
Foi em parte pelas m�os do economista mexicano Santiago Levy que o programa Bolsa-Fam�lia nasceu, h� 18 anos. Em 2003, Levy foi � Granja do Torto, casa de campo presidencial em Bras�lia, para uma reuni�o com o ent�o rec�m-empossado presidente Luiz In�cio Lula da Silva e outros sete ministros da gest�o petista. Ali, explicou as bases do seu Progresa (mais tarde rebatizado como Oportunidades), programa de transfer�ncia de renda condicionada implantado por ele no M�xico seis anos antes e cujos princ�pios serviriam de base para o Bolsa Fam�lia.
Naquele momento, Lula ainda nutria d�vidas entre apostar no Fome Zero, comp�ndio de pol�ticas p�blicas contra a pobreza que se mostrariam pouco eficientes, ou unificar sob um �nico cart�o, com escala nacional, benef�cios como o vale-g�s e o bolsa-escola.
"No fim ele optou pelo Bolsa Fam�lia e achei uma decis�o muito boa. Fiquei feliz, claro. Mas, infelizmente, depois disso, tudo o mais que precisava ter sido feito em termos de rede de seguridade social no Brasil n�o foi feito. E o mesmo aconteceu no M�xico, na Col�mbia. Os pol�ticos perceberam que o programa era muito eficaz e disseram a si mesmos: OK, � isso, e ponto", disse Levy � BBC News Brasil.
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Poucos dias ap�s o �ltimo pagamento feito aos benefici�rios do Bolsa-Fam�lia, na �ltima sexta-feira (29/10) Levy afirmou � BBC News Brasil que o maior problema na quest�o do combate � pobreza n�o est� necessariamente no fim ou renomeamento do programa — j� que o governo Bolsonaro trabalha para lan�ar o Aux�lio Brasil —, mas no fato de que o pa�s n�o tem respondido � quest�o central para compreender as ra�zes da pobreza n�o s� internamente como em toda a Am�rica Latina: por que os pobres seguem sem conseguir emprego formal, que lhes daria acesso aos benef�cios de seguridade social?

O economista, que foi vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) entre 2008 e 2018 e � refer�ncia no assunto, afirma que o Brasil e seus vizinhos de continente passam muito tempo discutindo programas de baixo custo, como o Bolsa-Fam�lia, e deixam de focar na informalidade do mercado de trabalho para os mais pobres, "o grande respons�vel pela pobreza na Am�rica Latina hoje".
Diferente do que afirmou o presidente Jair Bolsonaro na semana passada, para quem os 17 milh�es de benefici�rios "n�o sabem fazer quase nada e est�o fora do mercado", Levy afirma que os pobres que recebem o aux�lio trabalham, sim.
O ponto � que aqueles que se enquadram no corte de linha da pobreza do programa (renda per capita de at� R$ 178 por m�s) n�o conseguem ou n�o podem assumir um emprego formal. Ficam presos no que ele chama de "armadilha da pobreza" e "armadilha da informalidade" j� que seus rendimentos informais somados ao valor do benef�cio tendem a ser superiores ao que conseguiriam de renda em um emprego formal.
Para exemplificar o que diz Levy cita uma pesquisa dos economistas S�rgio Firpo e Alysson Portella, do Insper, publicada em mar�o de 2021 pelo Programa das Na��es Unidas para o Desenvolvimento. No trabalho, Firpo e Portella mostram que 37% da for�a de trabalho brasileira s�o hoje trabahadores informais e por isso est�o exclu�dos dos sistemas de pens�o e seguridade garantidos pela Consolida��o das Leis Trabalhistas. Muitos enfrentam subempregos.
"Se apenas rebatizar o programa e dobrar o benef�cio, o governo s� vai aumentar a armadilha da pobreza", argumenta Levy, j� que fica ainda mais dif�cil que o sal�rio de um emprego consiga fazer frente ao rendimento obtido com trabalho informal e benef�cio.
O escopo do novo Aux�lio Brasil, proposto pelo governo Bolsonaro, deve ser apresentado ainda esta semana. Preliminarmente e sem valores, o programa pretende dobrar o valor m�dio do Bolsa Fam�lia, que passaria a ser de R$ 400 e dar benef�cios adicionais para crian�as que pratiquem esportes, para jovens no fim do ensino m�dio e para quem consiga um emprego formal, entre outros.
Valores e condi��es, no entanto, seguem sendo d�vida, o que � criticado por quem estuda a �rea.
"� inacredit�vel, mas praticamente n�o se discutiu nada sobre o programa em si, tudo o que interessava era chegar a um n�mero de benefici�rios e o valor do benef�cio", disse � BBC News Brasil Fernando Veloso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, que se dedicou a dissecar os termos da Medida Provis�ria 1061/2021, que criou o Aux�lio Brasil.

Nas pr�ximas semanas, o Congresso e o governo precisam viabilizar os pagamentos do Aux�lio Brasil aos benefici�rios desassistidos pelo fim do Bolsa Fam�lia. Na vis�o de Levy, o esfor�o pode acabar sendo uma perda de tempo em termos de combate � pobreza.
Para ele, mexer no Bolsa Fam�lia para resolver a quest�o da informalidade e da pobreza � como tentar curar uma dor de est�mago com rem�dio hipertensivo. Ele afirma que o pa�s precisaria enfrentar uma reforma da previd�ncia que tornasse o sistema menos regressivo, por exemplo, e uma reforma das leis trabalhistas que aumentassem o acesso � popula��o ao mercado de trabalho formal.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Santiago Levy � BBC News Brasil, editada por clareza e concis�o.
BBC News Brasil - O Bolsa fam�lia foi extinto ao completar 18 anos, seu �ltimo pagamento foi na sexta- feira da semana passada. O governo aparentemente criou um programa apenas para gastar mais, dobrar o recurso para a popula��o atendida. O senhor tem dito que s� o aumento do gasto n�o gera resultado inclusivo. Poderia explicar ent�o o que deveria ser feito?
Santiago Levy - Todo programa que � direcionado, n�o s� o Bolsa Fam�lia, mas todo programa com alvo claro tem que ser muito cuidadoso para que n�o vire uma armadilha. E isso tem a ver com o desenho do programa e tamb�m com os valores das transfer�ncias do programa. Suponha que voc� seja pobre e ganhe US$ 100 (R$ 560) de renda. Suponha que por isso o programa lhe d� um benef�cio de US$ 50 (R$ 280) por m�s. Portanto, sua renda total � US$ 150 (R$ 840).
Se voc� conseguir um emprego que lhe pague US$ 130 (R$ 730) em vez de US$ 100, mas por isso voc� perca o benef�cio, voc� aceita o emprego? N�o. Portanto, o governo deve ter cuidado, porque do ponto de vista social, voc� gostaria que essa pessoa conseguisse um emprego que pague � ela US$ 130 em vez de US$ 100, porque provavelmente � um emprego mais produtivo. Mas se voc� disser: "eu sei agora que voc� ganha US$ 130, n�o vou lhe dar mais o benef�cio", isso cria incentivos contra essa pessoa aceitar o emprego. A isso chamamos de armadilha da pobreza.
A mesma l�gica tamb�m funciona pra quest�o da informalidade. Enquanto voc� for informal, voc� receber� o benef�cio. Mas se voc� conseguir um emprego formal, n�o ter� mais essa transfer�ncia. Suponha que voc� tenha um emprego informal que pague US$ 100. E agora voc� consegue um emprego formal que paga US$ 140 (R$ 790). Mas se voc� for informal, receber� US$ 150: US$ 100 de sua pr�pria renda e mais US$ 50 do benef�cio. Se voc� conseguir um emprego formal, sua renda total cai. Isso � chamado de armadilha da informalidade.
S�o dois exemplos de incentivos errados dos programas de transfer�ncia de renda. Em um caso, voc� n�o quer mudar porque, independentemente de ser formal ou informal, uma renda mais alta implica a perda do benef�cio. No segundo exemplo, mudar de informal para formal implica perda de renda. E quanto maior for a transfer�ncia do programa, maior ser� o risco de que voc� crie uma armadilha da pobreza ou armadilha da informalidade.
Portanto, se o governo dobrar as transfer�ncias do Bolsa Fam�lia para o Aux�lio Brasil, ele estar� aumentando os riscos de que os brasileiros pobres sejam pegos na armadilha da pobreza ou na armadilha da informalidade. Ent�o n�o sei qual � a an�lise que o governo fez e n�o sei quais s�o as condi��es do novo programa, mas, em princ�pio, se voc� dobrar a transfer�ncia e n�o fizer mais nada, estar� criando uma armadilha maior da pobreza para os pobres.
Voc� est� dizendo a eles: "� melhor voc� continuar sendo pobre". Isso � exatamente o oposto do que os programas de transfer�ncia condicionada de renda deveriam fazer.

BBC News Brasil - Recentemente , Bolsonaro justificou a necessidade de dobrar o benef�cio do Bolsa Fam�lia porque os 17 milh�es de benefici�rios "n�o sabem fazer quase nada, eles nunca v�o entrar no mercado de trabalho". � isso o que as pesquisas mostram?
Levy - Vamos separar as coisas aqui. H� evid�ncias de que esses programas est�o fazendo as pessoas n�o trabalharem? Muito pouca ou nenhuma. Esta � uma pergunta muito diferente de: esses programas est�o impedindo as pessoas de conseguir empregos melhores? Existem duas quest�es distintas. Sim, os pobres est�o trabalhando. Portanto, n�o � uma quest�o de trabalho. � uma quest�o de que tipo de trabalho. Quando falei sobre as armadilhas da pobreza e da informalidade, n�o estava dizendo que as pessoas n�o v�o mais trabalhar, porque elas est�o, sim, trabalhando. Mas os programas como Progresa e Bolsa Fam�lia n�o est�o facilitando que as pessoas a consigam empregos melhores.
No caso particular do Brasil, como mostra o economista Sergio Firpo, o programa Bolsa Fam�lia tem uma regra que diz o seguinte: se a renda per capita da fam�lia for maior que um quarto de um sal�rio m�nimo, a fam�lia n�o pode se qualificar para o benef�cio. Suponha que haja uma fam�lia com tr�s pessoas e uma das pessoas da fam�lia consiga um emprego formal.
O que acontece? Porque para conseguir um emprego com carteira assinada, paga-se pelo menos o sal�rio m�nimo. Voc� divide um sal�rio m�nimo por tr�s e a renda domiciliar per capita � de um para tr�s, maior do que um para quatro. Essa regra espec�fica do programa Bolsa Fam�lia faz com que seja muito dif�cil para fam�lias pequenas, de tr�s ou quatro pessoas, conseguirem empregos formais, porque se conseguirem um emprego formal, perdem o Bolsa Fam�lia. N�o � imposs�vel que elas consigam, claro. O trabalho supostamente informal paga US$ 100, o bolsa paga US$ 50. Se o emprego formal paga US$ 200 (R$ 1,1 mil), o benefici�rio ainda vai optar por ele. Mas se pagar menos de US$ 150, j� n�o vale a pena.
Ent�o a regra importa muito, as regras do Bolsa Fam�lia eram discriminat�rias contra o trabalho formal, e n�o contra o trabalho em si. A taxa de informalidade entre os pobres realmente aumentou. N�o sei como esse Aux�lio Brasil vai lidar com isso e por isso n�o quero emitir uma opini�o espec�fica sobre ele. Mas, em princ�pio, se o que governo fez foi mudar o nome do programa e depois dobrar a quantia, � claro que essa n�o � uma boa ideia.
BBC News Brasil - Voc� falou sobre o desafio da informalidade dos pobres. Embora n�o saibamos valores ou regras com exatid�o, sabemos que o Aux�lio Brasil vai oferecer um benef�cio adicional ao benefici�rio que conseguir um emprego formal. Isso faz sentido?
Levy - Eu teria que saber os detalhes para analis�-los, mas do ponto de vista conceitual, esta � a melhor maneira de incentivar a formalidade? Minha resposta � n�o. Antes de mudar ou n�o o Bolsa Fam�lia ou Auxilio Brasil, voc� tem que responder a uma pergunta: por que trabalhadores pobres n�o conseguem um emprego formal? N�o fizemos essa pergunta.
� muito improv�vel que sem essa resposta, mudar um programa social v� resolver [o problema da pobreza], porque o motivo pelo qual as pessoas n�o t�m empregos formais n�o est� relacionado ao Bolsa Fam�lia exclusivamente. Ent�o, mexer no Bolsa Fam�lia pra fazer as pessoas arrumarem empregos formais nunca vai funcionar.

BBC News Brasil - A informalidade � o maior motor de pobreza na Am�rica Latina hoje?
Levy - Sim, e esse desafio n�o vai ser respondido via Bolsa Fam�lia.
BBC News Brasil - O que dever�amos estar fazendo, ent�o?
Levy - Esta � uma pergunta que tem uma resposta diferente em diferentes pa�ses, mas em geral, o problema � que o desenho das institui��es que regulam o mercado de trabalho: previd�ncia social, sal�rios m�nimos, regras de demiss�o, regras de contrata��o, todas as institui��es est�o na verdade muito mal planejadas.
O verdadeiro problema no Brasil � que a forma como a seguridade social funciona no Brasil � muito ineficaz porque seu sistema de pens�es, seu sistema de seguro social � extremamente caro, porque o sal�rio m�nimo � muito alto e porque as regulamenta��es que as empresas enfrentam para contratar trabalhadores s�o muito complexas.
E ent�o, al�m disso, voc� diz �s pessoas: OK, se voc� n�o conseguir um emprego formal e n�o contribuir pro sistema de pens�o, ainda assim n�s lhe daremos uma pens�o m�nima gratuita. Portanto, � muito f�cil. Voc� diz: vou colocar muitas barreiras para as pessoas entrarem na formalidade e vou dar benef�cios gratuitos quando as pessoas s�o informais.
O que voc� acha que vai acontecer?
BBC News Brasil - Pol�ticos e economistas progressistas e de esquerda dizem que a rede de seguridade social do Brasil deve ser mantida como uma defesa contra a pobreza para idosos, crian�as, os mais necessitados. Mas o que voc� est� dizendo � que de maneira geral isso tamb�m � uma armadilha?
Levy - Como projetado hoje, sim. O que a esquerda diz � certo no seguinte sentido: voc� precisa de uma rede de seguran�a social muito forte pra proteger as pessoas, os idosos, as crian�as. Mas voc� escolheu o modelo errado pra fazer isso. As pessoas confundem uma cr�tica � rede previdenci�ria social com uma defesa de que ela deve ser abolida.
BBC News Brasil - E isso tem obstru�do o debate sobre o que deveria ser feito?
Levy - Voc� tem que reformar esse sistema, mantendo os objetivos de prote��o aos mais vulner�veis. Mas � preciso que funcione melhor. Vou dar um exemplo do problema: as empresas t�m de pagar mais de 50% do valor do sal�rio em impostos e encargos para contratar funcion�rios formais. Cerca de 25% disso vai para a previd�ncia. Por outro lado, h� a regra de que para receber uma pens�o ou aposentadoria via sistema, � preciso contribuir por pelo menos 15 anos. Algumas pessoas n�o podem contribuir por 15 anos.
Voc� sabe o que acontece no Brasil com as pessoas que contribuem por 13 anos? Eles recebem uma pens�o n�o-contributiva. Agora pense no dinheiro. Os trabalhadores que contribu�ram por 8 anos, por 3 anos ou que n�o contribu�ram nada, recebem o mesmo que quem contribuiu por 13 anos. Ent�o, por que algu�m deveria contribuir (especialmente pensando nos custos da contribui��o)? Algu�m acha que o trabalhador pobre do Brasil � burro? As pessoas s�o inteligentes, aprendem as regras e se ajustam �s regras. Portanto, as regras est�o erradas, n�o os objetivos.
BBC News Brasil - Como diferentes presidentes mexicanos lidaram com o Progresa/ Oportunidades e o que isso deveria ensinar ao Brasil?
Levy - O M�xico foi pioneiro com o Progresa, mas o M�xico n�o mudou o resto do sistema de prote��o social, a forma como funciona a seguridade social, a calibragem do sal�rio m�nimo, as regulamenta��es sobre demiss�es, a forma como todos esses outros programas funcionam. Infelizmente, muitas pessoas confundem prote��o social com um programa individual. A prote��o social � muito maior do que um programa individual.
O Bolsa Fam�lia � um componente muito pequeno do sistema de prote��o social brasileiro. As pessoas falam muito sobre isso, mas em termos de dinheiro � pouco. O mesmo acontece com o M�xico. O Progresa � um pequeno componente do sistema de prote��o social mexicano. E o que os governos n�o fizeram na Am�rica Latina foi dar uma olhada em todo o sistema de prote��o social. Eles t�m discutido programas individuais, n�o t�m discutido todo o sistema.
Em 2003, bem no in�cio do governo Lula, ele e seu gabinete ministerial me convidaram para conversar com eles sobre a experi�ncia do Progresa. E ent�o eu tive uma reuni�o com o presidente Lula e os ministros, expliquei para eles o que tinha acontecido com o Progresa, que come�ou seis anos antes, em 1997. No fim, ele optou pelo Bolsa Fam�lia e achei uma decis�o muito boa. Fiquei feliz, claro.
Mas, infelizmente, depois disso, tudo o mais que precisava ter sido feito em termos de rede de seguridade social no Brasil n�o foi feito. E o mesmo aconteceu no M�xico, na Col�mbia. Os pol�ticos perceberam que o programa era muito eficaz e disseram a si mesmos: 'OK, � isso, e ponto'.
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