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Estado de Minas PRECONCEITO NO EXTERIOR

Crimes de �dio: mulheres brasileiras s�o as maiores v�timas em Portugal

Estudo aponta que 58,2% das v�timas de discursos de �dio no pa�s europeu s�o mulheres do Brasil. Estigma denota racismo, colonialismo, xenofobia e machismo


15/08/2022 13:21 - atualizado 15/08/2022 14:52

Entrevistadas posam para foto
Mulheres brasileiras s�o as maiores v�timas de crimes de �dio em Portugal (foto: Vicente Nunes/Divulga��o)
Lisboa — Puta! Piranha! Vagabunda! Safada! Macaca! Ladra de maridos! Volte para seu pa�s! A rotina de ataques � constante �s mulheres brasileiras em Portugal. S�o raros os casos em que elas n�o ouviram, ainda que sussurrado, um xingamento. Se for mulher, brasileira e negra, a xenofobia e o racismo s�o ainda mais violentos. Por vergonha, medo e inseguran�a de viver num pa�s que n�o � o seu, muitas se calam. Mas uma palavra une a todas: resist�ncia.


N�o h� exagero nos relatos de discrimina��o. Todas as pesquisas apontam que as mulheres brasileiras s�o as maiores v�timas de preconceito em Portugal. O mais recente levantamento da Comiss�o para a Igualdade e Contra a Discrimina��o Racial (CICDR), do Observat�rio das Migra��es, referente a 2021, revela que os brasileiros, no geral, s�o os que mais apresentam queixas contra xenofobia e racismo: 26,7% do total. Quando os dados s�o abertos por g�nero, 45,9% das reclama��es s�o de mulheres brasileiras e 33%, de homens. Estudo realizado pela ONG MigraMyths, em parceria com a Casa do Brasil de Lisboa e a Rep�blica Portuguesa, indica que 58,2% das v�timas de discursos de �dio s�o mulheres brasileiras.

"O preconceito est� nos m�nimos detalhes. De vez em quando, parece que est� tudo bem, at� que uma pessoa pr�xima a voc� deixa o preconceito expl�cito", diz a mestre em sociologia Ellen Theodoro, 41 anos, que atua na linha de frente na defesa dos direitos humanos pela Casa do Brasil. Ela conta que se relacionava com um portugu�s que nunca a apresentou para a m�e dele. E a raz�o ela descobriu numa conversa despretensiosa. "Um dia, ele disse: vou a um piquenique com a minha m�e. E eu, brincando, falei: eu tamb�m. Ele respondeu: minha m�e n�o gosta de brasileiras", conta. "Foi, ent�o que compreendi o porqu� de ele nunca ter me apresentado para ningu�m."

Ellen n�o tem d�vidas: "Na nossa vida, o preconceito � rotineiro. Voc� est� num bar, por exemplo, e diz que � brasileira, a pessoa come�a a tomar algumas intimidades e faz observa��es do que a mulher brasileira representa em Portugal, que est� com o corpo dispon�vel para sexo". E emenda: "Temos de contrariar e convencer todo mundo de que n�o somos putas".

"Toda tapadinha"

Professora, atriz e cantora, Joana Ang�lica da Costa, 55 anos, tamb�m se deparou com a discrimina��o por ser brasileira em um relacionamento. O namorado at� lhe apresentava aos amigos e aos familiares. Mas o primeiro sinal do preconceito veio por meio de um coment�rio da irm� dele. "Estou aqui com o Paulinho e a namorada dele, � brasileira, mas � �tima." O namoro durou um ano e meio. Nesse per�odo, ela conheceu os filhos e a ex-mulher dele. Foi em uma das festas que frequentavam que se deu conta de como era vista. "Todos perguntavam quando a gente se casaria, ainda que o casamento n�o fosse algo importante para mim." J� no carro, de volta para casa, ele quis dar a ela uma resposta sobre as indaga��es dos amigos. E disse: "Eu at� me caso com voc� se tirar a cidadania portuguesa".

A professora respondeu que aquilo n�o estava em jogo, pois, em nenhum momento, pensou em se fixar definitivamente em Portugal, para onde foi com o intuito de estudar — fez mestrado e doutorado. "Ele gostava tanto de mim, que at� se casaria comigo para me dar cidadania, uma cidadania da qual nunca falei que tinha interesse", conta. "Com essa conversa, entendi que o preconceito � uma coisa que est� t�o impregnada, que ele achava que me salvaria ao me dar a cidadania, que seria uma prova de amor."

A cearense Karol Ximenes, 40, est� h� sete anos em Portugal. Jornalista e empreendedora, reconhece que foi uma luta conseguir alugar um apartamento em Lisboa. O maior problema: ser mulher brasileira. "Todas as vezes em que ligava para uma corretora, bastava a pessoa do outro lado da linha ouvir o meu sotaque para dizer que n�o tinha interesse em fechar neg�cio." As agress�es foram tantas, que ela pediu ao marido que assumisse a tarefa. Entretanto, foi somente por meio de amigos que conseguiram alugar a casa em que vivem hoje.

"Preconceito existe, �s vezes, nos m�nimos detalhes", lamenta. "Lembro do caso de uma vizinha minha, sempre gostou muito de mim e do meu marido. Numa ocasi�o, est�vamos saindo para uma festa e ela falou assim: 'Ah, outro dia, fui para casa de n�o sei quem, e encontrei l� uma mo�a, uma rapariga, e eu nem sabia que ela era brasileira. N�o parecia brasileira.' E eu perguntei: 'mas por qu�?' E ela disse: 'eu s� notei quando ela falou. Toda tapadinha.' Ou seja, estava sem decote. � um estigma", detalha.



Caminho inverso

A antrop�loga e jurista Manuela Martins, 62 anos, nasceu em Portugal, mas foi para o Brasil, com a fam�lia, com apenas um ano de idade. Aos 59, ela resolveu voltar �s origens para que o filho Andr�, 24, pudesse estudar. "Nunca fui uma portuguesa ausente de Portugal, tenho fam�lia no pa�s", diz. Quando chegou, foi morar com uma prima. A conviv�ncia com a parente escancarou o que h� de pior em termos de preconceito. A prima se mostrou xen�foba e racista, e tinha horror a mulheres brasileiras, as quais ela classifica como "ladras de maridos".

"Minha prima tem �dio absurdo em rela��o �s brasileiras. Fala que s�o putas, que v�m para Portugal para roubar os homens portugueses, para tirar os homens de suas mulheres", relata Manuela. "Me sentia, como parente, desrespeitada. Eu dizia: voc� est� falando de mim. Ela respondia: voc� n�o � brasileira, � portuguesa. Eu rebatia: sou muito mais brasileira do que portuguesa. Chegou um momento em que houve uma ruptura mesmo. Estou h� um ano sem falar com ela e n�o permito que ela se aproxime de mim. J� tentou, mas n�o permito", ressalta a antrop�loga.

Manuela viu que o preconceito n�o se restringia �s mulheres. O filho, que � gay, enfrentou s�rios problemas quando chegou em Portugal. "Ele desembarcou com uma mala rosa e foi parado pelo pessoal da imigra��o. �s 5h da manh� do Brasil, recebi mensagens no meu telefone, pois ele estava preso na imigra��o, sendo obrigado a apresentar uma s�rie de documentos. Fiquei em p�nico", diz. Depois de tr�s horas e muito sufoco, o jovem foi liberado. N�o bastasse esse trauma na chegada, o filho da antrop�loga presenciou, por v�rias vezes, a prima dela se referir aos negros como "macacos".

"Tudo isso me obrigou a sair da casa dela e a procurar um im�vel em Lisboa, onde meu filho foi estudar. Mas n�o consegui alugar por causa do meu sotaque brasileiro. Assim, divido uma casa com um amigo. E ele sempre enfatiza que n�o adianta dizer que sou portuguesa, porque n�o me visto como uma portuguesa, porque tenho tatuagens e falo como uma brasileira", frisa Manuela, que est� fazendo uma ampla pesquisa sobre migra��o e se diz estarrecida com a forma com que a comunidade LGBTQIA � tratada. "Entrevistei um casal de l�sbicas, e � tenebroso o que elas passam. Muito dif�cil. � a exclus�o da exclus�o", destaca.


O preconceito contra mulheres brasileiras est� disseminado em Portugal. Contudo, � no com�rcio, segundo levantamento da Comiss�o para a Igualdade e Contra a Discrimina��o Racial, que elas sofrem mais ataques. Do total das queixas feitas � institui��o em 2021, 15% dos discursos de �dio ocorreram em lojas, bares, restaurantes, supermercados, superando as redes sociais, com 14,7% das reclama��es. A soci�loga Berenice Bento, professora da Universidade de Bras�lia (UnB), sabe bem disso. "Vi cenas que me marcaram. Em um restaurante, no Chiado, um portugu�s gritou muito com uma gar�onete brasileira, chamando-a de porca, imunda. Vi ela chorando", conta.

Incomodada com a situa��o, Berenice pagou a conta do restaurante e foi falar com a gar�onete do lado de fora. "E ela me disse que era normal." A professora ficou se perguntando quem autorizou aquele homem a fazer o que fez com aquela mulher. No entender dela, muitas mulheres que migram para outros pa�ses j� carregam problemas de origem.

No caso das brasileiras, h� a quest�o da pobreza. Elas saem do Brasil em busca de melhores condi��es de vida. "Essas mulheres suportam muito, porque o nosso pa�s � miser�vel, maltrata elas, negros, pobres. O Brasil � um dos pa�ses mais violentos do mundo. N�s temos guerra civil declarada. Ent�o, quando voc� v� esse preconceito em Portugal, tudo bem. Qual � a diferen�a? � que, no pa�s europeu, ganham o dinheiro que d� comida aos filhos delas que est�o no Brasil."

Nem o diploma de soci�loga nem a bolsa de estudos bancada pelo governo brasileiro impediram a professora Berenice de sentir a for�a do preconceito por ser mulher brasileira. Em 2003, ela foi para Barcelona, na Espanha, para estudar. E n�o conseguiu alugar um apartamento. "Eu ligava para perguntar (do im�vel) e diziam: n�o alugamos apartamentos para putas. Eu dizia: sou brasileira. E rebatiam: s�o putas." Para se estabelecer na Espanha, teve de se transferir para Valen�a, onde conseguiu, por meio de uma rede de amigos, a moradia para receber o marido e a filha.


Vis�o colonialista

Presidente da Casa do Brasil de Lisboa, a psic�loga comunit�ria Cyntia de Paula, 36, afirma n�o ser de responsabilidade das mulheres brasileiras todo o preconceito do qual elas s�o v�timas. Para ela, a ideia de que a mulher � um corpo dispon�vel para ser tocado, violentado, usado, vem desde a coloniza��o do Brasil. "Se n�s lermos as cartas dos invasores, que eu n�o considero navegadores nem descobridores, a mulher colonizada � descrita como selvagem, permissiva, com um corpo que poderia ser utilizado", ressalta.

Cyntia, h� 13 anos radicada em Portugal, reconhece que a opress�o sobre as mulheres brasileiras conjuga racismo, xenofobia, coloniza��o, machismo. "Temos essas estruturas que andam juntas quando falamos de preconceito. O que eu sinto sobre esses casos � que, de fato, os efeitos que a mulher imigrante do Brasil vivencia s�o muito fortes", assinala.

A psic�loga enfatiza que a estrutura do racismo, da xenofobia, do colonialismo, do machismo est� t�o s�lida, que Portugal assistiu, tempos atr�s, ao movimento das M�es de Bragan�a, cujo objetivo principal era atacar mulheres brasileiras, definidas como prostitutas. "N�o se pode culpar as mulheres portuguesas, nem as brasileiras. Tudo � reflexo do que � socialmente aprendido. Por isso, � importante mudar as estruturas", entende.

A boa nova, afirma a presidente da Casa do Brasil, � que a migra��o mais recente de brasileiros para Portugal �, em boa parte, mais qualificada e mais ativista, com forte presen�a nas universidades portuguesas. "H� grupos se posicionando de forma muito efetiva, e isso tem chamado a aten��o para os problemas referentes ao preconceito enfrentado pelas mulheres", complementa Lina Moscoso, 44, doutora em ci�ncia da comunica��o, h� oito anos em Portugal. Ela lembra que ningu�m � educado para migrar para outo pa�s, para enfrentar as adversidades de ser imigrante. "A gente aprende na marra."


Lina salienta que o fato de as autoridades portuguesas, em especial o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza, estarem se posicionando publicamente contra o racismo e a xenofobia � crucial. "A defesa contra o preconceito tem de partir de cima. Estamos diante de uma estrutura que vem desde a coloniza��o e ainda n�o se quebrou. Precisamos de pol�ticas p�blicas", cobra. "Em alguns casos, os ataques s�o sutis; em outros, violentos. H� mulheres que j� sofreram e sofrem viol�ncia di�ria. H� mulheres que t�m quest�es muito s�rias, casaram-se com portugueses e sofrem ataques diariamente. Os �ndices de viol�ncia dom�stica em Portugal s�o alt�ssimos", alerta. Para a doutora, apesar da complexidade da situa��o, as mulheres devem denunciar todo crime do qual s�o v�timas. Ataques de �dio n�o podem ser tolerados, em hip�tese alguma.

A pesquisadora e cientista social Ana Paula Costa, 29, refor�a que v�rios fatores est�o na base do preconceito contra as mulheres brasileiras: o colonialismo, a desigualdade de g�neros e a rela��o do Brasil com suas cidad�s. "H� uma corresponsabiliza��o, o problema n�o est� s� em Portugal. O Brasil � um pa�s machista, um pa�s que vendeu, sim, suas mulheres e vende at� hoje, por meio de um turismo sexual", diz. Para ela, o fato de o presidente da Rep�blica, Jair Bolsonaro, dizer que os turistas poderiam ir para o Brasil para ter sexo com as brasileiras refor�a o estere�tipo de que essas cidad�s, no geral, s�o putas.

A despeito de todos os avan�os, Ana Paula, que � vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa, reconhece que as queixas contra racismo e xenofobia s�o baixas, porque as pessoas ainda t�m medo, sobretudo se estiverem no processo de resolverem a situa��o administrativa no pa�s. Essas pessoas temem retalia��o. H�, tamb�m aquelas que n�o t�m for�as suficientes para denunciar. Por isso, acredita ela, � t�o importante redes de apoio. Como complementa Cyntia de Paula, migrar � um direito, no amor e na dor. "Queremos um mundo sem fronteiras, sem preconceitos."


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