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Estado de Minas RELIGI�O E HIST�RIA

O que se sabe sobre Joaquim e Ana, av�s de Jesus

Principal fonte de informa��es biogr�ficas sobre Joaquim e Ana � um evangelho ap�crifo, texto conhecido como Proto-Evangelho de Tiago. O problema � que esse material foi escrito bem depois da morte deles, provavelmente por volta do ano 150 da era Crist�.


25/07/2022 08:21 - atualizado 25/07/2022 10:28

Obra 'Anunciação a Joaquim e Ana', afresco de Gaudenzio Ferrari
Obra 'Anuncia��o a Joaquim e Ana', afresco de Gaudenzio Ferrari (foto: dom�nio p�blico)

Em termos hist�ricos, pouqu�ssimo se sabe sobre quem foram Joaquim e Ana, os pais de Maria, m�e de Jesus. Biologicamente � �bvio que Jesus teve av�s — mesmo que n�o os tenha conhecido. Mas as poucas linhas reservadas a esse casal, os pais de Maria considerados santos pela Igreja Cat�lica, foram escritas muito tempo depois de eles terem vivido e parecem muito mais servirem para justificar mitos do que para relatar verdades hist�ricas.

A principal fonte de informa��es biogr�ficas sobre Joaquim e Ana � um evangelho ap�crifo, texto conhecido como Proto-Evangelho de Tiago. O problema � que esse material foi escrito bem depois da morte dos ali citados, provavelmente por volta do ano 150 da era Crist�. E, claro, havia um contexto de afirma��o de alguns valores que eram muito caros �queles primeiros crist�os — a come�ar pela necessidade de justificar as origens de Maria, a m�e de Jesus, como que para refor�ar que ela n�o seria de uma fam�lia qualquer.

"Historicamente, n�o sabemos nada sobre os pais de Maria. A �nica coisa que temos como evid�ncia [a respeito deles] � o Proto-Evangelho de Tiago, que � um texto n�o can�nico do segundo s�culo", corrobora o vaticanista Filipe Domingues, doutor em ci�ncias sociais pela Pontif�cia Universidade Gregoriana e vice-diretor do Lay Centre, em Roma.

"Santa Ana e S�o Joaquim aparecem nesse texto. N�o � exatamente uma evid�ncia hist�rica, j� que estamos falando j� de [algo escrito] muito tempo depois da vida de Jesus e de um texto n�o can�nico", completa ele, em conversa com a BBC News Brasil. "Assim, o que a gente sabe sobre eles � o que acabou entrando na tradi��o. Hist�rias baseadas em relatos que circulavam desde o in�cio do cristianismo, e muitos deles acabaram ficando."

Autor do rec�m-lan�ado livro Jesus de Nazar�: O Que a Hist�ria Tem a Dizer Sobre Ele, o historiador Andr� Leonardo Chevitarese, professor do Instituto de Hist�ria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra que todas as "quest�es relativas � inf�ncia de Jesus", inclusive as relacionadas a seus pais, av�s e demais familiares, foram resolvidas de forma "muito posteriores a Jesus".

A quest�o da fam�lia de Jesus

Antiga gravura de autor desconhecido mostra Joaquim e Ana com Maria bebê nos braços
Antiga gravura de autor desconhecido mostra Joaquim e Ana com Maria beb� nos bra�os (foto: dom�nio p�blico)
Analisando sob o prisma historiogr�fico, faz todo sentido: para seus contempor�neos, quando o movimento Jesus Cristo acontecia, n�o era importante registrar tais detalhes biogr�ficos, posto que era imposs�vel antever a maneira como sua vida e sua mensagem acabariam dando origem a algo maior — no caso, uma nova religi�o.

"� preciso ter aten��o a isso", enfatiza Chevitarese, � reportagem. O historiador recorda que dados sobre a genealogia de Jesus est�o presentes, considerando os livros can�nicos, nos evangelhos de Mateus e Lucas. "E eles escrevem isso cerca de 90 anos depois do nascimento de Jesus", pontua.

O pesquisador explica, contudo, que h� an�lises comparativas que indicam que essas passagens, digamos, introdut�rias ao nascimento de Jesus foram enxertadas a posteriori, ou seja, n�o teriam sido grafadas ao mesmo tempo que o relato do evangelho em si. "Isso porque se excluirmos os dois primeiros cap�tulos de Mateus e os tr�s primeiros de Lucas, observamos que ambos come�ariam seus evangelhos exatamente como Marcos", comenta o historiador.

"A gente suspeita que os dados relativos ao nascimento de Jesus e a Jos� e Maria como pais de Jesus teriam sido suplementos agregados de forma tardia, provavelmente no s�culo 2", acrescenta.

Segundo Chevitarese, isso ocorreu porque havia "uma demanda" no meio daqueles primeiros grupos crist�os. "Ao longo do s�culo 1, n�o havia um interesse acerca do nascimento e das origens [familiares] de Jesus. Quando veio esse interesse, j� era tarde, n�o havia mais ningu�m vivo para tirar as d�vidas, para explicar quem era o pai, quem era a m�e, o que faziam, filhos de quem eram, essas narrativas da inf�ncia de Jesus", pondera.

� por isso, acredita o pesquisador, que as narrativas acabaram recebendo contornos muito pr�ximos de hist�rias mitol�gicas em geral, em que Jesus "ganha status divino". "S�o modelos para se falar de narrativas de nascimento de homens gigantes. Isso come�a na oralidade. E a tradi��o fixou os nomes dos pais de Jesus como Jos� e Maria, muito tardiamente", prossegue.

Nesse momento surgiu o documento chamado de Proto-Evangelho de Tiago, a "fonte" mais completa no que tange a informa��es sobre Joaquim e Ana, os av�s de Jesus. "� um documento comumente datado da primeira metade do s�culo 2. A quest�o que estava ali presente era a necessidade de resolver um problema relativo � m�e de Jesus, porque pesava sobre ela acusa��es seri�ssimas, entre as quais o fato de ter tido um filho, Jesus, fora do casamento", contextualiza Chevitarese. "Fora de uma uni�o legitimamente concebida pelas leis judaicas, pelas leis religiosas judaicas. Segundo [o evangelho de] Mateus, Jos�, quando soube que Maria estava gr�vida, disse 'esse filho n�o � meu, eu nunca tive qualquer contato com ela'."

"No momento em que se precisava resolver a situa��o de Maria, entram [nas narrativas] os pais de Maria, ou os av�s de Jesus. Chamados de Joaquim e Ana", afirma o historiador. "Agora, se n�o temos nem sequer dados confi�veis sobre quem eram os pais de Jesus, imagina sobre quem era os av�s, Joaquim e Ana. Provavelmente estamos, portanto, no campo do mito, no campo de um tipo de literatura que quer resolver essa acusa��o de, entre aspas, prostitui��o de Maria, a m�e de um filho ileg�timo, fora do casamento."

O que diz o Proto-Evangelho

O Proto-Evangelho de Tiago � constru�do de forma a dar essa aura de santidade para Maria. "Cria-se a inser��o Joaquim e Ana para mostrar que Maria tem fam�lia, que n�o � uma prostituta nem uma enlouquecida. Que ela tem pedigree. E Joaquim e Ana s�o descritos como aqueles incumbidos de criar Maria sob a lei judaica, colocando-a praticamente para viver dentro de um templo", elucida o historiador. "Toda essa hist�ria � fantasiosa, cheia de mitos e equ�vocos por parte da lei judaica de pureza, etc."

Para Chevitarese, abordar esse tema significa "entrar em narrativas m�ticas, cujo valor hist�rico tende a zero". "Voc� entra em um terreno mais de nascimentos divinos, modelando a� Jesus como os her�is da bacia mediterr�nica", explica. "Ao mesmo tempo, h� a tradi��o oral, com muita imagina��o popular e trabalhos de redatores que v�o mexer nesses relatos, dando contornos ou fei��es hist�ricas."

Estudioso de hagiologias, Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos, esmiu�ou � BBC News Brasil as refer�ncias aos av�s de Jesus que constam do Proto-Evangelho citado — ressalvando que "� muito dif�cil saber com precis�o hist�rica informa��es sobre essas duas figuras santorais".

"O texto mais completo [a respeito deles] � o Proto-Evangelho de Tiago. Ali est� narrado o nascimento miraculoso ou milagroso de Maria, que segundo o texto teria nascido de pais est�reis", conta Maerki.

Segundo o relato, Joaquim e Ana j� tinham idade avan�ada e nenhum filho. "Nessa �poca, um casal sem filhos eram considerado amaldi�oado por Deus. Tanto Ana quanto Joaquim s�o apresentados como fervorosos na ora��o, pedindo a Deus que os livrasse dessa maldi��o", afirma o pesquisador.

Ent�o, Joaquim teria feito um jejum de 40 dias no deserto e, assim, suas preces foram ouvidas. "Ao voltar para casa, Ana o esperava na chamada Porta Dourada, de Jerusal�m. E a concep��o com o consequente nascimento de Maria teria sido um grande milagre de Deus", acrescenta Maerki.

Ele contextualiza que, durante a Idade M�dia, construiu-se uma tradi��o de que nesse reencontro do casal, Joaquim teria dado um beijo em Ana. "E nesse momento teria ocorrida a fecunda��o do �vulo de Ana. � uma tradi��o para defender que n�o houve ato sexual. Tanto Joaquim quanto Ana j� eram idosos, n�o podia ter filhos e, nesse sentido, Maria foi concebida n�o por vias biol�gicas", explica.

Maerki conta que a igreja oriental acabou estudando mais as biografias de Joaquim e Ana do que o ramo ocidental. "Segundo a tradi��o oriental, S�o Joaquim teria pertencido � fam�lia real de Davi e era parente pr�ximo de Jos� [que viria a ser marido de Maria]", comenta. "Mais tarde, padres bolandistas [grupo de religiosos jesu�tas] editaram uma publica��o chamada 'Acta Santorum', com a vida de v�rios santos. Eles afirmaram que S�o Joaquim era irm�o de Jos�. Parece que havia uma proximidade muito grande entre eles."

No Proto-Evangelho de Tiago, Joaquim � apresentado como um homem de posses e muito virtuoso. "Ele aparece como um homem de riquezas que constantemente ofertava a Deus, pedindo que de fato tivesse um filho", acrescenta o pesquisador.

O texto ap�crifo cita que certa vez, ao fazer suas doa��es no templo, Joaquim foi repreendido por Ruben, um sacerdote — julgando-o por n�o ter filhos, mesmo casado h� mais de 20 anos, ele n�o seria digno de realizar a oferenda.

"O fato de Joaquim n�o ter descendente era como se fosse um estigma, e havia preconceito contra ele. Ele foi recriminado no templo por n�o ter filhos", explica Maerki.

Joaquim teria decidido consultar os registros das "12 tribos de Isreal" a fim de verificar se seu caso era �nico. "Procurou e achou: realmente em Israel todos os justos tinham tido posteridade", relata o pesquisador. Mas deparou-se com a hist�ria de Abr�o, que tamb�m s� havia conseguido gerar filhos com sua esposa, Sara — mas isso teria ocorrido na velhice.

"Essa faceta � importante, porque mostra o homem esperan�oso, que tem consci�ncia de que Deus n�o o abandonar�", interpreta Maerki. "Joaquim, nesse sentido, � apresentado como o homem que espera o milagre divino."

Conforme comenta o pesquisador Maerki, a beleza do relato ap�crifo reside justamente no fato de que tanto Joaquim quanto Ana s�o apresentados como "duas biografias de tristeza, de ang�stia profunda por n�o gerarem descendentes" e, ao mesmo tempo, como dois que "acreditavam na ora��o, que Deus faria um milagre". E depois eles se tornam pais "da maior figura santoral da Igreja, que � Maria", definida como "a maior dentre os nascidos de homens".

Maerki tamb�m localizou men��es ao casal em outro texto ap�crifo, o Evangelho de Pseudo-Mateus. "Nele, h� refer�ncias mais pontuais", afirma. Ele destaca, contudo, uma passagem que ilustraria bem o car�ter bondoso de Joaquim.

"Ele � descrito como uma figura extremamente devota e uma pessoa que se preocupava com o outro, sobretudo com os �rf�os, com os peregrinos, com as vi�vas e os mais pobres. E diz que ele separava tudo o que conseguia produzir em tr�s partes: uma ficava para a manuten��o de sua casa, outra doava ao templo, o restante aos desfavorecidos. [O texto] demonstra um homem de car�ter extraordin�rio", analisa.

Fora desses momentos pr�ximos ao que seria o nascimento de Maria n�o h� outros registros sobre ambos, tampouco nada que cite se houve ou n�o algum relacionamento entre eles e Jesus. H� a men��o de que Ana teria morrido com 80 anos — e nada sobre a morte de Joaquim.

"Eles n�o aparecem na vida p�blica de jesus, por isso tamb�m ficam de fora do relato b�blico can�nico", comenta o vaticanista Filipe Domingues. "Eles n�o existem na B�blia."

Mil anos depois

Se as primeiras men��es registradas a respeito dos que teriam sido av�s de Jesus datam do s�culo 2, foi apenas na Idade M�dia que a mem�ria deles se difundiu amplamente entre os crist�os. "A formaliza��o dessa devo��o s� come�ou a partir dos s�culos 11, 12… Demorou muito tempo. N�o � uma coisa que existiu na tradi��o antiga, essa coisa de que Jesus tenha tido av�s, pessoas santas e tal. A devo��o foi formalizada mais de mil anos depois", pontua Domingues.

Maerki acredita que os grandes respons�veis pela divulga��o dessas hist�rias tenham sido as Cruzadas. "Por volta do ano 550 j� havia uma bas�lica dedicada a Santa Ana em Constantinopla, na igreja oriental", afirma. "Mas no ocidente essa festa come�ou a se difundir apenas muito mais tarde."

Em texto publicado no ano passado, o hagi�logo Jos� Lu�s Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acara�, do Cear�, reconhece que "n�o se sabe muito sobre ela". Ele situa, contudo, algumas hist�rias ligadas � santa.*

"Creio que a Par�quia mais importante a ela dedicada � a Par�quia pontif�cia existente dentro da cidade-estado do Vaticano. Sua constru��o data do s�culo XVI", exemplifica. "A b�n��o do templo se deu em 1583."

"Em Jerusal�m existe a Bas�lica de Sant'Ana, constru�da sobre a casa da santa, local do nascimento de Nossa Senhora", cita Lira.

O hagi�logo tamb�m recorda uma antiga tradi��o, ligada ao expansionismo isl�mico. Ent�o um soldado que estava na Terra Santa e sabia onde estava sepultada de Ana queria proteg�-la "da profana��o".

O corpo da santa foi ent�o confiado a crist�os que o teriam levado at� a Fran�a, na catedral de Apt. Esses restos mortais, conforme o relato, teriam sido redescobertos 530 anos mais tarde, quando o imperador Carlos Magno (742-814) passou pela cidade. "O caix�o foi aberto e o corpo sagrado apareceu com uma placa de prata na cabe�a, recitando em letras gregas: 'o cr�nio de Santa Ana, a m�e da m�e de Deus'", relata Lira.

Como era praxe em tempos medievais, aqueles restos mortais acabaram loteados em rel�quias, de forma de fragmentos do que seria o cr�nio e outros ossos da santa acabaram se espalhando entre nobres e religiosos europeus.

Conforme hist�rico divulgado pelo site de not�cias sobre a Santa S� Vatican News, "o culto aos av�s de Jesus desenvolveu-se, primeiro, no Oriente e, depois, no Ocidente". "Mas, ao longo dos s�culos, foram recordados pela Igreja em datas diferentes", diz o texto.

"Em 1481, o Papa Sisto 4º introduziu a festa de Sant'Ana no Brevi�rio romano, fixando a data da sua mem�ria lit�rgica em 26 de julho, dia da sua morte, segundo a tradi��o; em 1584, o Papa Greg�rio XIII incluiu a celebra��o lit�rgica de Sant'Ana no Missal Romano, estendendo-a a toda a Igreja; em 1510, Papa J�lio II inseriu, no calend�rio lit�rgico, a mem�ria de S�o Joaquim em 20 de mar�o; depois, foi mudado v�rias vezes, nos s�culos seguintes", prossegue a cronologia. "Com a reforma lit�rgica, ap�s o Conc�lio Vaticano II, em 1969, os pais de Maria foram 'reunidos' em uma �nica celebra��o, em 26 de julho."

O vaticanista Domingues explica que tal unifica��o tem um significado forte. "� para dar � data um s�mbolo de fam�lia, de santidade da fam�lia", analisa ele. "E tamb�m porque eles representam a passagem do mundo velho para o mundo novo, o mundo da tradi��o judaica, da qual eles participavam, para o mundo crist�o que ser� fundado a partir do filho de Maria."

De oficial, o Vaticano registra apenas esta frase no Martirol�gio Romano, o livro dos santos aprovados pelo catolicismo. Est� l�, em 26 de julho: "Mem�ria de S�o Joaquim e Santa Ana, pais da Imaculada Virgem M�e de Deus, cujos nomes foram conservados pelas antigas tradi��es crist�s".

- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62290716

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