Se havia alguma d�vida de que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro e o presidenci�vel democrata Joe Biden est�o em lados pol�ticos opostos, o debate entre Biden e o presidente Trump na �ltima semana tratou de dissip�-las. Na ocasi�o, Biden, favorito para vencer o pleito de 3 de novembro pelas atuais pesquisas, criticou a devasta��o da Amaz�nia e aventou at� san��es econ�micas ao pa�s.
O meio ambiente, no entanto, est� longe de ser o �nico tema de discord�ncia entre Biden e Bolsonaro. O ex-vice-presidente americano est� no centro de uma das empreitadas pelas quais o atual presidente brasileiro mais demonstrou desprezo e resist�ncia: a apura��o, pela Comiss�o Nacional da Verdade (CNV), de crimes e viola��es cometidos por agentes p�blicos durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.
Em 17 de junho de 2014, Biden, o ent�o vice-presidente na gest�o Barack Obama, desembarcou em Bras�lia com um objeto especial na bagagem: um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977. A partir de informa��es passadas n�o s� por v�timas, mas por informantes dentro das For�as Armadas e dos servi�os de repress�o, os relat�rios americanos detalhavam informa��es sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.At� aquele momento, a maior parte dos documentos era considerada secreta pelo governo dos Estados Unidos, que apoiou e colaborou com a ditadura durante boa parte do per�odo em que os militares estiveram no poder.
Biden sabia bem do que se tratava. E sabia tamb�m que produziria impacto real ao passar a m�dia para as m�os da ent�o presidente brasileira Dilma Rousseff, ela mesma uma das oposicionistas torturadas nos por�es da ditadura.
� certo que o governo americano poderia ter enviado o material por internet, pela embaixada nos Estados Unidos.
Mas a gest�o Obama-Biden queria gravar seu nome no ato de abertura dos documentos, como um manifesto pela transpar�ncia e pelos direitos humanos.
Mais do que isso, queria melhorar rela��es diplom�ticas com base na troca de informa��es altamente relevantes para a hist�ria de pa�ses como Brasil, Argentina e Chile.
No caso do Brasil, isso era ainda mais estrat�gico j� que a revela��o, meses antes, de que a Ag�ncia Nacional de Seguran�a americana (NSA, na sigla em ingl�s) havia espionado conversas da mandat�ria brasileira abalou o alicerce das rela��es entre os dois pa�ses.
"Estou feliz de anunciar que os Estados Unidos iniciaram um projeto especial para desclassificar e compartilhar com a Comiss�o Nacional da Verdade documentos que podem lan�ar luz sobre essa ditadura de 21 anos, o que �, obviamente, de grande interesse da presidente", afirmou Biden, sorridente, ao lado de Dilma.
Sem ditadura
A pr�pria defini��o dada por Biden do regime militar � hoje refutada por Bolsonaro, que nega ter havido ditadura no pa�s.
"Espero que olhando documentos do nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", concluiu Biden.
Cinco anos ap�s esse encontro entre Dilma e Biden, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro desqualificou por completo as revela��es feitas pela CNV, das quais os documentos trazidos por Biden s�o pe�a fundamental.
"A quest�o de 64 n�o existem documentos se matou ou n�o matou, isso a� � balela, est� certo?", disse Bolsonaro.
O presidente respondia � imprensa, que questionava uma declara��o sua dada no dia anterior para atingir o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Bolsonaro disse pra Santa Cruz que poderia esclarecer a ele como seu pai havia desaparecido.
De acordo com a Comiss�o Nacional da Verdade, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, foi visto pela �ltima vez em fevereiro de 1974, quando foi preso no Rio de Janeiro por agentes do DOI-Codi. Oliveira jamais voltou a ser visto. Ele morreu nas m�os dos agentes.
"Comiss�o da Verdade? Voc� acredita em Comiss�o da Verdade?Voc� quer documento para isso, meu Deus do c�u? Documento � quando voc� casa, quando voc� se divorcia. Eles t�m documento dizendo o contr�rio?, acrescentou Bolsonaro.
Mas, afinal, o que h� nos documentos trazidos por Biden?

"O suspeito � deixado nu, sentado e sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada por v�rias horas. Na cela h� alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decib�is. Ent�o, o detido � interrogado por um ou mais agentes, que o informam qual crime acreditam que a pessoa tenha cometido e que medidas ser�o tomadas caso n�o coopere. Nesse ponto, se o indiv�duo n�o confessa, e se os agentes consideram que ele possui informa��es valiosas, ele � submetido a um crescente sofrimento f�sico e mental at� confessar."
"Ele � colocado nu, em uma pequena sala escura com um ch�o met�lico, que conduz correntes el�tricas. Os choques el�tricos, embora alegadamente de baixa intensidade, s�o constantes e eventualmente se tornam insuport�veis. O suspeito � mantido nessa sala por muitas horas. O resultado � extrema exaust�o mental e f�sica, especialmente se a pessoa � mantida nesse tratamento por dois ou tr�s dias. Em todo esse per�odo, ele n�o recebe comida nem �gua."
O texto acima � um trecho de um documento de sete p�ginas enviado pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, em 1973, e trazido por Biden em sua visita.
A comunica��o diplom�tica informa que 126 pessoas teriam passado por tratamento parecido ao relatado, al�m de outras formas de sev�cias, como o "pau de arara". O informe � feito n�o s� com base em depoimentos de v�timas, mas de informantes militares, cuja identidade aparece protegida por trechos apagados no documento.
Detalhes
"Esse � um dos relat�rios mais detalhados sobre t�cnicas de tortura j� desclassificados pelo governo dos Estados Unidos", afirmou � BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documenta��o Brasileiro do Arquivo de Seguran�a Nacional Americano, em Washington D.C.
Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos ajudam a lan�ar luz sobre v�rias atrocidades e t�cnicas (de tortura do regime). Eles s�o evid�ncias contempor�neas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros. Quase todo o mundo acredita neles. As pessoas que preferem n�o reconhecer a verdade sobre o que foi feito s�o os Bolsonaros e aqueles que realmente cometeram esses crimes".
Mas nem sempre Bolsonaro nega que a ditadura tenha cometido viola��es aos direitos humanos. Em julho de 2016, em uma entrevista � r�dio Joven Pan, ele afirmou: "O erro da ditadura foi torturar e n�o matar".
E dois anos mais tarde, em meados de 2018, quando j� estava em pr�-campanha presidencial, confrontado com a informa��o de um relat�rio da CIA, aberto em 2015 no escopo do mesmo projeto de desclassifica��o de Biden, que o presidente Ernesto Geisel teria aprovado a execu��o sum�ria de advers�rios do regime, o atual presidente disse � r�dio Super Not�cia: "Errar, at� na sua casa, todo mundo erra. Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu? Acontece."
Tortura e morte
Um dos outros documentos trazidos por Biden evidencia que a m�quina repressiva da ditadura brasileira n�o s� torturou como matou. Nele, o c�nsul-geral americano em S�o Paulo, Frederic Chapin, afirma que ouviu o relato de "um informante e interrogador profissional trabalhando para o Centro de Intelig�ncia Militar de Osasco", em S�o Paulo.

Em um telegrama de maio de 1973, Chapin escreve o seguinte: "Ele (o informante) explicou como havia quebrado uma c�lula 'comunista' envolvendo um agente da pol�cia civil. O policial foi for�ado a falar depois de ter tomado choques el�tricos nos ouvidos e mencionou sua conex�o com uma amiga, que foi imediatamente detida. Ela n�o foi cooperativa, no entanto, ent�o foi deixada no pau-de-arara por 43 horas, sem alimentos ou �gua."
"Isso a quebrou, nossa fonte contou. Tortura, de uma forma ou de outra, � pr�tica comum em interrogat�rios em Osasco. Ele tamb�m nos deu um relato em primeira m�o do assassinato de um subversivo suspeito, o que chamou de 'costurar' o suspeito, ou seja, dar tiros nele da cabe�a aos p�s com uma arma autom�tica."
O termo "costurar" seria refer�ncia a um m�todo para desfigurar o cad�ver e evitar sua futura identifica��o.
Assassinatos cometidos pela repress�o
O c�nsul Chapin relata ainda que "v�rios agentes de seguran�a nos informaram que suspeitos de terrorismo s�o mortos como pr�tica padr�o. Estimamos que ao menos doze tenham sido mortos na regi�o de S�o Paulo no ano passado (1972)".
Ao registrar as mortes em S�o Paulo, Chapin aponta para a atua��o do coronel do Ex�rcito Carlos Alberto Brilhante Ustra, o chefe do DOI-Codi paulista, um dos principais �rg�os de repress�o do pa�s, entre 1970 e 1974. Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser condenado civilmente pela Justi�a pelos crimes de tortura. Ele � tamb�m considerado um her�i e uma refer�ncia por Bolsonaro, que j� afirmou ter como livro de cabeceira a obra de Ustra, A verdade sufocada.
"Sou capit�o do Ex�rcito, conhecia e era amigo do coronel, sou amigo da vi�va. (...) o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra recebeu a mais alta comenda do Ex�rcito, a Medalha do Pacificador, � um her�i brasileiro", afirmou Bolsonaro em 2016.
Enquanto era deputado, no dia da vota��o da abertura de processo de impeachment da ent�o presidente Dilma Rousseff, naquele mesmo ano, Bolsonaro citou o militar em seu voto: "Perderam em 1964, perderam em 2016. (...) Pela mem�ria do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, pelo Ex�rcito de Caxias, pelas nossas For�as Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto � sim".
"S� terroristas"
Outro documento da leva de Biden desafia um argumento central de Bolsonaro sobre o per�odo: o de que o regime militar s� prendeu, torturou e matou "terroristas".
Em dezembro de 2008, quando o Ato Institucional n�mero 5, instrumento da ditadura que cassou liberdades individuais, completava 40 anos, o ent�o deputado federal Bolsonaro ocupou o plen�rio da C�mara para dizer: "Eu louvo os militares que, em 1968, impuseram o AI-5 para conter o terror em nosso Pa�s, (...) Mas eu louvo o AI-5 porque, pela segunda vez, colocou um freio naqueles da esquerda que pegavam em armas, sequestravam, torturavam, assassinavam e praticavam atos de terror em nosso Pa�s".

Mas em outubro de 1970, o servi�o diplom�tico americano no Brasil mandou uma comunica��o ao Departamento de Estado registrando os relatos de um cidad�o americano, Robert Horth, que havia sido confundido com um extremista e preso no DEOPS, a unidade de pol�cia pol�tica paulista.
Horth n�o era um comunista subversivo e afirmou aos diplomatas americanos que "cinco dos seis prisioneiros em suas celas eram absolutamente inocentes da acusa��o de subvers�o pol�tica".
Outro documento, de dezembro de 1969, d� for�a ao questionamento sobre os crimes reais dos alvos escolhidos pela repress�o ao informar que freiras dominicanas foram presas, humilhadas e torturadas em Ribeir�o Preto.
"Mais do que trazer novos fatos, os documentos americanos foram cruciais porque comprovaram muitos fatos a partir de uma fonte insuspeita. Estamos, afinal, falando de relat�rios da diplomacia dos Estados Unidos, que n�o tinham qualquer simpatia pelos oposicionistas de esquerda e que apoiavam os militares", afirmou � BBC News Brasil Pedro Dallari, relator da CNV.
Prova de que o governo americano era, naquele per�odo, abertamente a favor do regime est� em uma comunica��o do embaixador americano William Rountree de julho de 1972. Na carta, ele alerta ao Departamento de Estado que qualquer tentativa de fazer cr�ticas p�blicas contra o que qualifica como "excessos" cometidos contra os direitos humanos poderia "prejudicar nossas rela��es gerais".
CNV
Os documentos americanos tornaram-se especialmente importantes para a CNV diante da negativa das For�as Armadas Brasileiras de oferecer evid�ncias que corroborassem os depoimentos de v�timas de tortura em depend�ncias militares.
"Ao mesmo tempo em que chegavam os documentos americanos, receb�amos retorno dos militares dizendo que suas sindic�ncias n�o localizaram nada", afirma Dallari.
Kornbluh concorda que, enquanto muito da documenta��o brasileira do per�odo pode j� ter se perdido, os arquivos americanos s�o fonte importante para acessar a hist�ria brasileira.
"Parte dos militares brasileiros esconderam com sucesso a maioria de seus pr�prios documentos e mantiveram isso fora do escrut�nio p�blico. E conseguiram escapar de qualquer tipo de responsabilidade legal por seus crimes contra os direitos humanos. E ent�o os documentos americanos fornecem um hist�rico fidedigno de pelo menos alguns casos. E se as coisas mudarem no Brasil, essas s�o evid�ncias de crimes que ainda podem ser litigados", afirma o especialista, que menciona a lei da Anistia, de 1979, que impediu a responsabiliza��o criminal de agentes e oposicionistas por crimes cometidos durante a ditadura.
Em 2014, durante os trabalhos da CNV, o Ex�rcito brasileiro afirmou que n�o opinaria sobre o reconhecimento do Estado Brasileiro em rela��o �s torturas, enquanto a For�a A�rea e a Marinha disseram n�o ter provas para reconhecer, tampouco refutar as acusa��es de viola��es de direitos humanos nas d�cadas de 60 e 70.

O que o hist�rico diz sobre rela��o Brasil-EUA em poss�vel governo Biden?
Para Dallari, apesar de o golpe de 1964 ter recebido o apoio do governo americano, ent�o sob a batuta do democrata Lyndon Johnson, nas �ltimas d�cadas, os democratas deixaram claro ter interesse em colaborar com processos de investiga��o sobre atrocidades cometidas pelos governos na regi�o e o papel dos Estados Unidos nelas.
"Eu n�o tenho porque duvidar que Obama e Biden tivessem real interesse em abrir essas informa��es. E o primeiro presidente americano a se opor a viola��es dos direitos humanos na regi�o foi outro democrata, o presidente Jimmy Carter", diz ele, em refer�ncia ao presidente americano entre 1977 e 1981.
Na verdade, desde a administra��o Clinton, nos anos 1990, documentos secretos sobre ditaduras latino-americanas t�m se tornado p�blicos. Mas foi na gest�o Obama que essa abertura dos arquivos ganhou tons de pol�tica de rela��es exteriores, em algo que Kornbluh batizou de "diplomacia da abertura".
Al�m do Brasil, Argentina e Chile tamb�m receberam acesso a documentos, em um esfor�o americano para melhorar sua imagem e seu relacionamento na regi�o.
E com Biden e Dilma, o especialista afirma que esse tipo de diplomacia alcan�ou um de seus pontos mais altos, j� que as rela��es foram reconectadas depois da visita de Biden em 2014.
"Tenho certeza de que ele foi informado sobre o teor dos documentos. E � uma tarefa importante a de carregar esses documentos que descrevem viola��es graves dos direitos humanos durante a era militar. Certamente foi uma experi�ncia de aprendizado para o vice-presidente Biden e um lembrete pungente para ele dos horrores cometidos", diz Kornbluh.
Em conversas com a BBC News Brasil, conselheiros da campanha de Biden t�m dito que o tema dos direitos humanos � central para o candidato, especialmente na Am�rica Latina.
Mas embora ainda exista um grande arquivo intocado sobre a hist�ria da ditadura do Brasil, especialmente de informa��es dos �rg�os de intelig�ncia como FBI e CIA, � improv�vel que Biden fa�a qualquer nova abertura se vencer as elei��es.
Isso porque documentos secretos americanos sobre outros pa�ses s� podem se tornar p�blicos se os governos dessas na��es requisitarem acesso aos americanos. E hoje n�o h� interesse no governo brasileiro por esse tipo de informa��o.
"Naquele momento, a abertura foi importante e ajudou os dois pa�ses a se reaproximarem. Agora, em um poss�vel governo Biden, com Bolsonaro no Brasil, � um contexto completamente diferente. Mas se Bolsonaro cometer viola��es de direitos humanos, a administra��o Biden agiria de modo muito mais r�pido e negativo do que Trump e pressionaria Bolsonaro a parar", diz Kornbluh.
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