de moda depois que a Em�lia virou David. Agora, o ditado da moda � este: Quem v� cara n�o v�... Documentos”. Mendes de Oliveira, que assinava a coluna Buscap�s, com o pseud�nimo de Pirot�cnico, morreu em meados de 1918, v�tima da gripe espanhola.

Houve outros casos, divulgados pela imprensa da �poca e registrados no trabalho de Luiz Morando, que ca�ram na boca do povo. Um dele relatava que “em maio de 1934, o artista Norberto A. Aymonino apresentou show de transformismo para grande p�blico sob o nome art�stico de Aymond (um trocadilho com o nome de uma adolescente que fora operada por doutor Rabello em BH). Os espet�culos tiveram muito p�blico, com sess�es esgotadas no Teatro Municipal (futuro Cine Metr�pole, hoje demolido, no Centro da cidade), e depois nos cinemas Brasil, Avenida e Floresta”. Outro, em dezembro de 1934, dava conta de que “uma moradora da cidade, presa em flagrante, travestia-se de motorneiro de bonde para mais facilmente se encontrar com namorados, � noite”.
 
 


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