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Estado de Minas VIDAS EM TRANSI��O

BH, 1917: medicina "transformou" Em�lia em David em um ambiente de atraso

Opera��o que redefiniu g�nero de rapaz criado como mulher at� os 19 anos surpreendeu uma cidade inaugurada antes de ficar pronta e onde faltava at� o b�sico


11/08/2022 04:00 - atualizado 14/09/2022 16:02


Uma cidade em crescimento, inaugurada apenas 20 antes, sem a infraestrutura necess�ria e com servi�os urbanos prec�rios. Assim era Belo Horizonte em 1917, quando veio � luz a hist�ria de Em�lia Soares (1898-1951), nascida no segundo ano de funda��o da nova capital, estudante da Escola Normal que aos 19 anos se tornou David Pereira Soares ap�s cirurgia pioneira de desambigua��o de sexo. No Hospital S�o Vicente de Paulo, hoje Hospital das Cl�nicas, Em�lia, diagnosticada com hiposp�dia (malforma��o genital que acomete pessoas do sexo masculino), foi operada pelo m�dico David Corr�a Rabello (1885-1939), mudando de g�nero, de nome e de rumo na vida.

A hist�ria alcan�ou grande estardalha�o nos jornais de �poca e caiu na boca do povo, equivocadamente, como um pioneiro caso de mudan�a de sexo. Depois da cirurgia realizada em outubro de 1917, David se casou com uma antiga colega da Escola Normal e trabalhou como funcion�rio p�blico, sempre acompanhado de perto pela imprensa. Em 10 de janeiro de 1918, uma nota social no Di�rio de Minas caprichou no deboche: “Fez anos ontem o inteligente jovem David Soares. Comemorando este acontecimento �ntimo, David (‘n�e’ Em�lia) reuniu em sua casa as suas antigas amiguinhas e os seus amigos atuais, aos quais ofereceu um ‘soir�e’, que ocorreu animada”.
Belo Horizonte-MG. Vista do coreto e do Palácio da Liberdade na Praça da Liberdade na década de 1910
(foto: Fotos: Arquivo Estado de Minas )

Apesar de o caso Em�lia-David ter se tornado marcante pelo ineditismo da opera��o, ocorrida na ent�o pouco desenvolvida capital mineira, at� o fim da d�cada de 1930, seriam registrados mais de 20 casos semelhantes, muitos com grande divulga��o na imprensa. Neste quinto epis�dio da s�rie “Vidas em transi��o – De Em�lia a David”, vamos revisitar a primeira cidade planejada do Brasil, que, em 1917, mais se assemelhava a uma “capital em obras”.
 
Belo Horizonte-MG. Vista do coreto e do Palácio da Liberdade na Praça da Liberdade em 1920
A Pra�a da Liberdade, em BH, em dois momentos do in�cio do s�culo 20, com o Pal�cio da Liberdade ao fundo e o coreto identificado at� hoje, mas ainda sem a maioria dos pr�dios do entorno do complexo: uma cidade em constru��o, cuja sociedade tradicional foi surpreendida pela proeza da medicina
 
 
Mas como era a capital dos mineiros, inaugurada em 12 de dezembro de 1897 no lugar do antigo Curral del-Rei, aos p�s da Serra do Curral? “Era uma cidade incipiente”, resume o historiador Yuri Mello Mesquita, doutorando em hist�ria ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e estudioso da trajet�ria de BH. “Faltava quase tudo, pois a cidade foi inaugurada �s pressas, sem a conclus�o de muitas obras. V�rios servi�os urbanos eram prec�rios, e os problemas aumentavam com o crescimento populacional”, define.

SEM INFRAESTRUTURA Nos idos de 1912, Belo Horizonte tinha, em todo o seu territ�rio, 38 mil habitantes. Oito anos depois, j� chegava a 55 mil. “Houve um crescimento vertiginoso e n�o previsto. A comiss�o construtora da nova capital, chefiada pelo engenheiro Aar�o Reis (1853-1936), tinha planejado a expans�o ‘de dentro para fora’, ou seja, da zona urbana (dentro dos limites da Avenida do Contorno) para a zona suburbana, onde foram planejadas as col�nias agr�colas, voltadas para abastecimento da popula��o. Mas ocorreu movimento inverso. Tanto que, na d�cada de 1940, eram 200 mil habitantes e, na d�cada de 1960, cerca de 1 milh�o.”

Num cen�rio, portanto, de precariedade urbana, a cidade enfrentava uma s�rie de problemas. “As ruas n�o eram cal�adas, da� haver muita poeira. Assim, no ver�o, as vias p�blicas ficavam lamacentas, ao contr�rio dos meses de inverno, quando a seca imperava. Tamb�m na esta��o chuvosa eram comuns grandes enchentes, com transbordamento do C�rrego do Acaba Mundo, do Ribeir�o Arrudas e de outros cursos d’�guas que cortam a cidade”, explica Yuri Mesquita.

Outros dramas urbanos eram frequentes e atazanavam a vida dos primeiros belo-horizontinos, dos moradores da antiga capital de Minas, Ouro Preto, que vieram transferidos para BH, e dos imigrantes que chegavam em busca de oportunidades. “N�o havia ilumina��o p�blica direito, o projeto de arboriza��o ficou por terminar, havia muitos lotes vazios e as autoridades n�o fizeram as galerias subterr�neas, conforme previsto no projeto de constru��o”, enumera o historiador. “Ent�o, os esgotos dom�sticos eram lan�ados nos c�rregos, sem tratamento, onde havia rede p�blica de esgotamento. Mas a cidade tinha redes informais de esgoto, que pioravam a condi��o sanit�ria do munic�pio.”

CRISE ECON�MICA E, se na “economia dom�stica” ainda faltava muito para p�r ordem na casa, maus ventos que sopravam da Europa n�o ajudavam na tarefa. BH, assim como o restante do Brasil, sofria com reflexos da Grande Guerra, como era ent�o chamada a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Segundo Yuri Mesquita, foram tempos muito dif�ceis para a popula��o, especialmente no abastecimento de alimentos.

“Embora BH fosse a capital de Minas, n�o tinha autonomia administrativa, dependendo diretamente das decis�es do governo estadual. Para se ter uma ideia da situa��o, em 20 anos, a cidade teve nada menos que 13 prefeitos, alguns com curt�ssimo mandato, pois eram nomeados, e n�o eleitos. O primeiro pleito se deu apenas em 1936, assim mesmo para a C�mara Municipal”, ressalta.


Foto mostra semáforo no mesmo local em que peça histórica está instalada hoje: veículos particulares surgiram na capital só na década de 1940
Foto mostra sem�foro no mesmo local em que pe�a hist�rica est� instalada hoje: ve�culos particulares surgiram na capital s� na d�cada de 1940 (foto: arquivo estado de minas)

Tra�os da capital do in�cio do s�culo 20

 
Ainda que aos trancos, como mostra a hist�ria, Belo Horizonte cresceu (n�o como planejado), se estruturou (n�o tanto quanto necess�rio), e assumiu o posto de terceira capital do Sudeste. Hoje, um giro pelas ruas da metr�pole de mais de 2,7 milh�es de habitantes ainda revela pr�dios da �poca da constru��o, como alguns edif�cios do conjunto arquitet�nico da Pra�a da Liberdade, na Regi�o Centro-Sul.

Outros im�veis sumiram do mapa, devido � press�o da especula��o imobili�ria sobre o patrim�nio edificado. Faz parte da lista de perdas a casa onde morou o m�dico David Corr�a Rabello, que assombraria a sociedade da �poca com as opera��es de “mudan�a de sexo” – na verdade, interven��es para desambigua��o de �rg�os genitais, mas que efetivamente representavam para os pacientes uma transi��o de g�nero. 

O im�vel onde vivia e clinicava o renomado cirurgi�o, na esquina da Avenida Jo�o Pinheiro com a Rua Bernardo Guimar�es, vizinho ao Grupo Escolar Afonso Pena, que hoje ainda funciona como escola estadual, deu lugar a um pr�dio. “O consult�rio dele ficava no por�o da casa, mas era um por�o mais alto. Eu vi o doutor Rabello algumas vezes, quando voltava para casa do Grupo Escolar Afonso Pena”, recorda Maria Am�lia Amaral Teixeira de Salles, hoje com 91 anos, nascida e criada em BH.

O historiador Yuri Mello Mesquita, doutorando em história ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
%u201CFaltava quase tudo, pois BH foi inaugurada �s pressas, sem a conclus�o de muitas obras. Servi�os urbanos eram prec�rios, e os problemas aumentavam com o crescimento populacional%u201D, Yuri Mello Mesquita, historiador, doutorando em hist�ria ambiental na UFMG (foto: Cristina Horta/EM/D.A Press - 7/10/15 )


Hoje, quem sobe a avenida at� a esquina com a Pra�a da Liberdade ainda pode ver o primeiro sinal de tr�nsito de Belo Horizonte, colocado no cruzamento da Rua Gon�alves Dias com a Avenida Jo�o Pinheiro. Ele data de 1929. Alvo de v�rias batidas de ve�culos, a pe�a � a deixa para o historiador Yuri Mello Mesquita falar sobre o tr�nsito na BH das primeiras d�cadas. “Os ve�culos como propriedade particular s� entraram em circula��o, de fato, na d�cada de 1940. Nos anos 1910 e 1920, havia bondes, trens, poucos �nibus e charretes para o deslocamento dos moradores”, afirma.

REFLEX�O Ao mencionar as primeiras d�cadas de Belo Horizonte, Yuri faz uma reflex�o sobre a “metropoliza��o” que ocorre a partir de 1930, ap�s a crise de 1929 e intenso fluxo populacional do interior para as capitais, registrado em toda a Am�rica Latina. “Belo Horizonte se metropolizou e adquiriu caracter�sticas e contornos que ainda hoje definem sua conforma��o social e espacial. A cidade cresceu em ritmo acelerado e os problemas urbanos pioraram: como a falta d’�gua, as enchentes, a defici�ncia no recolhimento de lixo, a polui��o, o desafio no abastecimento de g�neros aliment�cios, a falta de cemit�rios, o transporte p�blico insuficiente e as doen�as g�stricas, consequ�ncia direta das defici�ncias sanit�rias.”

Caso fizesse uma viagem pelo t�nel do tempo no sentido inverso ao desta reportagem, o funcion�rio p�blico David, criado como Em�lia at� os 19 anos e cuja transi��o de g�nero inquietou a sociedade da �poca, talvez se surpreendesse – assim como seus contempor�neos – ao constatar que muitos dos problemas da ent�o incipiente Belo Horizonte de 1917 ainda habitam a capital, mais de 100 anos depois. 


Vidas em transi��o  

Ontem: O mundo em convuls�o no qual a sociedade de BH acompanhava pelo notici�rio a primeira cirurgia de “mudan�a de sexo”
  
Amanh�: A outra opera��o hist�rica do doutor Rabello: imagens revelam mais sobre as vidas do m�dico e de seu paciente mais conhecido


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