
� o feriado mais importante do ver�o em boa parte da Europa. Tudo para na It�lia, na Espanha, em algumas regi�es da Alemanha e da Su��a, na �ustria, em Portugal, na Eslov�nia, na Fran�a, na B�lgica e na Rom�nia, por exemplo.
Trata-se da Festa da Assun��o de Maria, o dia em que, segundo a tradi��o cat�lica, Nossa Senhora, a m�e de Jesus, teria subido aos c�us de corpo e alma — uma morte incorrupt�vel, segundo a cren�a.
De lastro hist�rico, a festa em agosto acabou se apropriando do maior feriado pag�o de Roma antiga: a Feriae Augusti, nome depois reduzido para Ferragosto. Era a festa do imperador Augusto, institu�da por ele no s�culo 18 a.C. como dia de descanso para os camponeses depois das semanas intensas de trabalho.
J� sobre a biografia da m�e de Jesus, pouco se sabe que n�o sejam os registros b�blicos — ou seja, profundamente contaminados por uma vis�o simb�lica — e a tradi��o eclesi�stica constru�da nos s�culos seguintes — enviesada por uma verdadeira teologia mariana."N�o acredito que seja poss�vel inferir verdades hist�ricas, saber quem foi Maria, a m�e de Jesus", comenta o historiador Andr� Leonardo Chevitarese, professor do Instituto de Hist�ria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor dos rec�m-lan�ados Jesus de Nazar�: o que a hist�ria tem a dizer sobre ele e Jesus, o mago: um olhar (ainda) negligenciado sobre Jesus de Nazar�, entre outros.
Ele aponta como a prov�vel primeira men��o a uma m�e biol�gica de Jesus a carta escrita pelo ap�stolo Paulo ao povo dos G�latas. "Ele fala sobre o processo de encarna��o de um ser ang�lico no seio de uma mulher, como quem diz que Jesus nasceu de uma mulher. � um documento dos anos 50 do primeiro s�culo", contextualiza. "Mas n�o fala nada al�m disso. Nem sequer fala o nome da m�e de Jesus."
Pesquisadora de hist�ria do catolicismo na Pontif�cia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros concorda que "as fontes sobre 'Maria hist�rica' s�o bem escassas". "Al�m do Evangelho e dos Atos dos Ap�stolos, juntamente com a literatura ap�crifa, j� que o Protoevangelho de Tiago, e o Protoevangelho de Bartolomeu s�o alguns exemplos, n�o h� nenhuma outra fonte que descreva sua trajet�ria, do ponto de vista hist�rico", salienta ela.
M�e adolescente, vi�va jovem

Mas h� ind�cios que permitem acreditar que ela teria se tornado esposa de Jos� ainda adolescente, como era praxe entre fam�lias judaicas daquela �poca. "Segundo a literatura ap�crifa, que mencionamos, ela teria sido apresentada a Jos� aos 14 anos de idade", afirma Medeiros. "Agora seguindo a pr�xis da �poca, a mulher deveria ser dada em casamento logo cedo porque era considerada 'fonte de inquieta��o para os pais'. Sendo assim, segundo a vis�o da �poca, melhor que ela fosse prometida j� no come�o da puberdade. Algumas chegavam a ser apresentadas a seus futuros maridos a partir dos 12 anos de idade. Sendo assim, Maria, como qualquer outra mo�a da �poca, pode ter se casado com 14 ou 15 anos, no m�ximo."
"Especialistas defendem que, como mandava a tradi��o da �poca, Maria foi prometida a Jos� quando tinha por volta de 12 anos", conta o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos. "Isso n�o deve espantar. Essa ideia de que Maria foi prometida a Jos� muito nova � compat�vel com a tradi��o. E isso nos permite supor que ela teria nascido por volta do ano 18 a.C."
Pesquisas mais contempor�neas, vale ressaltar, costumam situar o nascimento de Jesus como algo ocorrido por volta do ano 4 a.C. — e n�o, como era de se supor, no ano 0.
Conforme frisa Chevitarese, "h� um modelo que normalmente se aplica para casamentos" desta �poca e neste contexto. "Comumente, as mulheres chegavam � idade do casamento a partir da primeira menstrua��o. Portanto, aos 12, 13 anos elas normalmente estavam aptas a casar", explica.
"Do ponto de vista modelar dos casamentos mediterr�neos, a jovem conhecia o futuro esposo no dia do casamento. A ideia de namorar inexistia. Essas meninas viviam junto � fam�lia e, portanto, s� iriam conhecer o marido muitas vezes na cerim�nia. O matrim�nio era uma rela��o de acordo entre as fam�lias", diz o historiador.
Segundo Chevitarese, eram tr�s as raz�es que costumavam alinhar esses acordos: favorecimentos pol�ticos, ganhos econ�micos ou rela��es de auto-ajuda. "Em se tratando de fam�lias de camponeses, � de se esperar que fosse a auto-ajuda a motiva��o dessas fam�lias", conclui ele.
"Do ponto de vista modelar, essas mulheres aos 16, 17 anos j� s�o m�es de dois ou de tr�s filhos", contextualiza.

O historiador lembra que essa situa��o acabava legando ao homem a responsabilidade de "educar sexualmente a sua jovem esposa", nesse contexto. Mais velho, o futuro marido j� seria algu�m maduro. "Era algu�m que poderia e deveria ter experi�ncia sexual, com as chamadas prostitutas. Enquanto a mulher, no caso Maria, deveria saber cuidar de uma casa, fazer comida, isso � a educa��o que a m�e teria de ter dado a ela", diz. "Uma educa��o de subordina��o em rela��o ao homem, ao futuro marido."
Chevitarese lembra que as refer�ncias � m�e de Jesus nos evangelhos s�o todos registros feitos posteriormente � morte dela. "Marcos [o evangelista] escreveu nos anos 70 do s�culo 1. Acho muito dificil que ele esteja falando de uma mulher historicamente comprovada", defende o historiador.
"A seguir, temos refer�ncias � Maria nos evangelhos de Mateus, de Lucas e de Jo�o, mas isso tudo � material bastante tardio. H� de se ter um certo cuidado e n�o jogar todas as fichas no que se fala sobre ela como sendo um dado historicamente comprovado. H� um enorme vi�s teol�gico em todas essas falas", atenta Chevitarese.
Ele sugere, portanto, partirmos do "enquadramento" para tentar entender a biografia de Maria. "O enquadramento corret�ssimo � Jesus como judeu de nascimento, vida e morte. Portanto, sua m�e era uma m�e judia. Quando consideramos os dados arqueol�gicos advindos de Nazar�, publicados pelo [pesquisador brit�nico] Ken Dark agora em 2020 e em 2021, Maria bem como seu filho Jesus eram judeus de caracter�sticas tradicionais, alinhados ao templo de Jerusal�m", diz o historiador. "Possivelmente uma fam�lia camponesa. O pai [Jos�], tamb�m, um judeu de origem camponesa."
Chevitarese lembra tamb�m de um ponto que pode justificar o fato de Jos�, sempre apresentado como algu�m mais velho, n�o aparecer nas narrativas de Jesus adulto. Para isso, ele recorre a pesquisas realizadas pelo historiador e te�logo irland�s John Dominic Crossan que "aventou a possibilidade de essa aus�ncia ser em raz�o de uma violenta repress�o do ex�rcito romano ocorrida ao lado da pequena aldeia de Nazar�". "Os romanos, para reprimirem uma revolta camponesa, dizimaram os indiv�duos que eles consideravam respons�veis. Crossan sugere que Jos� possa ter morrido nessa repress�o", acrescenta.
Esse ponto conferiria um outro fator biogr�fico para Maria: a jovem judia tamb�m era vi�va. Havia se tornado vi�va muito cedo.

M�e judia
Maerki atenta para o fato de que Maria, n�o sendo uma mulher crist�, mas judia, teria tido um papel fundamental para a educa��o moral de Jesus. "A concep��o de Maria crist� � uma constru��o eclesi�stica, feita por padres, monges, te�logos. Maria era judia, frequentava a sinagoga. A ideia de uma Maria crist�, de uma cristandade em torno de Maria � um produto da Idade M�dia", salienta.
"Algo importante na tradi��o judaica � o papel da m�e, de import�ncia �mpar. A mulher judia � respons�vel por transmitir a tradi��o religiosa, os valores judaicos para os filhos. A mulher judia � uma mulher extremamente importante, influente no seio familiar", ressalta Maerki. "Por mais que n�o tenham fun��o de destaque em rela��o ao poder, em uma sociedade onde o poder est� na m�o dos homens, n�o podemos esquecer que as mulheres eram as respons�veis pela educa��o dos filhos."
"Ent�o podemos imaginar Maria como uma mulher importante na forma��o de Jesus, naquilo que Jesus se tornaria enquanto homem", conclui o hagi�logo. "Talvez seja a grande influ�ncia na concep��o moral e �tica do homem Jesus. E isso a coloca em lugar de destaque na hist�ria da salva��o."
Processo de santifica��o
Essa "hist�ria da salva��o" � quando Maria transcende a figura humana para se tornar uma figura quase divina, uma institui��o fundamental do cristianismo. Segundo Medeiros, "o culto a Maria e sua coloca��o no projeto divino" � algo que come�a a surgir j� no s�culo 2, quando o bispo In�cio de Antioquia descreve "a estirpe de Jesus, se referindo diretamente a Maria. "Depois vem [no mesmo s�culo, o tamb�m bispo] Irineu de Lyon, que contrap�e as figuras de Eva e Maria", conta a vaticanista. "Eva, no caso, a que 'gerou a morte', em refer�ncia ao pecado. E Maria, que pela sua ades�o ao projeto salv�fico, disse sim � vida, a Jesus."
A ora��o da Ave-Maria, ressalta a pesquisadora, aparece originalmente escrita em grego no s�culo 3, como um dos muitos hinos marianos.
"Na minha concep��o, a figura de Maria � uma das mais complexas do cristianismo e, qui��, de toda a tradi��o religiosa. H� v�rias fontes e v�rios elementos que entram em cena para a forma��o da personagem Maria", pontua Maerki. "Al�m da tradi��o b�blica, h� a pr�pria tradi��o eclesi�stica que foi se firmando com o passar do tempo. A constru��o de alguns dogmas, algumas verdades de f� que foram sendo constru�das pela pr�pria Igreja, por decretos papais, por enc�clicas, ideias que foram desenvolvidas e aceitas, tornaram-na uma personagem complexa e dif�cil de ser compreendida em profundidade."
Um desses dogmas � o da virgindade da m�e de Jesus. Isto porque, com o passar do tempo, Maria passou a ser vista como algu�m cujas necessidades humanas n�o seriam compat�veis. "A figura humana de Maria foi perdendo espa�o com o avan�ar da hist�ria", diz Maerki.
"Ela se torna t�o importante quanto m�e de Jesus, que � Deus, que isso a vincula a um car�ter excepcional, algu�m al�m dos seres humanos comuns. Ela chega a ser quase uma divindade", explica ele.

"Obviamente que isso n�o � can�nico. A Igreja Cat�lica n�o considera Maria uma deusa, mas o destaque que ela ganhou na tradi��o a distancia daquilo que podemos chamar de uma mulher comum", acrescenta ele.
Isso explica essa necessidade de apagar, por exemplo, a sua sexualidade. "Isso come�a a ficar problem�tico", afirma Maerki. "Tudo o que � humano a respeito dela come�a a ser negado. O que gera uma s�rie de pol�micas, como aquela de que Jesus teria tido irm�os ou irm�s, algo mencionado no Novo Testamento e que a Igreja Cat�lica sempre procurou defender [interpretando o trecho como uma tradu��o para primos e primas, em vez de irm�os e irm�s] que Maria teve um �nico filho, Jesus."
A� vem para a quest�o da morte de Maria. Como algu�m acima dos seres humanos comuns, ela n�o poderia ter tido uma morte comum, com restos mortais perecendo sob a terra em algum t�mulo.
Veio a ideia da Assun��o de Maria. A festa do 15 de agosto. Embora fosse uma tradi��o antiga das igrejas Cat�lica Romana, Ortodoxa, Ortodoxas Orientais e partes da Anglicana, a doutrina s� foi formalizada em 1950, em documento do papa Pio 12. O texto diz que "tendo completado o curso de sua vida terrestre, foi assumida, de corpo e alma, na gl�ria celeste".
A celebra��o, contudo, j� existia muito antes, como ressalta Medeiros. "A festa, em si, foi institu�da tardiamente, no s�culo VII, pelo Papa S�rgio I. Mas j� era celebrada no Oriente, por monges da Palestina por volta do s�culo V. � uma das mais antigas festas marianas, sem d�vida. A Igreja Cat�lica s� declarou a Assun��o de Maria um dogma em 1950, com o Papa Pio XII", pontua ela.
"H� uma refer�ncia no Lecion�rio Gregoriano do s�culo 8, em que a festa j� era chamada de Assun��o da Bem-Aventurada Maria", diz Maerki.
Chevitarese ressalta que essa "ideia da assun��o de Maria de corpo e alma para o c�u n�o se apoia em nenhum autor dos quatro primeiros s�culos". "Surgiu j� no per�odo medieval", diz ele, situando "resqu�cios" da hist�ria entre os s�culo 5 e 10.
O que � obviamente ineg�vel, por raz�es puramente biol�gicas, � que Maria tenha morrido. Sobre a longevidade dela, contudo, s� h� hip�teses. "H� ind�cios de que Maria, ap�s a forma��o da primeira comunidade crist�, que ocorreu logo ap�s a morte de Jesus, teria passado seus �ltimos dias em �feso, atual Turquia, onde foi assistida por Jo�o, disc�pulo de Jesus e autor de um dos quatro evangelhos", diz Medeiros.
"Outra tradi��o sustenta que ela, embora tivesse vivido em �feso, teria voltado para Jerusal�m, onde morreu com cerca de 50 anos de idade", acrescenta ela. "Sobre o Monte Si�o, os arque�logos encontraram alguns ep�grafes de peregrinos que passavam pelo local para venerar um t�mulo antigo, datado do s�culo 1, que foi atribu�do a Maria, e sobre o qual foi constru�da uma bas�lica a ela dedicada."
A vaticanista lembra que, neste lugar, ainda de acordo com uma antiga tradi��o, teria acontecido a "dormi��o de Maria", epis�dio narrado em v�rios manuscritos do s�culo 4. "Mas o documento que sobressaiu entre eles, no qual aparece que Maria morreu 'como qualquer ser humano, mas foi arrebatada, de corpo e alma, gloriosamente aos c�us' foi o Dormitio Mari�, ap�crifo atribu�do a S�o Jo�o evangelista. � por meio desse escrito que come�a a cren�a na Assun��o de Maria, a partir do s�culo 5, mais ou menos", contextualiza ela.
Biblicamente, Maria teria testemunhado a crucifica��o e morte de seu filho Jesus. E teria participado da primeira comunidade crist�, ou seja, integrado aquele grupo de seguidores que iniciaram a propaga��o do cristianismo. "Tudo incerto", enfatiza Maerki. "Mas alguns estudiosos apontam que ela teria morrido por volta do ano 40, com cerca de 58 anos."
"N�o temos como inferir com qual idade ela morreu", sentencia Chevitarese. "N�o h� qualquer proje��o que nos permita isso. Os evangelhos associam Maria ao momento da crucifica��o. Mas eu n�o arriscaria."
O historiador considera que essa narrativa possa ter sido constru�da de forma a dar um sentido ao papel da m�e de Jesus. "As expectativas de vida de uma mulher eram infinitamente menores, havia muitos riscos naquela �poca, sobretudo durante os processos de gravidez e parto", frisa ele.
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62523987
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