
Imagine um mundo assolado por uma pandemia altamente transmiss�vel. A orienta��o b�sica � para que as pessoas n�o se aglomerem, fiquem em casa na medida do poss�vel e evitem ao m�ximo qualquer evento p�blico. Em uma determinada localidade, contudo, um bispo insiste: contra o mal, � hora de refor�ar as preces. N�o em casa, mas nas igrejas. Com novenas, prociss�es e toda a sorte de devo��es.
Para alguns n�o passa de infeliz coincid�ncia, mas naquele ano a mortalidade por conta da doen�a nessa localidade foi mais de 14 vezes maior que em outra cidade que seguiu as determina��es sanit�rias, no mesmo pa�s.
Esta hist�ria, que lembra discuss�es do Brasil contempor�neo, aconteceu h� mais de 100 anos.Era a famigerada gripe espanhola de 1918. Madri, a capital da Espanha, tinha uma popula��o de 600 mil pessoas — 2,5 mil delas morreram pela doen�a, ou seja, 0,4%. Zamora, capital da prov�ncia hom�nima onde o bispo manteve intensa programa��o religiosa, perdeu 979 de seus 17.183 habitantes — o equivalente a 5,7% da popula��o, um �ndice um pouco superior aos 5% do restante da diocese, que teve 12.371 mortes em um universo de 247.341 habitantes.
Foi um verdadeiro colapso. Enquanto missas seguiram sendo realizadas diariamente, a prov�ncia viveu picos com at� 200 mortos por dia, como foi registrado em 12 de outubro na imprensa da �poca. O bispo Antonio �lvaro Ballano (1876-1927) garantiu seu lugar na hist�ria terrena como "o maior negacionista" daquela epidemia.
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"[Ele] organizou missas e prociss�es contra a epidemia, colocando � frente a figura de S�o Roque, protetor contra a peste", conta o historiador Victor Missiato, professor do Col�gio Presbiteriano Mackenzie Bras�lia, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Bras�lia) e pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Roque de Montpellier (c.1295-1327), santo da Igreja Cat�lica, � considerado o protetor contra a peste e outras doen�as contagiosas. Pouco se sabe sobre sua biografia, mas acredita-se que ele, nascido na regi�o de Montpellier, tenha sa�do em peregrina��o at� Roma quando tinha cerca de 20 anos.
J� na regi�o do L�cio, pr�ximo � cidade de Viterbo, ele encontrou a cidadezinha de Acquapendente completamente tomada pela epidemia da peste. Decidiu se voluntariar na assist�ncia aos doentes — e os relatos passaram a ser de curas milagrosas, em que ele fazia os doentes sararem apenas usando um bisturi e o sinal da cruz. A partir de ent�o, ele teria seguido carreira como curandeiro popular e m�stico, visitando as cidades mais afetadas pela peste.
Mas, voltemos a Zamora. �lvaro y Ballano teve uma carreira de ascens�o fant�stica na hierarquia da Igreja. Reconhecido como intelectual, logo se tornou padre e passou a lecionar hebraico e filosofia no semin�rio. Acompanhava com interesse os avan�os cient�ficos da virada do s�culo 20 — mas n�o os via como positivos para a humanidade; muito pelo contr�rio, acreditava que a ci�ncia afastava os homens de Deus.
Em 1913, com apenas 37 anos, foi nomeado bispo de Zamora. Logo em sua primeira carta pastoral para a diocese, citou o papel dos cientistas Isaac Newton (1642-1726) e Andr�-Marie Amp�re (1775-1836). N�o pela grandiosidade de suas descobertas mas, sim, atribuindo a eles a repuls�o da humanidade para com Deus.

Quando a gripe passou a tomar conta da Espanha, �lvaro y Ballano decidiu combater o v�rus com as armas da f�.
"O elemento do pecado enquanto causa da epidemia ainda era utilizado como instrumento divino contra a sociedade", contextualiza Missiato. "Trata-se de uma tradi��o de longa data do catolicismo ib�rico, que remonta desde os per�odos medievais."
"�lvaro y Ballano legava aos 'nossos pecados e ingratid�o' a puni��o epid�mica. Os �rg�os m�dicos foram muito criticados pelo bispo naquele per�odo."
Ele determinou que as igrejas n�o s� da capital Zamora como de toda a prov�ncia mantivessem suas portas abertas, suas atividades. E que incrementassem as devo��es, com realiza��o de novenas e prociss�es. Como pontua o historiador Missiato, "n�o se trata de mera coincid�ncia" a mortalidade superior que ocorreu em seguida.
Quando o Brasil vive um momento de descontrole da dissemina��o de covid-19 e h� uma contenda judicial pela abertura ou n�o dos templos religiosos, � inevit�vel comparar ambos os epis�dios hist�ricos.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes decidiu na segunda-feira (05/04) manter um veto � realiza��o de cultos religiosos no Estado de S�o Paulo, determinada pelo governador Jo�o Doria (PSDB) com objetivo de conter o cont�gio do coronav�rus.
A decis�o contraria liminar concedida pelo ministro da Corte Kassio Nunes Marques, que no s�bado (03/04) liberou a realiza��o de celebra��es religiosas em todo o pa�s, desde que cumpridas medidas de redu��o do cont�gio como uso de m�scaras e limita��o do p�blico a 25% da capacidade do local.
Devido ao choque entre as duas decis�es, a quest�o deve ser levada para julgamento no plen�rio do STF na quarta-feira (07/04). A tend�ncia � que a libera��o dos cultos autorizada por Marques seja derrubada.
"Em ambos os acontecimentos, a defesa pela abertura de cultos ocorreu nas fases mais expansivas e mortais das epidemias", pontua Missiato.
"No entanto, em Zamora, al�m dos cultos, ocorreram prociss�es com altos �ndices de aglomera��es, cujo objetivo era enfrentar o v�rus atrav�s da ora��o, atrav�s do culto a S�o Roque, considerado um dos santos protetores contra doen�as desse tipo. No Brasil contempor�neo, diante do quadro de informa��es e tecnologias desenvolvidas, os cultos religiosos, em sua maioria, procuram adotar medidas de distanciamento baseadas em m�todos cient�ficos, apesar das cr�ticas feitas por diversos �rg�os sanit�rios."
F� e sa�de
Doutora em Hist�ria das Ci�ncias da Sa�de e autora do livro 'A Gripe Espanhola na Bahia', a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza lembra que um epis�dio semelhante ocorreu em Salvador quando o Brasil vivia o p�nico causado pela gripe de 1918.
Na ocasi�o, os ritos cat�licos n�o foram proibidos pela Diretoria Geral de Sa�de P�blica da Bahia, mesmo que isso fosse contr�rio �s medidas profil�ticas recomendadas. A motiva��o foi que esses eventos serviam para que os fi�is suplicassem a miseric�rdia divina.
Segundo pesquisas da historiadora, as romarias de sexta-feira � Igreja do Senhor do Bonfim, registraram p�blico maior do que o normal nesse per�odo.
A devo��o ao Senhor do Bonfim tamb�m tinha rela��o com a cura. A imagem foi entronizada no templo baiano em 1745, trazida pelo capit�o portugu�s Theodozio Rodrigues de Faria, um grande devoto do Senhor do Bonfim. Pela tradi��o, rezar para ele garantiria ao povo baiano a prote��o contra a fome, a seca e, sim, a peste.
No auge da gripe espanhola, decidiram que a imagem n�o deveria ficar no altar-mor. Colocaram no corpo da nave da igreja para que, assim, ficasse mais pr�xima dos fi�is. E os fi�is beijavam os p�s da imagem sacra, sem receio de, assim, se contaminarem.
"Na �poca da gripe [espanhola], era desestimulado que as pessoas ficassem em lugares fechados, aglomeradas, por causa do [risco do] cont�gio. Mas aqui na Bahia elas desrespeitaram isso", relata Souza. "Fizeram prociss�es, foram para a igreja beijar p� de santo. Imagine: beijar p� de santo em meio a [dissemina��o de] uma doen�a contagiosa. As pessoas se sentiam protegidas no espa�o do sagrado."
Ainda segundo levantamento da historiadora, a Igreja da Ordem Terceira do Carmo, tamb�m de Salvador, fez o mesmo com a imagem de S�o Roque.
"A f� serve de conforto espiritual, esperan�a de cura do corpo f�sico, al�vio do medo e da ang�stia", comenta Souza. "Nesses per�odos, os sacerdotes exploram um pouco isso, tamb�m [com o discurso de] que a epidemia � resultado do pecado dos homens, que tem de haver um sacrif�cio para expiar a culpa, para ser liberado do mal. Essas coisas ocorrem durante crises epid�micas."

"Pessoas fragilizadas recorrem a uma for�a superior para enfrentar o medo da morte, a ang�stia do desconhecido, do que est� fora do controle humano", analisa a historiadora. "As epidemias costumam fugir do controle. Ent�o � uma esp�cie de mecanismo de defesa buscar o aux�lio de uma for�a superior, de uma for�a espiritual."
Missiato compartilha ponto de vista semelhante.
"Em tempos de grave crise social, pol�tica e sanit�ria, � comum visualizarmos algumas situa��es em que o nome da f� � utilizado como forma de manifesta��o social", contextualiza. "Ressaltamos, contudo, a pluralidade de a��es das institui��es religiosas, tendo em vista os diferentes graus de di�logo e respeito frente �s medidas estabelecidas pelos �rg�os de sa�de."
"No caso de Zamora, a a��o radical e, provavelmente, suicida, de �lvaro y Ballano, n�o foi seguida por todos os religiosos, tendo em vista que muitos espa�os religiosos cederam espa�o ao tratamento da epidemia", ressalta. "No Brasil, diante de um quadro pol�tico extremamente polarizador, as diversas disson�ncias influenciaram no atual quadro ca�tico na preven��o e tratamento contra a covid. Tal polariza��o acaba por influir diretamente nos diferentes posicionamentos dos v�rios centros religiosos brasileiros."
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O que � o coronav�rus
Coronav�rus s�o uma grande fam�lia de v�rus que causam infec��es respirat�rias. O novo agente do coronav�rus (COVID-19) foi descoberto em dezembro de 2019, na China. A doen�a pode causar infec��es com sintomas inicialmente semelhantes aos resfriados ou gripes leves, mas com risco de se agravarem, podendo resultar em morte.Como a COVID-19 � transmitida?
A transmiss�o dos coronav�rus costuma ocorrer pelo ar ou por contato pessoal com secre��es contaminadas, como got�culas de saliva, espirro, tosse, catarro, contato pessoal pr�ximo, como toque ou aperto de m�o, contato com objetos ou superf�cies contaminadas, seguido de contato com a boca, nariz ou olhos.Como se prevenir?
A recomenda��o � evitar aglomera��es, ficar longe de quem apresenta sintomas de infec��o respirat�ria, lavar as m�os com frequ�ncia, tossir com o antebra�o em frente � boca e frequentemente fazer o uso de �gua e sab�o para lavar as m�os ou �lcool em gel ap�s ter contato com superf�cies e pessoas. Em casa, tome cuidados extras contra a COVID-19.Quais os sintomas do coronav�rus?
Confira os principais sintomas das pessoas infectadas pela COVID-19:
- Febre
- Tosse
- Falta de ar e dificuldade para respirar
- Problemas g�stricos
- Diarreia
Em casos graves, as v�timas apresentam:
- Pneumonia
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V�deo explica por que voc� deve 'aprender a tossir'
Mitos e verdades sobre o v�rus
Nas redes sociais, a propaga��o da COVID-19 espalhou tamb�m boatos sobre como o v�rus Sars-CoV-2 � transmitido. E outras d�vidas foram surgindo: O �lcool em gel � capaz de matar o v�rus? O coronav�rus � letal em um n�vel preocupante? Uma pessoa infectada pode contaminar v�rias outras? A epidemia vai matar milhares de brasileiros, pois o SUS n�o teria condi��es de atender a todos? Fizemos uma reportagem com um m�dico especialista em infectologia e ele explica todos os mitos e verdades sobre o coronav�rus.Para saber mais sobre o coronav�rus, leia tamb�m:
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