Bonde de Kiev, no p�s-guerra, em 1948 (foto: O Cruzeiro/Arquivo EM)
Eram tempos da Guerra Fria, da Cortina de Ferro e da Uni�o das Rep�blicas Socialistas Sovi�ticas (URSS) ou simplesmente Uni�o Sovi�tica – que se esfacelou em 1991, mudando a geopol�tica no mundo e sepultando o regime iniciado com a Revolu��o de Outubro de 1917. Seis anos antes do colapso do Estado, do qual faziam parte R�ssia, Ucr�nia e mais 13 na��es, o casal de jornalistas Cyro Siqueira e Anna Marina, do Estado de Minas, visitou Moscou, a hoje bombardeada Kiev, capital ucraniana, e outras regi�es da vastid�o entre Europa e �sia.
Hoje, diante das imagens de Kiev atacada por m�sseis, comboios militares e ataques a�reos, Anna Marina, colunista e editora do caderno Feminino do EM, se mostra perplexa. “Aonde ser� que Putin (presidente da R�ssia) quer chegar?”, pergunta, ao se lembrar de cenas que marcaram a mem�ria e trazem um passado de mais humanidade. Numa das imagens que a retina gravou, em abril de 1985, est� uma turma de estudantes ucranianas, na pra�a de frente a uma escola, coletando todo tipo de lixo. “N�o posso me esquecer. Depois da aula, a turma fazendo a limpeza.”
Eis um relato de Anna Marina sobre Kiev, conhecida como “Cidade Heroica”, cortada pelo Rio Dnieper e devastada pelos alem�es durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com perda de mais de 200 mil vidas. Era abril de 1985, quando ela destacou: “Hoje, totalmente reconstru�da, a cidade � linda, cheia de parques (onde, neste in�cio de primavera, os cidad�os trabalham voluntariamente para preparar tudo para a chegada das flores; � impressionante ver desde crian�as at� velhos de enxada e ancinho na m�o, mulheres, �s vezes at� com bolsa pendurada no bra�o, trabalhando os jardins p�blicos), e do Monte Vladmir pode-se ter uma bela vista da cidade velha at� o Rio Dnieper”.
Anna Marina falou, na s�rie publicada pelo EM, sobre os equipamentos culturais – o que causa como��o neste mar�o de 2022, devido �s amea�as e � destrui��o de monumentos. “Para visitar, existe a Catedral de Santa Sofia, constru�da no s�culo 11, reconstru�da v�rias vezes e com um interior espl�ndido na sua combina��o de afrescos, mosaicos e arte. Ainda para se ver, a Igreja da Trindade, com um iconost�sio todo trabalhado em talha dourada a ouro, o Museu de Arquitetura e Hist�ria de Santa Sofia.”
Ainda sobre a cultura local, a jornalista destacou o Museu Ucraniano de Arte Folcl�rica e Decorativa, com acervo formado por pe�as de prata encontradas em escava��es, at� a moderna arte p�s-revolu��o, a exemplo “de trajes t�picos, cer�mica (muito semelhantes �s do Vale do Jequitinhonha e do M�xico), lindos tapetes (com a trama do kilim), lou�a, cristais”. Tamb�m no roteiro, o museu dedicado � arte europeia e oriental, “com bons quadros de Bellini”.
Casal de jornalistas do Estado de Minas, Cyro Siqueira e Anna Marina, na viagem � antiga Uni�o Sovi�tica, em 1985 (foto: Arquivo pessoal)
Caviar nas ruas e “gente s�ria”
Anna Marina e Cyro Siqueira (que faleceu h� 8 anos) integraram um grupo de jornalistas e agentes de viagem. “Na capital russa, fiquei impressionada com o controle absoluto dos agentes da alf�ndega, algo que nunca tinha visto. Vasculhavam tudo, contavam e anotavam at� o n�mero de pedras dos brincos, an�is, colares e outras joias que mulheres e homens usavam.”
Sem dar a m�nima para caviar – “N�o gosto mesmo!”, ressalta – , Anna Marina nem se preocupou em comprar a iguaria em Moscou. “At� mesmo o Beluga (considerado o melhor do mundo) estava � venda nos camel�s, com um pre�o tr�s vezes inferior ao das lojas.” Na volta, uma decep��o gastron�mica para grande parte dos viajantes, que se abasteceu nos vendedores das cal�adas. “Como ningu�m tinha recibo, os agentes da alf�ndega apreenderam tudo.”
Uma boa lembran�a est� no servi�o dos hot�is. “As toalhas eram de um linho grosso, muito boas e bonitas. At� procurei nas lojas, pois queria trazer para o Brasil, mas n�o encontrei.” E tem uma passagem bem curiosa: “Os russos tinham fasc�nio pela cal�a jeans. A camareira at� me perguntou se eu tinha alguma para vender”.
Como as temperaturas j� estavam mais baixas, com todo mundo encapotado, a jornalista nem p�de reparar muito no semblante das pessoas nas ruas. Mas numa das mat�rias da s�rie (“A R�ssia, esse pa�s distante”), definiu bem no t�tulo: “E o povo? � triste? Resposta: � s�rio”.
Visto a jato
A viagem � antiga URSS, na verdade, come�ou alguns dias antes do embarque – para conseguir o visto de entrada. “Cyro me falou, dois dias antes, sobre a viagem; portanto, eu teria que ir a Bras�lia com urg�ncia. Peguei o avi�o e passei o dia inteiro na embaixada, dizendo que s� sairia de l� com o visto na m�o. Felizmente, deu tudo certo, mas foi uma correria danada”, conta Anna Marina.
Se para a jornalista foi a primeira viagem � URSS, n�o foi para o marido. Cyro Siqueira esteve l� bem antes, em agosto de 1956, incluindo uma viagem no trem transiberiano, de Moscou (R�ssia) a Pequim (China). Naquela �poca, considerou “nove dias e nove noite numa ‘maria-fuma�a’”.
Tamb�m publicando uma s�rie de mat�rias no EM, Cyro Siqueira escreveu sobre as cidades, o comportamento do povo, futebol – um dia antes da chegada, o time da Portuguesa, do Rio de Janeiro, tinha jogado contra o D�namo, de Moscou – a bebida paix�o nacional, a vodca, e enfocou a moda, observando que a apar�ncia das russas (malvestidas e masculinizadas) come�ava a preocupar seriamente o Estado sovi�tico.
Passadas d�cadas, a uni�o das rep�blicas simbolizada pela foice e o martelo se esfarelou, a curiosidade de revelar os costumes por tr�s da cortina de ferro se transformou em rep�dio global praticamente generalizado � R�ssia p�s-invas�o da Ucr�nia e os relatos do casal de jornalistas se transformaram em fotografias no �lbum da hist�ria. Imagens que ajudam a contar a trajet�ria de um imp�rio que parece ainda sonhar em reconquistar parte de seus dom�nios e de uma na��o que segue pagando o pre�o de sua independ�ncia.