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Estado de Minas VIDAS EM TRANSI��O

Na BH de 1917, cirurgias redefiniram g�nero de pacientes at� contra vontade

Terceira reportagem de s�rie do EM mostra que opera��es de desambigua��o de sexo chocaram os costumes da �poca e mudaram a vida inclusive de quem n�o queria


09/08/2022 04:00 - atualizado 09/08/2022 06:35

 Jornais tratavam intervenções como cirurgia de mudança de sexo e chamavam a atenção para alterações de nome e padrão de comportamento
Jornais tratavam interven��es como cirurgia de mudan�a de sexo e chamavam a aten��o para altera��es de nome e padr�o de comportamento (foto: Fotos: Juarez Rodrigues/EM/D.a press/Reprodu��o )

O caso “Em�lia-David”, epis�dio em que uma cirurgia na Belo Horizonte de 1917 definiu a redesigna��o de g�nero de um rapaz com malforma��o genital criado como menina at� os 19 anos, n�o foi o �nico a ganhar as p�ginas dos jornais no come�o do s�culo passado como opera��o de “mudan�a de sexo”. Uma express�o tecnicamente equivocada, j� que se referia a diagn�sticos de pseudo-hermafroditismo ou “hiposp�dia” – condi��o em que �rg�os genitais masculinos apresentam semelhan�a grosseira com a anatomia feminina, dado o pequeno desenvolvimento do p�nis, que lembra vagamente um clit�ris hipertrofiado.

At� a d�cada de 1930, houve em BH registro de ocorr�ncia de mais 20 casos semelhantes � hist�ria de Em�lia Soares (1898-1951), de 19 anos, que se submeteu a uma cirurgia e se tornou David Soares, com mudan�a na ent�o carteira de idade (hoje de identidade). Operado, David se casaria com uma antiga colega de turma do col�gio feminino e passaria a trabalhar como funcion�rio p�blico. Como ele, a maioria dos outros pacientes esteve sob os cuidados do m�dico David Corr�a Rabello (1885-1939) no Hospital S�o Vicente de Paulo, atual Hospital das Cl�nicas, em Belo Horizonte.

Naturais do interior de Minas, muitas pessoas que passaram pelo bisturi do doutor Rabello ficaram conhecidas, maldosamente, como “M�rio-Maria” ou “Maria-M�rio”. O Estado de Minas localizou fam�lias com antepassado nessa condi��o, mas, “por uma quest�o de respeito � mem�ria do parente”, algumas pessoas preferiram n�o dar entrevista. Assim, determinados nomes ser�o omitidos nesta terceira reportagem da s�rie “Vidas em transi��o – De Em�lia a David”.

SOB O ARCO-�RIS
 
Em 28 de janeiro de 1933, o EM mostrava a hist�ria de uma mulher de 20 anos, que na �poca morava havia pouco mais de 12 meses em BH. Submetida a uma cirurgia para retirada do ap�ndice, “levantou-se transformada em robusto rapaz”. Eis um trecho da reportagem, intitulada “O resultado surpreendente de uma banal opera��o de apendicite”.

“A mo�a que se deitara na mesa operat�ria, sob os cuidados do dr. David Rabello, levantou-se transformada em robusto rapaz. A hist�ria pitoresca de um menino que foi criado por seus pais como se pertencesse ao sexo feminino. Uma lenda antiga culpa o arco-�ris de certas metamorfoses humanas. Diz a supersti��o popular que o homem que passa sob o arco-�ris transforma-se em mulher. E reciprocamente”, dizia o texto da �poca.

Prosseguiu o rep�rter: “No planalto em que foi plantada Belo Horizonte, o arco-�ris � um acontecimento raro. Entretanto, o destino parece ter escolhido a capital mineira para palco de suas mais extravagantes e ir�nicas experi�ncias. A popula��o guarda mem�ria de uma senhorita que, subitamente, com o aux�lio de conhecido cirurgi�o, transformou-se em varonil�ssimo mancebo, hoje casado e exemplar pai de fam�lia.”

No seu recente trabalho “Miloca que virou David – Intersexualidade em Belo Horizonte (1917-1939)”, o escritor, pesquisador e professor Luiz Morando revela a frequ�ncia de registro, nos textos jornal�sticos de ent�o, “de certo processo de metamorfose, emprego ir�nico e abusivo do prefixo ‘ex’” e um contraste entre os termos “gentil senhorita” e a figura forte do Davi b�blico. “Na pequena capital mineira de ent�o, David Soares encarnava o mito do indiv�duo que, ao passar sob o arco-�ris, tinha seu sexo alterado, confrontando a rigidez biol�gica e cient�fica do binarismo sexual”, escreveu o autor.


Maioria dos pacientes tinha origem humilde


Luiz Morando chama a aten��o para a origem social humilde da maioria das pessoas afetadas pela repentina mudan�a de g�nero a partir da cirurgia de desambigua��o de sexo, entre elas uma pessoa da zona rural de Curvelo, na Regi�o Central de Minas. A exemplo de outras pessoas, era chamada de “mulher-homem”, e n�o sabia explicar por que, “possuindo fei��o masculina, voz aguda, m�sculos desenvolvidos, um bu�o sombreando-lhe o l�bio superior”, fora criada como pertencente ao sexo feminino.

Em fevereiro de 1934, o poeta Djalma Andrade narrava outras a��es do doutor Rabello, no extinto Di�rio da Tarde: “Ser ou n�o ser... A quest�o/pode trazer confus�o/Toda a incerteza de Hamlet.../Somente o fero escalpelo/do doutor David Rabello/Inspira confian�a e f�”.

Dois meses depois, a maioria dos jornais “ocultou” a cirurgia de adolescente do interior de Minas, da fam�lia de um prefeito. Em junho, foi a vez de a servente de uma escola de Santa Luzia, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, submeter-se ao “bisturi milagroso” de Rabello e “passar a ser um aut�ntico homem”.

O relato est� em mat�ria do Estado de Minas de 7 de junho de 1934: “Ap�s queixar-se de fortes dores no abd�men � diretora, essa examinou a funcion�ria, pensando tratar-se de apendicite, e constatou o ‘fen�meno’”. A mat�ria diz que, ap�s a cirurgia, a d�cima do tipo realizada pelo doutor Rabello, o paciente foi muito visitado por diversos curiosos da capital e da cidade vizinha.


Maior parte das intervenções foi feita pelo pioneiro médico David Corrêa Rabello (1885-1939) no Hospital São Vicente de Paulo, atual Hospital das Clínicas, em Belo Horizonte
Maior parte das interven��es foi feita pelo pioneiro m�dico David Corr�a Rabello (1885-1939) no Hospital S�o Vicente de Paulo, atual Hospital das Cl�nicas, em Belo Horizonte (foto: Arquivo P�blico Mineiro/Reprodu��o)

Ela n�o queria, mas foi operada


Em Lagoa Santa, tamb�m na Grande BH, em setembro de 1938, ganhou destaque o caso emblem�tico de empregada dom�stica de 27 anos, tamb�m com diagn�stico de malforma��o. Conforme reportagem do EM, ela declarava que queria continuar vivendo como mulher. Trazida a BH, foi alvo de um debate sobre a conveni�ncia de uma cirurgia contra a sua vontade, e se posicionou: “Se for para virar homem, n�o me deixarei operar”. Mesmo sob  protestos, a decis�o da paciente n�o foi respeitada: o pai autorizou a cirurgia em 4 de setembro de 1938.

“Essas hist�rias culminam com as ideias centrais que as narrativas apresentadas cont�m: corrigir um (suposto) erro da natureza, restabelecer uma (suposta) verdade, desconsiderar a vontade do (a) paciente”, ressalta o pesquisador Luiz Morando. Em sua avalia��o, o caso de Lagoa Santa � emblem�tico sob v�rios aspectos: “O lugar do paciente face ao homem da lei (no caso, o m�dico); o conflito de interesses a ser resolvido, sempre pendente para o lado da autoridade m�dica ou paterna; o discurso do masculino marcando a diferen�a de g�neros e hierarquizando-os; o foco distorcido sobre a monstruosidade – para os m�dicos, � necess�rio corrigir a natureza para a paciente deixar de ser monstro; para a paciente, ela passa a ser monstro ao ter ‘corrigido’ seu corpo, n�o se conformando com o ‘malfeito’”.

RECUSA
 
Em fevereiro de 1939, uma lavadeira do Grande Hotel de Belo Horizonte, identificada como homem ao fazer um exame para obter a carteira de sa�de, tamb�m se recusou a fazer a cirurgia. Coincidentemente, uma de suas irm�s havia sido considerada “mulher-homem” e operada. Curioso � que a divulga��o do caso da lavadeira ocorreu uma semana ap�s a morte, em 10 de fevereiro de 1939, do m�dico David Rabello, que, apesar das controv�rsias, tornou-se cirurgi�o respeitad�ssimo, teve seus m�ritos cient�ficos reconhecidos e se tornou patrono da cadeira de n�mero 62 da Academia Mineira de Medicina. 



Vidas em transi��o  Ontem: M�dico que fez 1ª interven��o para desambigua��o de sexo em BH deixou seu nome marcado na hist�ria 
Amanh�: No t�nel do tempo – Como eram BH e o mundo na �poca em que Em�lia se tornou David


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