
A hist�ria da jovem � uma das muitas que revelam como a influ�ncia do narcotr�fico no M�xico se estende cada vez mais sobre aqueles que ainda n�o atingiram a maioridade.
No entanto, a falta de dados precisos — diferentes organiza��es e autoridades estimam que pode haver algo entre entre 35 mil e 460 mil crian�as e adolescentes ligados ao crime organizado no M�xico — torna sua realidade quase invis�vel.
Mas suas experi�ncias, algumas chocantes, s�o parte do cotidiano. Muitos jovens s�o usados %u200B%u200Bcomo "bucha de canh�o". Os cart�is sabem que, caso os menores de idade sejam presos, suas senten�as costumam ser muito mais brandas.
A ONG Reinserta, que trabalha com jovens dentro do sistema de justi�a criminal, ouviu dezenas dessas hist�rias em centros de deten��o e elaborou um estudo, intitulado "Meninas, meninos e adolescentes recrutados por criminosos organizados".
A hist�ria de Susana, agora com 17 anos, � a de uma filha de narcotraficantes. A BBC reproduz a hist�ria dela, abaixo, com autoriza��o da Reinserta.
Nasci em Monterrey, Nuevo Le�n, em uma fam�lia r�gida. Minha m�e sempre quis o melhor para mim e meus irm�os, por isso ela era muito dura conosco em quest�es de educa��o e valores.
Ela tinha dois empregos: no primeiro era ajudante de cozinha, trabalhava das sete da manh� �s sete da noite. Ent�o ela come�ou seu segundo emprego como dan�arina em um bar, de onde sa�a �s quatro da manh�. Fic�vamos sozinhos por muito tempo.
N�o sei muito sobre meu pai biol�gico, s� sei que ele trabalhava para o crime organizado e que algumas pessoas de um cartel advers�rio o mataram quando eu tinha 3 anos. � por isso que minha m�e come�ou uma nova fam�lia, e meu padrasto foi quem me deu seu sobrenome e me adotou como filha.
Desde pequena tive contato com armas. Minha m�e tinha uma pistola calibre 22 e um rev�lver 38 — encar�vamos isso como algo normal. Minha m�e e meu padrasto brigavam muito, o relacionamento deles n�o estava mais indo bem porque ele usava drogas o tempo todo, e minha m�e n�o gostava disso, ent�o eles decidiram se separar.

Como minha m�e n�o podia cuidar de n�s, pass�vamos a maior parte do dia com uma bab�. Minha m�e n�o tinha dinheiro suficiente, e ela nos via cada vez menos, ent�o ela come�ou a procurar uma forma de ganhar um extra.
Um irm�o dela disse que ela poderia conseguir mais dinheiro vendendo drogas. Foi assim que ela entrou no tr�fico — vendendo crack e coca�na. Como ela era boa em vendas, o cartel a contratou. Primeiro foram os Zetas, e depois o Cartel de Sinaloa.
Eu era muito apegada � minha m�e e ela era muito carinhosa comigo. Eu a admirava, queria ser como ela, muito forte em tudo.
Mas, assim como minha m�e, n�s [meus irm�os e eu] tamb�m come�amos a nos envolver com o tr�fico de drogas. Aos dez anos, come�amos a vender drogas para ajud�-la nas despesas da casa. Era o neg�cio da fam�lia.
Quando o Cartel do Golfo assumiu a �rea, minha m�e come�ou a trabalhar para eles. Mas os integrantes do outro cartel n�o gostaram do fato de ela ter ido para o lado do inimigo e deram ordens para assassin�-la.
Minha m�e foi morta por um assassino, ele atirou nela tr�s vezes. Eu tinha 12 anos quando fiquei �rf�. Tinha perdido a pessoa mais importante da minha vida: minha m�e.

Daquele dia em diante, cada um dos meus irm�os tomou caminhos diferentes. Eu fiquei na casa da minha m�e e comecei a usar drogas, fumei maconha, tomei p�lulas, coca�na... pouco a pouco fui ficando viciada. Eu era apenas uma menina e n�o sabia como seguir adiante, era covarde com a vida, n�o sabia como encarar isso.
Quando tinha 14 anos eu conheci um homem que virou meu namorado, ele era bem mais velho que eu, foi ele quem me apresentou drogas mais fortes como o tolueno [subst�ncia inalante que tem efeitos narc�ticos e alucin�genos] e o crack. Comecei a usar drogas diariamente.
Esse mundo me envolveu, meus novos amigos me ensinaram a roubar lojas de carros. Aos poucos comecei a ficar famosa porque era "muito imprudente", eu roubava sozinha.
At� que um dia veio um menino que me disse que era do Cartel Noroeste, me mostrou fotos de onde eu estava roubando e disse: "E a�, voc� vai se juntar a n�s?". Eu tinha 14 anos e n�o tinha outra escolha. "D�-me armas, drogas, carros, eu vou entrar [para o cartel]."
Pouco depois de entrar no cartel, eu fui presa e as autoridades me acusaram de crimes contra a sa�de, mas s� fiquei detida por um m�s. Quando sa�, tudo ficou muito claro para mim: eu n�o queria vender drogas, eu queria matar pessoas. O cartel tem diferentes �reas: venda de drogas, sequestro ou extors�o, tr�fico de pessoas e assassinatos por encomenda. Esse era o grupo do qual eu queria participar.
Para isso, eu tive que passar por v�rios testes. A primeira foi assassinar um homem do lado de fora de um bar. Eles me deram uma arma preta calibre .40, eu sabia como as armas eram usadas pelo que vi nos filmes, mas nunca havia disparado uma. Isso n�o me impediu: eu sabia que tinha que fazer o trabalho porque minha vida e a possibilidade de trabalhar para o cartel dependiam disso.
Eu atirei nele quatro vezes. Eu corri para fora, cheia de adrenalina. Eu gostei, queria mais, me viciei nisso. Eu finalmente havia encontrado algo que me fazia sentir melhor do que as drogas: matar.

O segundo teste foi torturar um menino. Eu tive que cortar a m�o dele. Nesse caso eu quase desmaiei, mas a pessoa que estava me ensinando me disse que isso era normal.
Fui treinada para atirar, matar, mutilar e vender drogas, mas o que mais me chamava a aten��o foi matar pessoas. Eles me levavam para matar mulheres.
[Para mim] isso era uma maneira de liberar a raiva que senti quando minha m�e foi morta. Eu pensava: "Bem, se eles fizeram isso com minha m�e, por que eu n�o fa�o isso com os outros tamb�m?" Minhas v�timas eram mulheres que tinham filhos, eu queria que eles sentissem o que eu senti, eu as matei na frente das crian�as.
Tamb�m fui respons�vel pelo recrutamento de novos membros. O cartel procurava pessoas que n�o se importavam de morrer ou matar, independentemente da idade. Embora nunca tenha recrutado crian�as, eu sabia que elas eram uma ferramenta �til, pois o cartel pode se aproveitar delas e culp�-las pelos crimes cometidos por outros, porque elas saem em pouco tempo dos centros de deten��o. Acho que foi por isso que me pegaram.
Eu me sentia poderosa dentro do cartel, sentia que tinha mais valor do que muitos homens com quem trabalhei. Alguns entravam em p�nico e gritavam no momento do tiro, mas eu n�o, eu n�o sentia medo nem remorso. T�nhamos uma cota de dois homic�dios por dia. Receb�amos a informa��o [sobre quem matar] e t�nhamos o dia inteiro para cumprir a ordem. Caso contr�rio, n�o receb�amos pagamento.
Eu tinha 15 anos quando me mandaram vigiar a casa de um homem que �amos matar, mas algu�m chamou a pol�cia e me prenderam pela segunda vez.
Isso me custou cinco meses na pris�o. Durante o tempo que fiquei presa, n�o tive not�cias do cartel, eles me deram as costas. � por isso que eu decidi sair.
Quando sa�, fui morar novamente com meu padrasto e sua esposa, mas eles n�o me queriam. Ele preferia estar com ela do que estar comigo.
Voltei para a casa que era da minha m�e. Eu tinha 16 anos. Nessa �poca, o cartel andou me procurando para voltar ao trabalho e me encontraram. Eu disse a eles que n�o havia sido eu quem desertara, que eles tinham me deixado para morrer.
Para poupar minha vida, me levaram � casa de uma senhora para obter informa��es dela. Me mandaram arrancar os dedos dela, mas eu n�o queria, n�o queria matar mais. Os meses que fiquei presa haviam me mudado... mas era a vida dela ou minha, ent�o eu fiz o que tinha que fazer.
Continuei trabalhando para o cartel e um dia mandaram eu e alguns colegas roubar um carro que estava "cheio de roupas". Eu estava no comando do grupo, ent�o dei ordens, mas meus companheiros destru�ram o carro, perderam suas armas e me deram dez golpes como puni��o. Os golpes foram t�o fortes que lembro daquele dia, de como minha coragem surgiu.

Ap�s esse incidente, parei de receber meu pagamento. Quando vi que as quinzenas passavam e passavam, decidi desertar definitivamente e me dedicar � venda de drogas de forma independente com meu irm�o. Mas como a pol�cia estava de olho em mim, eles me prenderam e me colocaram de volta na cadeia por crimes contra a sa�de.
Neste momento estou em um centro de deten��o cumprindo um ano de priva��o de liberdade. Um dos meus irm�os vem me visitar e diz que meu padrasto tamb�m est� me apoiando. Para mim, estar aqui � uma oportunidade de reconstruir minha vida e fortalecer minha rela��o com minha fam�lia, � a �nica coisa que quero.
Quero continuar estudando e realizar o sonho de crian�a: ser criminologista. Mas acima de tudo, quero me afastar completamente do mundo do crime organizado. Para mim, estar no hospital significa estar em paz. Minha vida n�o est� mais em risco desde que cheguei aqui. Al�m disso, fiz bons amigos e tenho o apoio que n�o tive quando crian�a.
Se eu posso dar um conselho para uma crian�a ou adolescente, � para n�o se envolver nisso, porque eles s� v�o usar voc�s. Nesta vida � pris�o ou morte, n�o h� alternativa. Se minha m�e n�o tivesse sido assassinada, tudo o que estou vivendo hoje n�o teria acontecido.
* O nome real da protagonista desta hist�ria foi alterado para proteger sua identidade.
'Contextos violentos e abusivos'
O que mais chamou a aten��o dos respons�veis %u200B%u200Bpelo estudo Reinserta que ouviram hist�rias como a de Susana foi o impacto psicol�gico sofrido pela grande maioria dos entrevistados na forma de ansiedade, depress�o ou estresse p�s-traum�tico por serem expostos a tal grau de viol�ncia.
"Quase todos eles vieram de contextos violentos, v�timas de maus-tratos. Muitos foram abandonados cedo, largaram a escola e tiveram acesso �s drogas ainda aos dez anos de idade, o que � um passo anterior � liga��o com o crime organizado", diz Marina Flores Camargo, diretora de pesquisa da ONG e que liderou o estudo.
Outros fatores comuns encontrados foram as dificuldades econ�micas de fam�lias, na maioria delas fam�lias problem�ticas. "Esse cen�rio faz com que as crian�as percebam que, depois de sa�rem da escola, podem ficar em casa ou se ligar ao crime. E essa � a op��o que lhes permite ganhar dinheiro. N�o h� metas nem expectativas", diz Camargo � BBC Mundo.
Os seus testemunhos revelam as diferentes formas de opera��o de cada cartel de acordo com a regi�o do pa�s. No Norte, devido � proximidade com a fronteira com os EUA, jovens relataram ser mais f�cil transportar droga. E � onde o treino para ser assassino, com o apoio de ex-militares, � mais violento e mais longo (at� seis meses).
N�o h� grandes diferen�as de g�nero, como no caso de Susana. "O que os diferencia � que as hist�rias delas [as mulheres] s�o muito mais violentas. Algumas j� sofreram abuso sexual, gravidez indesejada, abortos, maus-tratos... Eram hist�rias de viol�ncia de g�nero muito mais crueis", diz Camargo.
A especialista lamenta a falta de programas sociais que facilitem a reinser��o social dos menores, o que tamb�m contribui para que ap�s a pris�o eles continuem no mundo do crime.
"� necess�rio criar centros comunit�rios especialmente onde a viol�ncia j� foi identificada, detectar casos a tempo nas escolas para poder direcion�-los... n�o ver este problema de forma integral � um erro", conclui a especialista da Reinserta.
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