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Estado de Minas VIDAS EM TRANSI��O

Fotos revelam mais sobre o enredo que fez Em�lia virar David na BH de 1917

Imagens de �poca do rapaz criado como mulher at� os 19 anos e do cirurgi�o que o operou trazem detalhes sobre personagens da hist�ria que marcou a BH de 1917


12/08/2022 04:00 - atualizado 14/09/2022 16:03

A chef e historiadora Juliana Duarte
A chef e historiadora Juliana Duarte com a foto do piquenique da Escola Normal em que estavam sua av� e Em�lia (abaixo), que chama a aten��o pela estatura e pela gola alta que usava para tampar o pomo de ad�o (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)


Se uma imagem vale mais do que mil palavras, o que dizer, ent�o, de dois retratos em preto e branco, com o tom caracter�stico do tempo, que, um s�culo depois, ajudam a iluminar personagens da marcante hist�ria da primeira cirurgia de desambigua��o de sexo de Belo Horizonte? Um registro de 1915 imortaliza passeio de um grupo de 15 jovens na �rea ent�o conhecida como Caixa-d'�gua (atual Parque Amilcar Vianna Martins), no Bairro Cruzeiro, na Regi�o Centro-Sul da capital. No outro, tamb�m da segunda d�cada do s�culo passado, um m�dico, rodeado da equipe, opera corajosamente a si mesmo.

As duas fotografias de grande impacto visual trazem o foco para a vida do m�dico David Corr�a Rabello (1885-1939) e da ent�o jovem estudante Em�lia Soares, da Escola Normal, apelidada Miloca. Ele, mineiro de Diamantina, formado em medicina no Rio de Janeiro (RJ), com especializa��o em cirurgia em hospitais europeus. Ela, jovem de 19 anos, que, ap�s passar pelo bisturi de Rabello, em cirurgia pioneira em Minas, torna-se David Soares, com mudan�a na carteira de identidade, nova defini��o de g�nero e outros rumos na vida.

Nesta sexta mat�ria da s�rie “Vidas em transi��o – De Em�lia a David”, o Estado de Minas mostra os bastidores da fotografia do passeio no parque da turma de Miloca, guardada por uma fam�lia de BH, que se torna um s�mbolo das reportagens. “Minha av� est� na foto, � a s�tima da fila, que tem Em�lia na frente (� direita). Estavam fazendo um piquenique, lazer que era muito comum na �poca”, conta a chef e historiadora Juliana de Souza Duarte, que mant�m o retrato com muito carinho, inclusive na moldura antiga.

Nascida em 1895 em Sabar�, N�sia Felic�ssimo de Souza chegou crian�a a BH, com a fam�lia que morava em Ouro Preto, antiga capital de Minas, devido � transfer�ncia do pai, funcion�rio p�blico. “Minha av� viveu 105 anos e foi amiga de Miloca. Sabia da hist�ria da cirurgia e de algumas particularidades. Uma delas � que, ap�s a opera��o, 'a' colega cortou as tran�as”, detalha Juliana.
 
foto do piquenique da Escola Normal em que estavam sua avó e Emília
(foto: ARQUIVO ACERVO DE JULIANA DE SOUZA DUARTE)
 
Perto dos 18 anos, conta ela, com base nos relatos da av�, Em�lia come�ou a usar roupa com gola alta, “pois o gog� (pomo de Ad�o) ficava aparecendo muito, e era uma forma de escond�-lo”. Esse � um detalhe que chama a aten��o na foto do piquenique, no qual Em�lia se destaca pela altura na “escadinha” formada pelo grupo de meninas da Escola Normal.

IMPRESS�ES N�sia Felic�ssimo de Souza deixou registradas suas impress�es sobre os tempos de juventude, na cidade que era “uma poeira danada”, conforme reproduz a neta Juliana. “Sou feliz de ter convivido com ela, tinha um humor muito fino”, recorda-se. O depoimento foi colhido pelo N�cleo de Hist�ria Oral da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Acervo de Entrevistas, em 1989.

Assim disse dona N�sia sobre Em�lia, de quem foi colega no �ltimo ano do curso normal: “Tinha amizade com ela, e n�o sabia que ela era homem. Que coisa esquisita! Uma vez, falamos sobre menstrua��o, ela estava na roda e falou: ‘Eu que n�o tenho isso’, e foi saindo. A�, a gente tinha de desconfiar, pois ela estava com 18 anos. As mo�as todas j� tinham ficado mo�as, e ela, n�o”.

Vale destacar que, conforme o relato do doutor Rabello em sua tese sobre o caso, o pai de Em�lia a levou a seu consult�rio, em setembro de 1917, exatamente pelo fato de at� ent�o a jovem n�o ter menstruado.

CERCA DE ARAME Com seu jeito bem mineiro de falar, dona N�sia contou que sua fam�lia e a de Em�lia eram vizinhas em casas da Rua Para�ba, no Bairro Funcion�rios, na Regi�o Centro-Sul de BH. “(�ramos) vizinhas de cerca de arame farpado. A gente pedia as coisas emprestadas. Passava pela cerca... N�o ia l� fora na rua, n�o”.

O momento que dona N�sia chamou de “virada de Em�lia para homem” tem, como coadjuvante, uma “namorada” que Em�lia tinha na escola, e estava de viagem marcada, de trem, �s 5h da madrugada. “Em�lia, ent�o, disse ao pai que iria � esta��o acompanhar a mo�a, ao que o pai bateu o p� e avisou: 'N�o, senhora, n�o vai, n�o'.” Mas, decidida, pulou o port�o de ferro da casa, sem o pai perceber “pois estava dormindo”. No dia seguinte, � tarde, o guarda da rua bateu avisou ao pai sobre a sa�da da filha. “E foi ent�o que ‘seu’ Nico Soares, o pai foi procurar o doutor David Rabello, que era muito famoso”, relata a ex-colega de escola.

Os detalhes seguintes apontam para o desfecho da hist�ria, que “Belo Horizonte inteirinho comentou”. No consult�rio, � espera, depois de “andar para l� e para c�”, o pai de Em�lia, o funcion�rio p�blico Ant�nio Soares, vi�vo havia dois anos, perguntou ao m�dico. “Ent�o, doutor, e minha filha?”, ao que David Rabello respondeu: “Filha n�o, meu filho”. Esse relato de dona N�sia veio acompanhado de uma observa��o: “Foi o primeiro caso, no Brasil, que veio a p�blico”. Depois, a ex-Em�lia, rebatizado David em homenagem ao cirurgi�o que lhe operou, casou-se com Rufina Fidalgo, com quem come�ou a namorar na escola. “Foi minha colega”, relatou a senhora.


O médico David Rabello e outra proeza que entrou para sua biografia: uma cirurgia feita em si mesmo, provavelmente de apêndice, diante de atenta plateia da área
O m�dico David Rabello e outra proeza que entrou para sua biografia: uma cirurgia feita em si mesmo, provavelmente de ap�ndice, diante de atenta plateia da �rea (foto: ACERVO DO CEMEMOR/FACULDADE DE MEDICINA/UFMG)


Um cirurgi�o que virou celebridade


O m�dico David Rabello j� era, na BH dos idos de 1917, cirurgi�o renomado, cuja fama corria a cidade. Nos dias atuais, seria uma celebridade, com letra mai�scula. Entre suas proezas, est� uma cirurgia que fez em si mesmo, al�m, claro, da mais famosa. Entre outros documentos, ela est� registrada no livro de mem�rias “Beira-mar”, do tamb�m m�dico e escritor mineiro Pedro Nava (1903-1984), que escreveu sobre o colega: “Era homem c�lebre e conhecid�ssimo no Brasil pela opera��o que fizera numa ‘mo�a’ normalista de Belo Horizonte, transformando-a num macho perfeito. Tratava-se dum caso de p�nis incluso com hiposp�dia, e essa abertura dava a impress�o de vagina defeituosa e tapada. Pois o nosso David desencastoou a caceta, fez-lhe pl�stica, mais a uretral e transformou em homem a ‘mulher’ que se deitara na sua mesa operat�ria.”

O acervo do Centro de Mem�ria da Medicina (Cememor) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um espa�o precioso para pesquisa e visita��o, na Regi�o Hospitalar de Belo Horizonte, guarda documentos, desenhos e fotografias sobre o caso que, na �poca, ficou conhecido na imprensa, equivocadamente, como uma assombrosa cirurgia de “mudan�a de sexo”.

Entre as fotos do Cememor, est� uma em que o doutor Rabello faz uma cirurgia em si mesmo, diante de uma plateia atenta da �rea m�dica. Conforme a biografia do patrono da Cadeira 62 da Academia Mineira de Medicina, escrita por Christobaldo Motta de Almeida, h� o seguinte relato sobre o m�dico que, ap�s retornar da Europa, onde fez especializa��o em cirurgia na Alemanha e Fran�a, entre 1912 e 1914, abriu um consult�rio em Belo Horizonte e “bem-sucedido profissionalmente, de atitudes corajosas, operou a si pr�prio”.

Estudos recentes com base na fotografia indicam que a cirurgia, provavelmente, foi de ap�ndice. Como no registro h� v�rias pessoas auxiliando, em hospital, e era d�cada de 1910, ocorreu certamente na Santa Casa de Miseric�rdia, ent�o o �nico da capital.
No Cememor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), est� o trabalho de Rabello para concorrer ao cargo de professor substituto da ent�o Faculdade de Medicina de Bello Horizonte, em 1918. Em um volume arquivado, est�o duas teses que lhe deram o primeiro lugar no pleito: “Um caso de malforma��o genito-urin�ria tratado cirurgicamente” e “A interven��o cir�rgica na diphteria”.


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