

Na ter�a-feira de Carnaval os meninos pediram comida para uma vizinha por um buraco na porta do apartamento onde estavam. Eles j� haviam sido vistos entrando no local junto com Terezinha Pereira dos Santos e Lalesca Pereira dos Santos, m�e e filha, apontadas como as principais suspeitas de abandon�-los.
Depois de alimentar as crian�as, a vizinha acionou a Pol�cia Militar. Ao chegarem no local os militares perceberam que a porta de entrada estava trancada com uma corrente e cadeado. Dentro do apartamento os militares encontraram um colch�o de solteiro no ch�o, vasilhas sujas na cozinha e nenhuma comida.
De acordo com o boletim de ocorr�ncia, as crian�as foram encaminhadas para o Hospital Odilon Behrens com quadro de desnutri��o e desidrata��o severa. Segundo o laudo m�dico do exame de corpo e delito, o menino mais novo, de 6 anos, pesava 13 kg, apresentava diversas escoria��es pelo corpo e not�ria perda muscular.
Nas imagens tiradas no momento do exame � poss�vel ver os ossos da costela, ombro, joelho e outras articula��es bem protuberantes. Ainda conforme o relat�rio, a sa�de do menino estava cr�tica devido a falta de nutrientes. O mais velho, de 9 anos, tamb�m estava desidratado e desnutrido, mas com menor gravidade.
Os meninos ficaram internados por cerca de 15 dias. Eles foram acompanhados pela equipe do Conselho Tutelar da Prefeitura de Belo Horizonte e pelo tio materno, que veio de Valpara�so de Goi�s quando soube da morte de um terceiro sobrinho, Emanuel, tamb�m em fevereiro deste ano.
Em depoimento � Pol�cia Civil, a vizinha do apartamento da Lagoinha informou que no mesmo dia do resgate Terezinha e Lalesca estiveram no local e chegaram a perguntar sobre o paradeiro dos garotos. Ela foi informada que os meninos foram levados para o Hospital Odilon Behrens. At� esse momento, as crian�as ainda n�o haviam dito que a mulher n�o era sua av� e que as mantinha trancadas e as for�ava a realizar trabalhos bra�ais em um lote em S�o Joaquim de Bicas.
J� no hospital os meninos informaram � PM que Terezinha, tamb�m referida como Maria, mandou que eles mentissem caso algu�m perguntasse seus nomes.
Ao pesquisarem o nome dos meninos no banco de dados, a pol�cia descobriu que a m�e deles, K�tia Cristina Alves Robes, est� presa na Penitenci�ria de Vespasiano desde o dia 6 de fevereiro, suspeita pela morte de outro filho, uma crian�a de 4 anos. Conforme consta no processo que apura as circunst�ncias do abandono, os garotos pensavam que a m�e havia morrido em consequ�ncia da Covid-19.
Crian�a morre ap�s diversas agress�es
A crian�a de 4 anos morreu no dia 6 de fevereiro de 2023, ap�s dar entrada na UPA de S�o Joaquim de Bicas, na Grande BH. Ele foi levado at� o local pela m�e. Conforme laudo do exame de necropsia, a crian�a sofreu parada cardiorrespirat�ria, estava desnutrida e desidratada. A causa da morte foi uma pancada na cabe�a por objeto contundente.
Ainda de acordo com o laudo, a situa��o da crian�a era bastante dram�tica. Ela apresentava hematoma roxo no olho esquerdo, machucado no l�bio superior, machucados no lado esquerdo do rosto e hematoma na parte interna dos l�bios. Estava muito magro, com costelas aparentes, escoria��es no peito, escoria��es na coxa direita, ferimentos circulares no tornozelo esquerdo e na perna direita, escoria��es na lombar e hematoma intracraniano.
As vers�es contradit�rias da m�e
Ao prestar depoimento para a Pol�cia Militar, K�tia apresentou duas vers�es sobre o que teria acontecido com o filho. Na primeira, afirmou que estava dormindo em um quarto com sua outra filha de 1 ano, e os outros filhos de 3 anos dormiam em outro quarto. Ela disse que pela manh� acordou e quando foi chamar o filho percebeu que ele estava desmaiado.
K�tia ent�o teria gritado pelo seu namorado, identificado como Diego Pinheiro dos Santos, que estava trabalhando na �rea externa do lote. Assim que o homem entrou no im�vel, tentou reanimar a crian�a e, n�o obtendo resposta, o levou para a UPA.
J� em uma nova vers�o, a mulher disse que dormia no quarto com os filhos, todos na mesma cama. Quando o dia clareou, K�tia teria levantado e viu que um dos meninos estava ca�do de bru�os no ch�o, ao lado da cama. Quando o virou de barriga para cima, percebeu que a crian�a estava com hematomas nos olhos e gritou pelo namorado, Diego.
Ao ser questionada sobre o que teria causado os ferimentos no corpo do filho, a m�e tamb�m apresentou vers�es divergentes. Entre elas, que o menino havia ca�do, que ele teria se queimado com uma lagarta, e que o problema no tornozelo seria causado por uma bota molhada.
Na ocasi�o, Diego afirmou que estava capinando o lote quando ouviu os gritos de K�tia. Ao chegar no quarto em que ela e os filhos estavam, encontrou o menino desacordado e tentou fazer massagem card�aca nele e, em seguida, o levou para a UPA.
De acordo com a sua defesa, o homem e K�tia n�o possu�am qualquer tipo de relacionamento amoroso. A informa��o tamb�m foi dita pela m�e dele, Terezinha, no dia da morte da crian�a. Conforme consta no registro policial, a mulher e os filhos dormiam separados do homem.
Como as fam�lias se conheceram
J� na Penitenci�ria de Vespasiano, K�tia escreveu uma carta contando sobre como come�ou a morar no mesmo lote que a fam�lia de Diego. Segundo seu relato, ela, os quatro filhos e o marido, Wellington Camelo Gomes, chegaram a Belo Horizonte h� cerca de um ano e meio, vindos de Jo�o Pinheiro, na Regi�o Noroeste de Minas Gerais. Ainda na rodovi�ria da capital, ela teria conhecido Terezinha, que ofereceu trabalho em seu s�tio, em S�o Joaquim de Bicas. L�, conheceu Diego e Lalesca, filhos de Terezinha.
No entanto, segundo depoimento de Terezinha, no dia da pris�o de K�tia pela morte do filho, no terreno de sua casa funciona um centro esp�rita de candombl�. Ela ent�o teria acolhido a mulher e os filhos ap�s eles pedirem por abrigo.
Suspeita de c�rcere privado
Em entrevista ao Estado de Minas, no dia 24 de fevereiro, o antigo advogado de K�tia relatou o que teria acontecido � fam�lia logo depois que chegaram a S�o Joaquim de Bicas. O ent�o defensor contou que, depois de dois meses no s�tio, Terezinha e Lalesca teriam dito � K�tia e Wellington que eles poderiam receber indeniza��es da Vale pelo rompimento da Barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019. As mulheres teriam, ainda, se oferecido para fazer o cadastro do casal, mas iriam querer parte do valor.
Conforme o relato de K�tia, escrito na Penitenci�ria de Vespasiano, logo ap�s a reuni�o para falar sobre a poss�vel indeniza��o, ela e os filhos foram levados para Belo Horizonte. Ela contou, ainda, que depois que voltou para o s�tio na Grande BH nunca mais viu seu marido. "Quando chegamos no s�tio, ela falou para mim que meu marido tinha ido embora. A� eu comecei a chorar e ela disse para eu n�o preocupar com nada que ela ia me ajudar".
Ainda segundo a mulher, no dia 4 de janeiro de 2022, Terezinha e Lalesca a levaram para a capital para que ela tivesse sua filha ca�ula, que nasceu prematura. Dez dias depois do parto, Terezinha teria informado que um m�dico do Hospital Sofia Feldman, onde o procedimento foi realizado, ligou afirmando que a beb� deveria voltar para a unidade para ficar internada. A rec�m-nascida foi ent�o retirada dos bra�os da m�e sob o pretexto de que durante a interna��o teria que ficar sozinha.
K�tia conta que assim que a filha foi levada, ela voltou para o s�tio de S�o Joaquim de Bicas e, depois de um tempo, foi informada que a filha havia morrido. No entanto, em outubro do mesmo ano, nove meses ap�s o nascimento do beb�, Terezinha teria a informado que a filha n�o havia morrido.
Ainda no per�odo de puerp�rio, antes de saber que a filha ca�ula estava viva, K�tia relatou que sempre era mantida separada dos filhos homens e que os via muito pouco, apenas quando estava molhando as plantas do terreiro do s�tio. Mesmo assim, ela explica que n�o conseguia ter contato pr�ximo com os meninos.
Em um trecho da carta, a m�e das crian�as conta que certa vez foi levada para um "quarto subterr�neo" e que, dias depois, durante a noite, conseguiu conversar com o filho mais velho. Ela contou que o menino dizia estar com saudade e que ele e os irm�os tamb�m eram mantidos presos, sendo permitido apenas que trabalhassem. O garoto ainda teria dito que Terezinha o havia obrigado a gravar um v�deo, e que caso n�o o fizesse, iria apanhar.
Ainda de acordo com um dos primeiros advogados de K�tia, logo depois da conversa ela nunca mais soube dos filhos mais velhos, de 6 e 9 anos. Ainda segundo o advogado, K�tia achava que os filhos estavam mortos.
A reportagem do Estado de Minas entrou em contato com o novo representante legal da mulher, que permanece presa no Pres�dio de Vespasiano. Por meio de nota, o advogado afirmou que a defesa da mulher n�o vai se manifestar antes da elucida��o do caso. "Todos assuntos relacionados � a��o penal ser�o discutidos endoprocessualmente".
Crian�as viviam cotidiano de agress�es e atividades for�adas
Dias depois de darem entrada no Hospital Odilon Behrens, os dois meninos resgatados no apartamento de BH participaram de uma entrevista de Escuta Especializada, realizada por um perito da Pol�cia Civil. De acordo com o relat�rio, ao qual a reportagem do Estado de Minas teve acesso, o menino de 9 anos contou sobre o dia em que ele e o irm�o foram encontrados pela vizinha do im�vel da Rua Itapecerica, no bairro Lagoinha.
Conforme relato, as crian�as teriam ficado sozinhas de 3 a 4 dias. Antes do abandono, estavam no im�vel Terezinha, Lalesca e suas filhas. Dias depois, as mulheres foram embora, deixando os garotos trancados em c�modos diferentes. Segundo o menino, um deles ficou debaixo do sof� e o outro dentro de um arm�rio. Ao perceber que as mulheres n�o iriam voltar, ele acabou saindo de onde estava e indo ao encontro do irm�o, que estava chorando e pedindo comida. Foi quando ele decidiu acionar a vizinha alegando fome.
Sobre como era a vida antes de ir para o apartamento no Bairro Lagoinha, o menino disse que morava com a m�e e os irm�os em um s�tio de Terezinha, em S�o Joaquim de Bicas. Ele afirma que o terreno era grande, "uns quatro lotes", com v�rias casas, "uma pior que a outra". L�, ele e o irm�o ficavam em um quarto que tinha um buraco na parede.
Era comum que os meninos ficassem afastados um do outro, isso porque, segundo o menino, Terezinha dizia que eles n�o davam certo juntos. Al�m disso, no s�tio as crian�as n�o podiam ver televis�o, apenas trabalhar. � perita, ele contou que era respons�vel por carregar terra e �gua, molhar plantas, cavar buracos "com ferramenta pesada" e capinar. As tarefas tamb�m eram repassadas para as outras crian�as.
Ao ser questionado sobre sua ida � escola, o garoto afirmou que Terezinha n�o queria matricul�-lo em nenhuma institui��o de ensino, porque eles poderiam "ficar fazendo fofoca" de que ela os colocava para trabalhar.
Em rela��o aos machucados pelo seu corpo, ele informou que foram causados ou por excesso de trabalho ou por ter apanhado. A crian�a disse que um machucado em seu pulso foi feito por Diego, filho de Terezinha, quando o teria pegado tentando "ca�ar" comida. Ainda segundo o relato, Terezinha ajudava o filho a agredir as crian�as, chegando a colocar um pano em suas bocas para que n�o gritassem.
Nomes falsos e v�deos suspeitos
Sobre a rela��o com a m�e, o filho contou que ela j� teve tr�s namorados, e que todos a espancavam. De acordo com o menino, desde o dia que a m�e conheceu o padrasto ela "ficou m�", e sempre batia nos filhos.
O menino disse que Terezinha os instruiu a sempre usarem nomes falsos. Al�m disso, o menino contou que a mulher os mandou dizer que nunca morara no s�tio de S�o Joaquim de Bicas, que n�o iam para a escola por terem medo de serem mortos pelo padrasto, que n�o a conheciam, que moravam na rua, que usavam drogas e que ingeriam bebida alco�lica.
A reportagem do Estado de Minas tamb�m teve acesso a tr�s v�deos, que teriam sido gravados por Terezinha, em data e local incertos. Em uma das imagens, o menino aparece sozinho sentado em uma cadeira de pl�stico. Na segunda, ele aparece orientando o garoto sobre o que falar, e depois de um corte na grava��o o outro menino repete o que o irm�o disse. Em um terceiro v�deo, os dois filhos de K�tia aparecem descal�os em frente a uma parede com revestimento de pedra.
"Minha m�e pegava o dinheiro do Bolsa Fam�lia, dava para o meu padrasto usar droga. Eu que tinha que sair para arrumar comida, arrumar as coisas, a� se eu n�o chegasse com nada eles me espancaram. A� a gente tinha que chegar com muita coisa s� para eles 'usar' droga. Eles vendiam as coisas que eu arrumava, eu ganhava brinquedo, essas coisas, roupa, tudo novo, e eles 'vendia' para usar droga. Meu padrasto me espancava demais, minha m�e ficava s� deitada, pegava o Bolsa Fam�lia e dava para ele usar droga. [..] Eu n�o morava em lugar nenhum, a� n�s morava na rua, ficava na rua, n�o tinha jeito de n�s estudar", disse o menino de 9 anos.