
Essa � a descri��o da jovem afeg� Amina* sobre suas �ltimas semanas, desde que os EUA completaram a retirada das tropas de seu pa�s, ap�s 20 anos de ocupa��o. Ela dedica os dias a monitorar a situa��o de seus parentes e amigos, a maioria deles em grandes cidades do Afeganist�o.
Amina vive h� menos de um ano em Washington D.C., capital americana, para al�vio de sua m�e, que segue em territ�rio afeg�o. Ela obteve um dos poucos milhares de vistos oferecidos pelos EUA a afeg�os que tenham trabalhado pelo pa�s ou por organismos internacionais durante a ocupa��o americana.
No caso de Amina, o visto veio ap�s ela sofrer amea�as de morte por seu trabalho, em um processo que exp�em a deteriora��o da seguran�a no pa�s muito antes que as cenas dos Talib�s sentados no gabinete presidencial corressem o mundo.
Especialista em pol�ticas de educa��o por uma renomada universidade americana, ela passou os �ltimos anos tentando levar para a sala de aula ao menos parte dos cerca de 4 milh�es de crian�as e adolescentes afeg�os que estavam fora da escola no per�odo pr�-pandemia.
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Como funcion�ria de diferentes organiza��es internacionais, entre elas o Unicef, Amina trabalhava em diferentes prov�ncias e com frequ�ncia nas �reas mais pobres e dominadas por lideran�as Taleb�.
"S�o lugares em que, nesses �ltimos 20 anos, as pessoas nunca viram um playground, nunca provaram um sorvete, nunca viram uma rua movimentada, nunca tiveram eletricidade. Seguem vivendo como h� 100 anos. E s�o essas pessoas que agora controlam o pa�s", diz Amina.
Ali, sua fun��o era conseguir interlocu��o com os l�deres do grupo para levar educa��o para as crian�as. E inspirar os menores de idade a n�o desistirem de estudar.
"Eu dizia para essas meninas e meninos que eles tinham que dedicar suas vidas ao estudo, a ser algu�m. E agora? Nossos sonhos foram destru�dos e me sinto culpada por t�-los feito acreditar que era poss�vel", contou, em l�grimas, � BBC News Brasil.

O temor de Amina � que, de volta ao poder, o Taleb� pro�ba de novo a educa��o de meninas, retire as mulheres do mercado de trabalho e as obrigue a uma vida quase exclusivamente dom�stica, dedicadas apenas ao marido e aos filhos.
Era assim at� 2001, quando os EUA entraram no pa�s para desalojar os fundamentalistas isl�micos do poder, acusando-os de dar guarida ao grupo Al Qaeda, de Osama Bin Laden, mentor dos ataques do 11 de setembro.
'Americanos feitos de bobos'
Os EUA se retirariam do pa�s apenas em julho de 2021, 20 anos e US$ 2 trilh�es depois, acreditando que levaria ao menos seis meses para que o Taleb� desafiasse o controle pol�tico de Cabul. Na semana passada, a intelig�ncia americana revisara o prazo para algo entre 30 e 90 dias de sobrevida do governo afeg�o.
Cinco dias depois, no �ltimo fim de semana, o Taleb� chegou � capital do pa�s depois de dominar todas as demais grandes cidades afeg�s. No domingo, o presidente afeg�o Ashraf Ghani fugiu do pa�s e o grupo fundamentalista isl�mico assumiu o controle do pal�cio presidencial.
Militantes do Taleb� desfilam agora o rec�m obtido poderio militar - antes de partir, os EUA gastaram mais de US$ 80 bilh�es para treinar e equipar o ex�rcito afeg�o com armas que os insurgentes tomaram e agora exp�em.
"Os americanos foram feitos de bobos. N�s sabemos que n�o existe uma solu��o militar na regi�o, mas sair do Afeganist�o dessa maneira, em troco de nada e sem qualquer controle sobre o Taleb�, isso � loucura, � um erro e � um fiasco", afirma Amina.
Para ela, "mesmo pessoas com conhecimentos rudimentares sobre o Afeganist�o poderiam ter sa�do com uma solu��o mais positiva do que fez o governo americano".
A decis�o de Biden de retirar as tropas americanas era popular com seu p�blico dom�stico. Quase 60% dos americanos queriam o fim da ocupa��o americana no Afeganist�o - entre os eleitores democratas, a cifra chegava em 72% - segundo uma pesquisa do instituto YouGov divulgada em julho.
A a��o, no entanto, est� se transformando em um de seus piores reveses desde o in�cio do governo, em janeiro. As cenas da retirada �s pressas de diplomatas americanos da embaixada em Cabul relembraram os americanos de sua derrota em Saigon, no Vietn�.
E as imagens de afeg�os agarrados � fuselagem de um avi�o militar dos EUA que partia do Cabul os relembrou das dezenas de milhares de aliados - afeg�os que trabalham pelos americanos e cuja vida est� em risco agora - que deixaram pra tr�s em sua sa�da.
A Casa Branca tem adotado uma postura defensiva diante do problema e argumenta que as bases da retirada foram determinadas pelo ex-presidente Donald Trump, que abriu negocia��o direta com o Taleb� em 2018.
"O governo afeg�o tinha muitos problemas, mas os americanos n�o deveriam ter aceitado negociar com o Taleb�. Isso deu poder ao grupo e esvaziou ainda mais o governo afeg�o, que j� era fr�gil", diz Amina. Trump havia determinado o m�s de maio de 2021 como a data de sa�da das tropas dos EUA.
Para o conselheiro de seguran�a nacional de Biden, Jake Sullivan, a negocia��o do republicano deixou a Biden apenas duas op��es: seguir com a partida do pa�s ou ficar e arriscar confronto aberto com o Talib�.
Nesta segunda, em seu primeiro discurso ap�s a tomada de Cabul pelo Taleb�, Biden n�o reconheceu nenhum erro estrat�gico americano e culpou os pr�prios afeg�os pelos desdobramentos vistos no pa�s.
"L�deres pol�ticos afeg�os desistiram e fugiram. Os militares afeg�os desistiram, algumas vezes sem tentar lutar. Isso comprovou que n�o devemos estar l�. N�o devemos lutar e morrer em uma guerra que os pr�prios afeg�os n�o querem lutar", disse Biden, que interrompeu as f�rias para fazer o pronunciamento e tentar estancar a crise pol�tica.
Para Amina, a resposta de Biden � um "insulto". "Somente no Ex�rcito afeg�o, perdemos 65 mil soldados durante a guerra, sem contar os civis. O presidente americano age como se suas �nicas op��es fossem sair como saiu ou aplicar ainda mais for�a contra o pa�s. Na verdade haveria muitas outras op��es, como chamar � mesa pot�ncias regionais como China e �ndia para tentar negociar essa sa�da. N�s, afeg�os, n�o questionamos a retirada, mas o modo como ela foi feita", diz Amina, apontando para um aspecto delicado da atual geopol�tica global.
No �ltimo fim de semana, a prefeitura de Washington D.C. autorizou que afeg�os na capital americana se manifestassem em frente � Casa Branca. Cerca de 500 pessoas se reuniram ali com cartazes que acusavam os americanos de "trai��o" e pediam san��es ao Paquist�o, considerado o principal defensor e financiador das for�as do Taleb�.
"A verdade � que ali em frente � Casa Branca eu j� n�o sabia o que reivindicar. H� duas semanas, queria mostrar que apoiava o Ex�rcito afeg�o e pedir apoio aos EUA. H� uma semana, queria as Na��es Unidas mandassem suas tropas de paz. Agora n�o sei o que nos resta, al�m de esperar que o Taleb� tenha piedade de n�s", afirmou Amina.
Uma vers�o menos radical do Taleb�

Pelo celular, as not�cias que chegam s�o confusas, �s vezes conflitantes. Mas o quadro que se desenha at� agora � de um Taleb� em vers�o menos radical do que aquele que comandou o pa�s entre 1996 e 2001.
"Eles querem ser respeitados internacionalmente, ent�o � a� que pode estar nossa chance de negociar", diz Amina. Em entrevistas � rede CNN de televis�o, combatentes do Taleb� d�o entrevistas com sorriso no rosto e armamento pesado em punho. Dizem que "mulheres e meninas ser�o respeitadas" ao mesmo tempo em que bradam "morte ao EUA" diante da rep�rter americana.
Parentes e amigos de Amina contam que o Taleb� tem oferecido uma esp�cie de "anistia" a quem tenha lutado contra eles ou trabalhado para o governo afeg�o. Bastaria que as pessoas se apresentassem � autoridade Taleb� local para pegar um salvo-conduto que impediria pris�es futuras.
H�, no entanto, certa descren�a j� que o grupo fundamentalista isl�mico n�o � conhecido por cumprir acordos que firma. E h� tamb�m muito boato. Amina afirma que o caos visto no aeroporto de Cabul se deve a isso: as pessoas receberam informa��es falsas de que conseguiriam embarcar mesmo sem visto ou passaporte.
Em termos educacionais, as primeiras informa��es s�o de que as lideran�as estariam dispostas a ceder e permitir a educa��o de meninas e mulheres, desde que as escolas e universidades fossem segregadas por g�nero, apenas mulheres dessem aulas a meninas e homens para meninos (a partir de uma certa idade) e que a vestimenta adequada fosse observada.
Os Taleb� disseram que v�o exigir que as mulheres vistam niqab, um traje que cobre o corpo e o rosto, deixando apenas a faixa dos olhos � mostra.
"Tenho conversado com muitas mulheres e eu diria que sim, que estamos dispostas a usar niqab se nos deixarem ir � escola, � universidade e trabalhar. Dada a situa��o, agora come�amos a negociar com coisas que h� dois ou tr�s dias tomar�amos como inaceit�veis. Ent�o aceitamos o fim da televis�o, podemos vestir o que querem, podem limitar nossa liberdade de express�o, desde que n�o nos tirem escola e trabalho", afirma Amina.
� na expectativa de que um acordo seja poss�vel que reside a esperan�a de Amina. Embora tenha visto pra viver nos EUA, esse nunca foi seu desejo. Ela sempre viu a estadia em territ�rio americano como algo tempor�rio, ap�s uma sa�da quase que for�ada do Afeganist�o. Em 2019, depois de denunciar malfeitos da gest�o afeg�, ela come�ou a receber amea�as.
Com a dif�cil miss�o de negociar com l�deres taleb�, que controlavam certos distritos afeg�os, a ida de meninas e meninos � escola, passou a ouvir de funcion�rios do governo que circulavam rumores de que ela n�o seria "mu�ulmana o suficiente".
"Esse tipo de boato leva as mulheres � morte no Afeganist�o", afirmou Amina, citando casos como o de Farkhunda Malikzada que, em 2015, foi morta a pauladas depois de boatos de que ela queimara um exemplar do Alcor�o, o livro sagrado dos mu�ulmanos. Malikzada jamais cometeu tal ato.
Ao mesmo tempo em que Amina, que � mu�ulmana da minoria xiita, tinha sua religiosidade questionada, o marido dela foi sequestrado.
"Eles passaram quase um dia com ele, o espancaram, quebraram dois de seus dentes", relata Amina. As circunst�ncias do ataque nunca foram completamente esclarecidas e a fam�lia de Amina acredita que pode ter sido um crime comum, j� que a viol�ncia passou a ser um problema frequente no pa�s pobre e de poucas oportunidades.
H� dez meses nos EUA, e apesar de ter diploma de uma das mais respeitadas universidades do pa�s, Amina n�o conseguiu ainda um emprego. Ela tem buscado postos como educadora ou professora. As negativas a tem for�ado a consumir as economias que fez para a aposentadoria. Agora divide seu tempo entre acompanhar a ru�na do pr�prio pa�s e cogitar a inscri��o em vagas de emprego na varejista Amazon ou em redes de fast-food americanas para sobreviver.
*O nome da entrevistada foi alterado para proteger sua identidade
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