
"Patr�o vem como uma autoridade, como 'voc� faz aquilo que eu estou falando', n�o � como uma igualdade. Eu senti isso na pele e minha m�e tamb�m sentiu isso muito forte. Cliente � diferente. O cliente te respeita, te olha nos olhos, te valoriza, reconhece o seu esfor�o e o seu trabalho. E ele te paga por isso e paga bem."
Ela conhece essa diferen�a na pr�pria trajet�ria. Filha de dom�stica, come�ou na profiss�o aos 9 anos, sem receber nada por isso, como uma dessas meninas que s�o "pegas para criar" por fam�lias mais ricas, ganhando moradia em troca de trabalho, que conciliava com a escola.
Nos Estados Unidos, come�ou como ajudante de faxineira e atualmente tem seu pr�prio neg�cio, sendo ela agora quem �s vezes contrata ajudantes para dar conta do servi�o.
"Eu sou uma empreendedora, tenho uma companhia pequenininha, mas ela � minha. 'Beehive' � o nome dela, colmeia em ingl�s, porque se eu tiver algu�m trabalhando para mim, n�s vamos ser unidos, eu n�o vou explorar ningu�m, a gente vai trabalhar junto e se valorizar. Por isso botei esse nome."
Ex-BBB em busca de dom�stica nos EUA
A diferen�a na cultura do trabalho dom�stico no Brasil e nos Estados Unidos gerou pol�mica nas redes sociais recentemente, ap�s a ex-BBB e influenciadora digital Adriana Sant'Anna reclamar no seu Instagram da dificuldade de encontrar uma empregada dom�stica em Orlando, na Fl�rida.
"Aqui ganha por hora de trabalho e eu quero algu�m para ficar aqui o tempo todo, fazendo tudo para mim e n�o acho", disse Sant'Anna, em v�deo publicado na rede social. "Eu preciso trabalhar, essas coisas que tenho que ficar fazendo n�o d�, que � lavar roupa, passar, arrumar, organizar, tirar bagun�a, pegar roupa suja de crian�a."
e a coach Adriana Santana que foi pros EUA e est� sofrendo pq n�o encontrou uma trabalhadora dom�stica para fazer tudo (casa, comida e ser bab�) e ganhar uma mixaria kkkkkkkkkkkk a mona t� achando q t� no Brasil, onde esse tipo de trabalho � explorado, desvalorizado... pic.twitter.com/E4kzU5z6yV
— #VACINAJ� (@antoniaglow) June 24, 2021"A gente no Brasil estava feita. Porque l� [no Brasil] uma pessoa faz tudo. Aqui [nos Estados Unidos], para passar, 25 d�lares a hora a mais, para dobrar 25 d�lares. Ah, para poder esticar o bra�o, mais 10 d�lares. � assim. Ent�o, voc� que tem algu�m no Brasil, ajoelha e agrade�a a Jesus", completou.
Depois de sofrer uma onda de cr�ticas, a ex-BBB voltou a postar, agora para se defender.
"Em momento algum pedi uma escrava, pelo contr�rio, eu solicitava um 'anjo' para cuidar de tudo", escreveu a influenciadora. "At� porque o sal�rio que estou oferecendo � de US$ 5 mil [cerca de R$ 25,9 mil] para trabalhar de segunda a sexta, das 8h �s 15h. Se inclusive calcular, ver� que � muito mais do que US$ 25 a hora."
Pagar melhores sal�rios � a sugest�o do presidente americano Joe Biden para empregadores dos Estados Unidos que t�m se queixado de dificuldade para contratar, em meio � retomada da economia americana, com o avan�o da vacina��o contra a covid-19.
"Voc�s estavam me perguntando... 'Est� sabendo? Empregadores n�o conseguem encontrar trabalhadores.' Eu digo: 'Paguem mais a eles'", afirmou Biden, durante uma coletiva de imprensa ao fim de junho. "[Empregadores] v�o ter que competir e come�ar a pagar a quem trabalha duro um sal�rio decente", completou o democrata.
Em resposta ao questionamento sobre empregadores estarem com dificuldade de encontrar trabalhadores para contratar, Biden respondeu: “Paguem mais a eles” https://t.co/0eY0OCbGCg
— Laura Carvalho (@lauraabcarvalho) June 25, 2021'Nos EUA, trabalho dom�stico � servi�o caro'
A doutora em Educa��o e ex-faxineira Heloiza Barbosa lan�ou em mar�o de 2020 o Faxina, um podcast que conta as hist�rias de faxineiros e faxineiras brasileiras que trabalham nos Estados Unidos.
"O trabalho dom�stico aqui tem categorias diferentes: tem aquele que lida com a limpeza de casa, o que lida com os cuidados das crian�as, o das cuidadoras de idosos, o de cozinha e o de manuten��o da casa funcionando", enumera Heloiza, que vive nos Estados Unidos desde 1997.
"S�o servi�os contratados e s�o servi�os caros, se voc� est� acostumado no Brasil a pagar muito pouco por isso", explica a pedagoga. "A� j� tem uma diferen�a: a ideia de servi�os prestados, ou seja, voc� n�o � empregado de algu�m como o trabalhador dom�stico � no Brasil, voc� � dono da sua empresa e vende o servi�o para a pessoa que te contrata."
A diferen�a parece bastante �bvia com rela��o a uma trabalhadora dom�stica brasileira mensalista, que presta servi�os a uma pessoa ou fam�lia de forma cont�nua, mediante um sal�rio fixo. Mas Heloiza afirma que a din�mica tamb�m � distinta do trabalho das diaristas, profissionais aut�nomas que atendem fam�lias diversas, sem v�nculo empregat�cio.
"No Brasil, voc� paga a di�ria da pessoa para ela fazer absolutamente tudo dentro de uma casa. Se voc� fosse transpor isso para os Estados Unidos, seria muito caro, porque s�o v�rias categorias de servi�os, ent�o � uma coisa que muito poucas fam�lias podem pagar."

Sem prote��o social
A apresentadora do Faxina Podcast destaca, por�m, que isso n�o significa que as dom�sticas que trabalham nos Estados Unidos contem com maior prote��o social.
"Estamos falando de um sistema capitalista, onde o trabalhador s� tem valor enquanto tem for�a de trabalho para vender", afirma. "N�o h� benef�cios sociais, f�rias remuneradas, aposentadoria, direito a dias de afastamento por doen�a. Simplesmente, se n�o trabalha, n�o ganha."
O valor pago por uma faxina varia de acordo com o tamanho do im�vel e a frequ�ncia com que ele � limpo. Em Boston, por exemplo, para uma casa t�pica de classe m�dia, com tr�s quartos e dois banheiros, a limpeza fica em torno de US$ 120 a US$ 140 (de R$ 610 a R$ 710).
Na cidade, cujo mercado de faxina dom�stica � dominado pelas imigrantes brasileiras (muitas delas sem documenta��o para trabalhar), a limpeza, em geral, � feita por um grupo de duas ou tr�s faxineiras, que concluem o servi�o em poucas horas e seguem para outra resid�ncia.
No geral, esse grupo � formado por uma faxineira mais experiente, que tem uma lista de clientes e � conhecida como "dona do schedule" (algo como a "dona da agenda", em portugu�s). Essa faxineira contrata ajudantes, que em geral s�o as imigrantes rec�m-chegadas que est�o em busca de emprego e, muitas vezes, n�o falam ingl�s. S�o as chamadas helpers.
"Eu comecei dando um 'help'", conta Paula Costa, sobre como entrou no mercado americano de faxina dom�stica. "Levantava bem cedo, o carro vinha buscar, quando dava 7h est�vamos entrando na primeira casa. Faz�amos nove casas no dia e eu ganhava US$ 60 (R$ 305 a valores atuais) por dia, isso h� 22 anos atr�s."
"As donas de schedule faziam muito dinheiro, mas elas pagavam mal as 'helps'. Nove casas num dia, pagando US$ 60 para cada uma das tr�s ou quatro funcion�rias que elas levavam. Ganhando cerca de US$ 100 por casa (R$ 510), para ficar uma hora, ou uma hora e meia. Elas faziam - e fazem - muito dinheiro."
Brasil, maior empregador dom�stico das Am�ricas
Al�m da forma de trabalhar, h� outra diferen�a grande no mercado de trabalho dom�stico dos dois pa�ses: o n�mero de pessoas ocupadas nesse tipo de fun��o.
Segundo a Organiza��o Internacional do Trabalho (OIT), ag�ncia das Na��es Unidas dedicada ao tema, o Brasil � o segundo maior empregador dom�stico do mundo, atr�s apenas da China, que ocupa o topo da lista, com 22 milh�es de trabalhadores dom�sticos, representando 2,9% de sua for�a de trabalho.
Por aqui, em 2019 — antes, portanto, da pandemia do coronav�rus —, os trabalhadores dom�sticos eram 6,3 milh�es (ou 6,8% da for�a de trabalho). Assim, o pa�s superava em n�mero de profissionais o M�xico (2,4 milh�es e 4,3% da for�a de trabalho) e os Estados Unidos (1,9 milh�o e 1,2%), sendo o maior empregador dom�stico das Am�ricas.

Para o soci�logo Tulio Cust�dio, que estuda a desumaniza��o dos trabalhadores prec�rios em seu doutorado na Universidade de S�o Paulo (USP), o elevado n�mero de trabalhadores dom�sticos no Brasil � uma heran�a do nosso passado colonial.
"A coloniza��o � fortemente marcada pelo padr�o patriarcal, que coloca a mulher como a respons�vel pelo trabalho dom�stico e de cuidado", diz Cust�dio. "Al�m disso, esse � um trabalho que � realizado especialmente pelas popula��es situadas na marginalidade social, isto �, pela popula��o negra, o que tem origem na escravid�o."
Apesar dos Estados Unidos tamb�m terem um passado colonial e escravista, Cust�dio observa que o n�mero de africanos escravizados trazidos ao Brasil foi muito maior.
Estima-se que, entre os s�culos 16 e 19, cerca de 4,9 milh�es de africanos desembarcaram na costa brasileira, o que representa 46% de todos os escravizados trazidos ao continente americano. Em compara��o, pouco mais de 388 mil escravizados foram levados para os Estados Unidos.
Isso se reflete na composi��o racial dos dois pa�ses: enquanto nos Estados Unidos os negros s�o 13% da popula��o, no Brasil, segundo classifica��o do IBGE para pretos e pardos, somos 56%.

Formas distintas de lidar com o passado escravista
"Foram dois pa�ses que tiveram a experi�ncia da escravid�o, mas h� uma diferen�a bem grande na forma como trataram essa quest�o", observa Cristina Vieceli, economista do Departamento Intersindical de Estat�stica e Estudos Socioecon�micos (Dieese).
"Aqui houve um processo de ocultamento [do racismo] e opress�o muito forte. O mito da 'democracia racial' perdurou ao longo da nossa hist�ria e fez com que a gente n�o realizasse pol�ticas afirmativas [pol�ticas feitas por governos ou pela iniciativa privada com o objetivo de corrigir desigualdades raciais presentes na sociedade], s� come�amos a fazer esse tipo de pol�tica nos anos 2000, com as cotas em concursos e nas universidades p�blicas", observa Vieceli.
A economista do Dieese destaca ainda que o pa�s tem tamb�m uma parcela muito grande da popula��o pobre e � extremamente desigual — mais do que os Estados Unidos.
"A classe m�dia no Brasil � muito pequena perto da classe mais pobre. H� uma concentra��o de renda muito grande no pa�s e isso faz com que a mobilidade social seja muito menor aqui", diz a economista. "Ent�o essa classe m�dia conta com um 'ex�rcito de reserva' enorme, para usufruir de uma for�a de trabalho que continua com caracter�sticas servis."
"Ex�rcito de reserva" � um termo usado pelo fil�sofo Karl Marx, que se refere ao desemprego "permanente" das economias capitalistas. No Brasil, por exemplo, a taxa de desemprego atualmente est� em 14,7% e quando ela chegou ao ponto mais baixo na hist�ria recente, caiu a 6,2% (em dezembro de 2013). J� nos Estados Unidos, a taxa est� em 5,9% e chegou aos 3,5% em meados de 2019. Assim, o desemprego estrutural dos dois pa�ses � bem diferente e isso tem efeito, por exemplo, sobre os sal�rios pagos aos trabalhadores menos qualificados.
Tulio Cust�dio destaca ainda os diferentes est�gios do desenvolvimento econ�mico nos dois pa�ses como um fator que tamb�m afeta a disponibilidade de m�o de obra dom�stica e a capacidade de absor��o das mulheres em outras formas de ocupa��o mais qualificadas.
"No caso do Brasil, um pa�s perif�rico, que n�o desenvolve tecnologia e tem um lugar muito espec�fico no contexto do capitalismo global, boa parte da m�o de obra continua alocada em trabalhos de baixa remunera��o e baixa produtividade", observa o soci�logo.
Trabalho dom�stico na pandemia
No Brasil, a pandemia do coronav�rus afetou o trabalho dom�stico de duas formas marcantes.
A primeira delas foi a dispensa de milhares de trabalhadoras dom�sticas por empregadores que perderam renda ou que ficaram com medo de se contaminar ao contato com essas trabalhadoras.
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica), o n�mero de pessoas ocupadas com trabalho dom�stico no pa�s diminuiu de 6,1 milh�es no primeiro trimestre de 2019, para 4,9 milh�es em igual per�odo de 2021, com quase 1,2 milh�o de dom�sticos a menos no mercado de trabalho em apenas dois anos.
Considerando que 97% da categoria � formada por mulheres, isso significa que mais de 30% das 3,1 milh�es de mulheres que deixaram o mercado de trabalho no per�odo eram dom�sticas.
"Isso � bastante grave, considerando que boa parte dessas mulheres t�m filhos e s�o chefes de fam�lia", observa Vieceli, do Dieese.

Um segundo fato marcante foi a priva��o de liberdade de diversas trabalhadoras dom�sticas que foram obrigadas por seus patr�es a permanecer no trabalho sem poder voltar para suas fam�lias, devido ao medo dos empregadores de contamina��o.
O Sindicato dos Trabalhadores Dom�sticos da Bahia (Sindom�stico), por exemplo, recebeu 28 den�ncias de casos do tipo no Estado, ao longo da pandemia.
"A maioria s�o mulheres negras, que tiveram que deixar seus filhos com algum parente e foram obrigadas pelos empregadores a aceitar as condi��es que eles estavam oferecendo", diz Valdirene Boaventura, secret�ria-geral do Sindom�stico Bahia.
"Elas foram obrigadas a permanecer no local de trabalho, algumas delas por meses."
Para o soci�logo Tulio Cust�dio, esse fen�meno tamb�m est� ligado ao passado colonialista brasileiro. "H� uma ideia de que o empregado n�o � um profissional, mas uma posse, o que tem origem na rela��o escravocrata, onde o escravo era visto como um objeto", observa.
"Foi muito simb�lico o fato de a primeira pessoa a morrer de covid [no Rio de Janeiro] ser uma mulher negra, idosa e empregada dom�stica", lembra Cust�dio, referindo-se � mulher de 63 anos, cujo nome n�o foi divulgado a pedido da fam�lia, que morreu em 17 de mar�o de 2020, ap�s ser contaminada pela patroa que voltou de viagem da It�lia.
"H� uma ideia de que existem pessoas que valem menos do que as outras, existem vidas que podem ser sacrificadas, porque elas est�o ali para servir. Esse esvaziamento do sentido de respeito ao outro est� no horizonte colonial e isso ainda � muito forte na nossa sociedade."

Uma linhagem de dom�sticas chega ao fim
Trabalhando como dom�stica nos Estados Unidos, Paula Costa viu sua filha mais velha, J�ssica Oliveira, de 30 anos, se formar em Rela��es Internacionais.
Atualmente, J�ssica trabalha no Matahari Women Workers' Center, uma organiza��o que luta pelos direitos de faxineiras, au pairs (um trabalho de cuidado de crian�as feito por mulheres imigrantes com idades entre 18 e 26 anos, em troca de moradia, alimenta��o e uma pequena remunera��o) e trabalhadoras que dependem de gorjetas, como as gar�onetes.
Paula se orgulha de J�ssica ter rompido o ciclo da fam�lia. Com av� e m�e dom�sticas, a jovem conseguiu ter outro destino.
"Para mim, a sensa��o � de miss�o cumprida, de vit�ria. J�ssica fez entrevistas em grandes universidades, uma delas Ivy League [grupo de oito universidades de elite dos EUA formado por Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Princeton, Universidade da Pensilv�nia e Yale]. No Brasil, eu jamais teria conseguido dar isso para minha filha sendo uma dom�stica."
"Aqui d� para uma trabalhadora dom�stica ter um pouco mais de dignidade e ser reconhecida pelo servi�o que presta � sociedade, acho que essa � a maior diferen�a [entre Estados Unidos e Brasil]", acredita J�ssica. "Eu pude fazer faculdade, receber uma bolsa e ter mais escolhas."
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