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Estado de Minas COMIT�S DA �GUA

A solu��o da Europa medieval contra enchentes que salva vidas at� hoje

Em um mundo de inunda��es mais frequentes e intensas, uma forma democr�tica e coletiva de se proteger contra o pior pode ter suas ra�zes na Holanda, h� quase mil anos.


05/01/2022 08:31 - atualizado 05/01/2022 09:50


Enchentes na Alemanha
Enchentes deixaram impacto devastador na Alemanha e em outras partes da Europa (foto: EPA)

No meio de 2021, ap�s dias de chuva, o rio Meuse transbordou e a cidade de Li�ge, na B�lgica, foi sua v�tima. �guas de cor marrom correram pela cidade, levando os residentes a usarem canoas enquanto suas casas desapareciam ao seu redor. Na cidade e em sua prov�ncia, mais de 20 pessoas morreram, sendo que um homem se afogou em seu por�o.

E este local no leste da B�lgica n�o estava sozinho. Na vizinha Alemanha, cerca de 200 pessoas morreram em enchentes no ano passado. A imprensa descreveu o n�vel das �guas como um evento que ocorre uma vez em um s�culo. O impacto financeiro do desastre tamb�m foi grande. Perto de Li�ge, uma �nica f�brica de chocolate sofreu danos no valor de cerca de 12 milh�es de euros (mais de R$ 75 milh�es).

No entanto, uma parte do norte da Europa sofreu muito menos. Na Holanda, as enchentes de ver�o tamb�m foram descritas como as piores em um s�culo e os danos materiais foram graves, mas o pa�s sobreviveu ao evento clim�tico sem uma �nica fatalidade. As raz�es s�o muitas: evacua��es r�pidas, diques fortes e comunica��o robusta entre eles. Mas o que sustenta essas formas variadas de defesa contra enchentes � uma institui��o: os chamados "comit�s da �gua", que protegem essa terra por quase um mil�nio.

Vale a pena entender essas associa��es pela maneira como combinam a democracia local, a tributa��o direta e a transpar�ncia para colocar a �gua no centro da vida holandesa.

E a Holanda n�o est� sozinha. Das terras altas da Eti�pia �s comunidades ao longo do Dan�bio, gestores de �gua em todo o mundo aplicaram aspectos do modelo holand�s para suas pr�prias necessidades, melhorando a vida de milhares de pessoas ao longo do caminho. Em breve, outras regi�es poder�o precisar se juntar a elas, � medida que os pa�ses em todo o mundo enfrentam o aumento das inunda��es e alagamentos que v�m com as mudan�as clim�ticas.

Quando Piet-Hein Daverveldt vai para o trabalho todas as manh�s, em meio �s igrejas e paralelep�pedos da cidade holandesa de Delft, ele diz que enxerga a hist�ria ao seu redor. "Obviamente, voc� est� ciente de que � um sucessor", diz ele. "Voc� se apoia em muitas pessoas do passado."

No endere�o 167 Oude Delft, � f�cil ver o que ele quis dizer. Se voc� parar ali e olhar para cima, ver� os bras�es, as delicadas janelas com pain�is, a imponente fachada g�tica com acabamento de 1505. Este � o gemeenlandshuis da cidade, traduzido como a sede do conselho de �gua local, onde Daverveldt serve como o presidente - ou dijkgraaf, como seu t�tulo � conhecido l�.

Este elegante edif�cio tornou-se o gemeenlandshuis de Delft em 1645 - e mesmo isso � bastante novo no mundo dos len��is fre�ticos. Conhecidos em holand�s como waterschap (autoridade da �gua) ou hoogheemraadschap, alguns remontam ao s�culo 12.

"Os agricultores, em particular, tiveram que se unir para proteger suas terras", explica Tracy Metz, co-autora de Sweet & Salt: Water and the Dutch (Doce e sal: a �gua e os holandeses, em tradu��o livre).

"Claro, cada corrente � t�o forte quanto seu elo mais fraco, ent�o houve uma press�o comum para que todos fizessem sua parte para manter suas terras secas." Mesmo hoje, isso ainda faz sentido em uma na��o onde quase um ter�o da terra e metade das casas ainda est�o abaixo do n�vel do mar. Os polders holandeses (terrenos baixos, planos e alag�veis) e diques precisam ser mantidos coletivamente.

Essa vulnerabilidade natural - "Netherlands" significa literalmente "pa�s de baixa altitude", ou Pa�ses Baixos - ajuda a explicar o poder crescente dos conselhos de �gua. Na �poca em que os artistas Vermeer e Rembrandt estavam molhando seus pinc�is em meados do s�culo 17, os conselhos podiam cobrar seus pr�prios impostos e punir os poluidores. Nos escrit�rios do Rijnland Water Board em Leiden, voc� ainda pode encontrar um mastro de quase dois metros com um ferrete na ponta - que costumava ser usado para manter as pessoas na linha.

Mesmo assim, diz Metz, os comit�s de �gua eram essencialmente �rg�os representativos. Embora n�o fossem democr�ticos no sentido moderno, eram administrados em comunidade, com fazendeiros ou burgueses moldando sua organiza��o local. Metz argumenta que os conselhos formaram a base do que viria a ser a democracia holandesa.

Os conselhos da �gua claramente evolu�ram a partir daquela �poca. Onde antes eram 3.500, restam apenas 21, representados por uma associa��o nacional. Mas, embora seu n�mero tenha sido reduzido, seu papel foi possivelmente estendido: al�m de organizar e manter as defesas contra enchentes, tamb�m s�o respons�veis %u200B%u200Bpelo controle de qualidade da �gua, manuten��o de rios e canais e tratamento de esgoto.

E sua hist�ria distinta ainda se infiltra na vida holandesa contempor�nea. Al�m de belos exemplos constru�dos em tijolo e pedra, isso pode ser visto claramente na linguagem.

O termo dijkgraaf, por exemplo, tem tons distintamente aristocr�ticos - significa literalmente "conde dos diques", servindo como um lembrete impressionante do passado profundamente feudal da Holanda. Enquanto isso, os pol�ticos holandeses usam o verbo polderen para descrever o esp�rito de coopera��o impl�cito nos comit�s de �gua.

A hist�ria dos comit�s da �gua tamb�m tem consequ�ncias pr�ticas nos dias modernos. Como seus antepassados %u200B%u200Bmedievais, por exemplo, os conselhos de �gua ainda arrecadam verba de forma independente. De modo geral, as fam�lias pagam dois tipos de impostos: ao munic�pio e ao �rg�o de �gua. E, como Emilie Sturm argumenta, essa independ�ncia traz benef�cios financeiros �bvios. Ao contr�rio de outros lugares, onde a gest�o da �gua disputa por dinheiro com educa��o ou moradia, o modelo holand�s "garante" que os cofres estejam sempre cheios, explica Sturm, gerente de programa do Blue Deal, o �rg�o que promove a expertise holandesa em �gua no exterior.

Isso se reflete nas estat�sticas: os conselhos de �gua geram at� 95% de seus or�amentos por meio de seus pr�prios impostos. Compare isso com o Estado americano do Texas, onde o Departamento de Habita��o e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos anunciou recentemente que Houston e seu condado n�o receberiam nenhum novo financiamento para al�vio das enchentes - apesar de terem pedido US$ 1,3 bilh�o (R$ 7,25 bi).

Ao mesmo tempo, os comit�s de �gua continuam sua longa tradi��o de governo aberto e eleito. A maioria dos cargos do conselho � agora eleita diretamente pelo p�blico, embora alguns ainda sejam atribu�dos a interesses corporativos na ind�stria, agricultura e meio ambiente. � certo que o holand�s m�dio geralmente n�o se preocupa com seu conselho local: Rens Huisman, do Conselho de �gua de Zuiderzeeland, os compara a �rbitros de futebol: voc� os ignora quando eles trabalham bem.

Mesmo assim, esse po�o profundo de localismo � �til. Por um lado, diz Daverveldt, a democracia promove investimentos e monitoramento transparentes. Por outro lado, os conselhos s�o compostos por especialistas, com conhecimento de sua pr�pria localidade.

Esse regionalismo ficou patente no ver�o holand�s de 2021, quando as diretorias adotaram diversas t�ticas para combater as enchentes. Em Rivierenland, atravessada por cursos de �gua, a equipe correu para inspecionar a solidez dos diques locais. Em Limburg, espremido entre a B�lgica e a Alemanha, o conselho prop�s uma abordagem regional para cobrir os tr�s pa�ses.

Al�m da Holanda

Ao sul de Addis Abeba, na Eti�pia, o rio Awash faz uma curva por cerca de 1.200 km atrav�s do cora��o do pa�s, passando por matas e campos de trigo e por meninos cuidando de suas cabras ao sol. O terreno � acidentado aqui: muitas das colinas perto do rio chegam a 2.000 metros. � noite, grupos de babu�nos dormem nas folhas das palmeiras para se esconder dos predadores. Em outras palavras, este � um lugar que parece t�o diferente das terras baixas da Holanda quanto voc� pode imaginar.

No entanto, se voc� souber onde procurar, encontrar� vest�gios da Holanda em muitos lugares. Isso vale para as barragens e diques que revestem o Awash, mas tamb�m na forma como a hidrovia � administrada - desde os impostos at� a representa��o. Tegenu Zerfu, um especialista em �gua da Eti�pia, argumenta que isso n�o � nada surpreendente. "Garantir o futuro", diz ele, "pode %u200B%u200Bser obtido a partir do modelo de polder".

Nem as terras altas da Eti�pia s�o �nicas neste sentido. Durante anos, os gestores h�dricos holandeses levaram seu conhecimento a terras distantes, construindo relacionamentos com pa�ses do Peru ao Vietn�. Ao todo, o Dutch Blue Deal funciona em 14 pa�ses, e os conselhos de �gua individuais tamb�m t�m suas pr�prias parcerias, algo que os profissionais envolvidos veem como uma consequ�ncia natural da tradi��o polderen.

Jo Caris, colega de Huisman no Conselho de �gua de Zuiderzeeland e especialista em hidrovias da Eti�pia, diz que apoiar o conselho de �gua vizinho e o distante Awash s�o, na verdade, dois lados da mesma moeda.

Esse apoio tamb�m pode ser descrito como uma troca, acrescenta ele, com pa�ses de baixa renda tamb�m ensinando coisas aos veteranos holandeses. Sturm afirma algo semelhante. "A necessidade desse programa", explica ele, "realmente veio do entendimento de que, para nos adaptarmos �s mudan�as clim�ticas, precisamos aprender uns com os outros em todo o mundo".

Como este �ltimo coment�rio indica, os holandeses t�m o cuidado de n�o exportar seus m�todos no atacado e tentam trazer li��es valiosas para casa tamb�m. Mas, embora seja improv�vel que uma gemeenlandshuis brote em Adis Abeba t�o cedo, os comit�s de �gua deixaram sua marca na Eti�pia.

Isso fica claro, por exemplo, quando se trata de como Zerfu e seus colegas reformaram a tributa��o ao longo do Awash. At� a chegada dos holandeses, h� v�rios anos, as principais empresas industriais tinham poucos incentivos para economizar �gua, um s�rio desafio em um pa�s onde apenas 42% das pessoas t�m acesso a um abastecimento de �gua pot�vel. Mas as coisas s�o diferentes agora: os agricultores pobres ao longo do Awash est�o isentos do imposto sobre a �gua, enquanto os usu�rios maiores devem pagar sua parte.

Melhor ainda, Zerfu diz que, assim como o modelo holand�s, este sistema � autofinanci�vel - crucial em um pa�s onde h� conflitos cont�nuos, abusos dos direitos humanos e pobreza (um quarto da popula��o vivia abaixo da linha da pobreza em 2016).

Voc� tamb�m pode ver reflexos dos sistemas holandeses na abordagem da representa��o na Eti�pia.

Nada como uma elei��o de conselhos de �gua existe ao longo do Awash: a democracia da na��o � muito fr�gil. Mesmo assim, os holandeses e as autoridades locais encorajaram os pequenos agricultores a se juntar �s associa��es locais de usu�rios de �gua, dando-lhes poder coletivo para negociar com o estado e a ind�stria.

Esquemas modestos como esse, diz Huisman, s�o t�picos de como os holandeses operam no exterior. "Voc� tem que olhar para os princ�pios que est�o em nosso modelo de governan�a - e adapt�-lo quando voc� o aplica a outros pa�ses."

Isso vale tamb�m para pa�ses mais pr�ximos da Holanda. Mirela Ciucur � a chefe de assuntos econ�micos da Administra��o Nacional de �guas da Rom�nia. Como Tegenu Zerfu, ela viu a influ�ncia do modelo holand�s em sua terra natal, especialmente quando se trata de boa governan�a.

Historicamente, os gastos dos impostos romenos sobre a �gua careciam de transpar�ncia, explica Ciucur. Inspirada na Holanda, Ciucur desenvolveu um modelo de an�lise econ�mica para entender exatamente o que precisava de dinheiro - de defesas contra enchentes � manuten��o de praias. Al�m de ser mais transparente, esta abordagem incita a Rom�nia ao modelo de "recupera��o de custos" t�o bem-sucedido na Holanda.

Como na Eti�pia, com certeza, as compara��es n�o s�o exatas. Embora a Rom�nia j� tenha 11 conselhos regionais de �gua, por exemplo, seus or�amentos s�o administrados centralmente a partir de Bucareste. Mesmo assim, Ciucur est� finalmente convencida da necessidade de ir para o modelo holand�s.

Quando as chuvas chegaram, uma polegada (2,5 cm) por hora na m�xima for�a, a torrente era impar�vel. As pessoas tiveram que ser salvas em cerca de 900 vilas, e as enchentes vieram t�o r�pido que os soldados tiveram que salvar as pessoas em fr�geis barcos de madeira, guiando mulheres idosas pela lama.

A descri��o acima serviria para as inunda��es na Alemanha ou na B�lgica: aconteceram no ver�o, poucas semanas depois de Li�ge e seus vizinhos terem sido devastados, e mais de 100 pessoas morreram ali tamb�m. Mas, na verdade, esta �ltima cat�strofe aconteceu do outro lado do mundo em rela��o � Holanda, no Estado indiano de Maharashtra.

Esses desastres, iguais em causa, consequ�ncia e escala de tempo, mostram de maneira pungente a amea�a de enchentes em uma era de emerg�ncia clim�tica. Em uma faixa da Europa Ocidental, os cientistas descobriram que as mudan�as clim�ticas aumentam a quantidade de chuva que cai em um determinado dia em at� 19%, o que aumenta drasticamente o risco de inunda��es.

Os pesquisadores sugeriram que as mudan�as clim�ticas tornaram as recentes inunda��es na Alemanha nove vezes mais prov�veis. Os cientistas chegaram a conclus�es semelhantes sobre o subcontinente, observando que as mudan�as clim�ticas est�o ajudando a colocar 75% dos distritos indianos em risco de desastres clim�ticos, como inunda��es. E n�o apenas nessas duas �reas do mundo. Partes de Dakota do Sul, Nebraska e Novo M�xico podem ter um aumento de cinco vezes na exposi��o a enchentes at� 2100.

Em outras palavras, os problemas que recentemente afetaram a B�lgica e a �ndia est�o se tornando amea�as verdadeiramente globais. Isso naturalmente levanta a quest�o: o que deve ser feito? Claro, a resposta final � assustadoramente complexa, abrangendo desde energia verde at� melhores leis de planejamento. Mas poderia o modelo holand�s de gest�o da �gua - com seus pilares de independ�ncia, transpar�ncia, colabora��o e adaptabilidade �s condi��es locais - oferecer li��es mais amplas tamb�m?

Especialistas acreditam que sim. "Poderia funcionar muito bem", argumenta Tracy Metz, "se essas organiza��es tivessem autonomia e influ�ncia suficientes para que o que decidissem realmente acontecesse". Sturm concorda. A �gua, ela enfatiza, vai ter um "papel imenso" no mundo de amanh�. "Portanto, a necessidade de uma autoridade de recursos h�dricos estar presente e ter o conhecimento certo, as institui��es certas, o gerenciamento certo das partes interessadas � muito importante".

Tamb�m h� sinais de que at� mesmo lugares sem v�nculos diretos com o Blue Deal est�o pensando em par�metros holandeses. Na Virg�nia (EUA), por exemplo, cidades vulner�veis %u200B%u200Bem todo o Estado est�o cooperando para desenvolver um plano diretor costeiro unificado, incentivando o governo a tomar mais iniciativas financeiras ap�s uma emerg�ncia. Enquanto isso, do outro lado do pa�s, o Conselho Estadual de Controle de Recursos H�dricos da Calif�rnia est� pensando em se conceder mais poderes, potencialmente obrigando as pessoas que controlam rios e riachos a compartilhar com a comunidade. Se eles puderem fazer isso sem recorrer a um ferrete, melhor.

Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s), no site da BBC Future.

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