
Um espi�o russo que fingia ser brasileiro tentou se infiltrar no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, segundo o Servi�o de Intelig�ncia holand�s.
O homem se apresentava como Viktor Muller Ferreira e havia se candidatado a um posto de est�gio n�o remunerado na institui��o, respons�vel por investigar, entre outras acusa��es, poss�veis crimes de guerra cometidos na Guerra da Ucr�nia.
Ele foi deportado de volta ao Brasil e, segundo a PF (Pol�cia Federal), est� sob cust�dia e ser� processado por uso de documentos falsos.
As autoridades holandesas dizem que seu nome verdadeiro � Sergey Vladimirovich Cherkasov e ele � um espi�o do GRU — a intelig�ncia militar russa.
O homem teria passado anos construindo uma identidade falsa, antes de se candidatar � vaga no TPI em Haia.
O Servi�o de Seguran�a e Intelig�ncia Geral da Holanda (AIVD, na sigla em ingl�s) informou que se ele tivesse conseguido assumir o cargo e se infiltrar na organiza��o, poderia ter causado danos reais.O epis�dio ocorreu em abril, mas s� foi divulgado agora.
"A amea�a representada por este oficial de intelig�ncia � considerada potencialmente muito alta", afirmou o �rg�o, em comunicado.
Para quem o conhecia, Viktor Muller Ferreira era um brasileiro interessado em assuntos internacionais. Mas, na realidade, disse o AIVD, � um tipo particular de espi�o russo conhecido como "ilegal".
Essa � a forma pela qual a intelig�ncia russa diferencia esses oficiais de espi�es "legais" que se disfar�am de diplomatas. Muitos pa�ses usam espi�es fingindo ser pessoas comuns, mas a R�ssia h� muito tempo se especializou em um tipo de agente ilegal disfar�ado que assume uma nacionalidade totalmente diferente da sua de origem. Esses espi�es fingem ser americanos, brit�nicos, canadenses ou — no caso de Ferreira — brasileiros para permitir que se movimentem em c�rculos nos quais os russos seriam recebidos com suspeita e, portanto, teriam mais dificuldade em operar.
O AIVD publicou um documento que se acredita ter sido escrito por Cherkasov por volta de 2010, no qual ele descreve sua identidade falsa, provavelmente para ajud�-lo a memorizar seu pr�prio disfarce.

"Sou Viktor Muller Ferreira", come�a.
A descoberta de tal documento indica um not�vel grau de desleixo por parte do espi�o.
Ao longo de quatro p�ginas, ele discorre sobre a hist�ria de sua fam�lia. Diz ter nascido em 4 de abril de 1989, em Niter�i (RJ) e vivido anos no exterior com uma tia, ap�s sua m�e morrer de pneumonia. Ele n�o seria fluente em portugu�s, o que se nota pelos seguidos erros gramaticais.
No relato, o homem diz que foi abandonado pelo pai. Teria sido, assim, criado pela m�e, que fazia apresenta��es de m�sica. Quando ela ficou doente, uma tia que n�o morava no Brasil o levou para morar com ela.
Segundo o documento, quando ainda estava no Brasil, diz se lembrar da ponte Presidente Costa e Silva, conhecida como Rio-Niter�i, e, por isso, teria avers�o ao cheiro de peixe.
Depois da morte da tia, ele teria procurado o pai no Rio de Janeiro e, embora tenham se encontrado, frustrou-se com a conversa que tiveram.
Dali, diz ter ido para Bras�lia, onde "em paralelo com a restaura��o da cidadania" teve aulas particulares de portugu�s. Sobre a capital, ele lista lugares que gostava de frequentar, como o restaurante A Tribo — que existe de fato. "Esse restaurante faz a melhor feijoada da cidade."
"Meu pai se mostrou uma pessoa muito amig�vel e aberta, mas para minha surpresa descobri que eu o culpava pelas mortes de minha m�e e minha tia e todas as dificuldades e humilha��es que tive que sofrer na vida", diz um trecho do documento.
Ele tamb�m fez refer�ncia a ter que ir � Irlanda para o funeral de seu pai.
Pode levar de cinco a 10 anos para um agente ilegal ser treinado e construir seu disfarce. Considerando os desafios, acredita-se que n�o haja muitos em opera��o — talvez menos de 30 do GRU, de acordo com estimativas do Ocidente.
O TPI � h� muito tempo alvo da intelig�ncia russa, e acredita-se que Ferreira come�ou a se movimentar para conseguir um est�gio na institui��o no final do ano passado. A import�ncia do tribunal cresceu desde que a R�ssia lan�ou sua invas�o da Ucr�nia. Em 3 de mar�o, o promotor do TPI abriu uma investiga��o sobre crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Ucr�nia.
O ICC oferece cerca de 200 est�gios n�o remunerados que d�o aos candidatos a oportunidade de "ganhar exposi��o ao ambiente de trabalho di�rio do ICC e colocar seus conhecimentos e experi�ncias em pr�tica sob a supervis�o de profissionais".
A posi��o lhe daria acesso a informa��es valiosas.

"Se o oficial de intelig�ncia tivesse conseguido come�ar a trabalhar com o TPI, ele poderia reunir intelig�ncia e procurar (ou recrutar) fontes e providenciar acesso aos sistemas digitais do TPI", disse o AIVD em um comunicado.
"Dessa forma, ele poderia dar uma contribui��o significativa para a intelig�ncia que o GRU est� buscando. Ele tamb�m pode ter sido capaz de influenciar os processos criminais do TPI."
Candidatar-se a um posto no TPI era um risco para um espi�o disfar�ado, mas seus chefes em Moscou devem ter achado que isso valia a pena. "Ilegais" s�o notoriamente dif�ceis de serem encontrados — acredita-se que sua identidade real n�o tenha sido descoberta pelo TPI — e as autoridades holandesas n�o disseram como ele foi identificado.
Perfis de redes sociais analisados pela BBC e que se acredita serem de Ferreira revelam uma extensa lista de amigos — incluindo v�rios estudantes internacionais de duas institui��es que ele parece ter frequentado — a Universidade Johns Hopkins, nos EUA, e o Trinity College, em Dublin, Irlanda. Uma vez formados, esses amigos passaram a trabalhar em diferentes locais, desde o banco de investimento Goldman Sachs at� think tanks e ag�ncias reguladoras federais em Washington DC. N�o h� ind�cios de que eles soubessem de que o homem seria um espi�o russo.
"Ele tinha um sotaque que n�o consegui identificar. Mas n�o era russo", disse um de seus professores � BBC. Acredita-se que Ferreira tenha se candidatado ao TPI em setembro de 2020, mas a revis�o da candidatura pode ter sido adiada devido � pandemia de covid-19.
"O Brasil est� sub-representado na ICC, ent�o essa pode ser minha chance!", disse Ferreira em determinado momento.
Um perfil diz que Ferreira se mudou para a capital dos Estados Unidos, Washington DC, em agosto de 2018 e um registro mostra que ele se formou na Johns Hopkins em 2020.
Postagens nas m�dias sociais revelam uma mistura ecl�tica de vis�es, incluindo algumas que s�o levemente cr�ticas � R�ssia, o que pode ser interpretado como uma tentativa de continuar a construir seu disfarce.
Em um desses posts, ele publicou um relat�rio do grupo de investiga��o Bellingcat sobre a descoberta de identidades online usadas pelo GRU, um movimento bastante incomum para algu�m que agora � acusado de ser um agente secreto do GRU.
Com seu disfarce agora descoberto, por�m, seu futuro como um espi�o disfar�ado estar� acabado.
'Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61838944'
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