
Os Estados Unidos aboliram a escravid�o h� 157 anos — ou seja, desde ent�o, nenhuma pessoa pode ser propriedade legal de outra. Mas uma exce��o permaneceu: os prisioneiros condenados.
Na maior parte dos Estados Unidos, a escravid�o ainda � legal quando adotada como pena para um crime.
O resultado poder� permitir que os prisioneiros contestem o trabalho for�ado. Atualmente, cerca de 800 mil prisioneiros trabalham por centavos, ou sem pagamento. Sete Estados n�o pagam sal�rios para os trabalhadores nas pris�es pela maioria dos trabalhos exigidos.
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Os apoiadores da mudan�a afirmam que esta � uma brecha para a explora��o que precisa ser fechada. J� os cr�ticos argumentam que � uma mudan�a insustent�vel, que pode gerar consequ�ncias indesejadas para o sistema de justi�a criminal.
'Trabalhei por 25 anos e voltei para casa com 124 d�lares'
As ra�zes do sistema moderno t�m origem nos s�culos de escravid�o dos afro-americanos, segundo pesquisadores dos direitos humanos.

Nos anos que se seguiram � aboli��o da escravatura, foram aprovadas leis especificamente destinadas a reprimir as comunidades negras e lev�-las � pris�o, onde os detentos seriam for�ados a trabalhar.
Atualmente, existem prisioneiros negros americanos que ainda s�o for�ados a colher algod�o e outros produtos nas planta��es do sul, onde seus antepassados foram mantidos acorrentados.
"Os Estados Unidos da Am�rica nunca tiveram um dia sem escravid�o legal", afirma Curtis Ray Davis II, que passou mais de 25 anos em trabalhos for�ados em uma pris�o da Louisiana por um assassinato que n�o cometeu, at� o seu indulto, em 2019.
Davis teve uma s�rie de trabalhos na conhecida Penitenci�ria Estadual de Louisiana, apelidada de "Angola", nome do pa�s de onde foram trazidos muitos dos africanos escravizados na regi�o.
"Trabalhei por 25 anos e vim para casa com 124 d�lares [cerca de R$ 627]", afirma Davis. Ele nunca recebeu mais de US$ 0,20 (cerca de R$ 1) por hora de trabalho, o que, segundo ele, era feito "contra a minha vontade e sob a mira de uma arma".
Cerca de 75% dos prisioneiros na penitenci�ria eram negros, segundo o Projeto Inoc�ncia, um grupo que trabalha para libertar prisioneiros inocentes que foram condenados. O grupo afirma que em "Angola" a escravid�o americana nunca acabou.

"A escravid�o foi abolida, mas, na verdade, foi apenas uma transfer�ncia de propriedade da escravid�o legal e da propriedade privada para a escravid�o literalmente sancionada pelo Estado", afirma Savannah Eldrige, da Rede Nacional para a Aboli��o da Escravatura.
A organiza��o vem trabalhando para ampliar o n�mero de Estados que pro�bem a escravid�o sem exce��es e vem tentando convencer os legisladores na capital americana, Washington, a aprovar uma lei similar alterando a constitui��o dos Estados Unidos.
Desde 2018, os Estados do Colorado, Nebraska e Utah aprovaram medidas proibindo todas as formas de escravid�o. Eldrige destaca que o movimento reuniu o apoio de democratas e republicanos. S� assim foi poss�vel a aprova��o em Utah e Nebraska, Estados dominados pelos republicanos.
Ela prev� que, em 2023, 18 legislativos estaduais votar�o leis para proibir a escravid�o.
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'Consequ�ncias indesejadas'
Poucos apresentaram-se contr�rios aos esfor�os estaduais para eliminar a linguagem da escravid�o. Mas o movimento encontrou resist�ncia de cr�ticos que afirmam que seria caro demais pagar sal�rios adequados aos prisioneiros, que eles n�o merecem o mesmo pagamento ou que as mudan�as trariam desvantagens aos detentos.
O legislativo da Calif�rnia rejeitou a retirada de refer�ncias � escravid�o das leis estaduais em vota��o em 2022, quando os democratas, incluindo o governador do Estado, alertaram que pagar aos prisioneiros o sal�rio m�nimo estadual, de US$ 15 (cerca de R$ 76) por hora, custaria mais de US$ 1,5 bilh�o (cerca de R$ 7,6 bilh�es).

A Associa��o dos Xerifes de Oregon op�e-se � medida no Estado. Eles alegam que sua aprova��o traria "consequ�ncias indesejadas" e a perda de todos os "programas de reforma", que incluem tarefas com baixo pagamento, como trabalhar na biblioteca, na cozinha e na lavanderia.
O grupo afirma que essas tarefas oferecem algo para fazer aos prisioneiros e "servem de incentivo para o bom comportamento", o que � um fator considerado nas audi�ncias para concess�o de liberdade condicional.
Para a associa��o, essa medida traz dois problemas: ela se aplica apenas aos condenados, deixando de fora as pessoas detidas aguardando julgamento, e poderia significar o fim de todos os programas prisionais n�o autorizados especificamente por senten�a judicial.
"Os xerifes de Oregon n�o aceitam nem apoiam a escravid�o e/ou a servid�o involunt�ria de nenhuma forma", afirma a associa��o em um panfleto aos eleitores. Ela acrescenta que a aprova��o da medida "resultar� na elimina��o de todos os programas de reforma e aumento dos custos de opera��o das cadeias locais".
Grandes empresas, via terceirizados
Os prisioneiros contribuem para a economia e a cadeia de fornecimento de muitas formas, algumas delas surpreendentes.

Eles j� foram convocados para produzir de tudo, desde �culos at� placas de autom�veis e bancos de parques. Eles processam carne, leite e queijo e trabalham em centrais de atendimento telef�nico de ag�ncias do governo e companhias importantes.
Rastrear as empresas que usaram m�o de obra prisional pode ser dif�cil, j� que o trabalho normalmente � terceirizado. Uma empresa contratada vende os produtos e servi�os dos prisioneiros para companhias importantes que, �s vezes, desconhecem sua origem.
Empresas que j� se beneficiaram do trabalho prisional, somente no Estado de Utah, incluem a American Express, Apple, PepsiCo e FedEx, segundo um relat�rio da Uni�o Americana para as Liberdades Civis (ACLU, na sigla em ingl�s), publicado em junho.
Pelo menos 30 Estados incluem trabalhadores prisionais nos seus planos de opera��o de emerg�ncia contra desastres naturais e outros dist�rbios civis. E eles combatem inc�ndios em pelo menos 14 Estados, segundo o relat�rio da ACLU.
Mas as vidas dos prisioneiros provavelmente n�o ir�o mudar da noite para o dia nos cinco Estados promotores do plebiscito, se a medida for aprovada.
"Esses plebiscitos s�o necess�rios, mas n�o s�o suficientes para p�r fim � escravid�o", afirma Jennifer Turner, pesquisadora de direitos humanos na ACLU.
Os tribunais ainda precisar�o interpretar quais direitos t�m os trabalhadores prisionais e se eles receber�o benef�cios como aux�lio-doen�a, a que os trabalhadores em liberdade legalmente t�m direito.

Nos Estados que j� eliminaram as exce��es de escravid�o, os resultados foram variados.
No Colorado, um prisioneiro processou o Estado por estar, segundo ele, violando a aboli��o da escravatura. Mas, em agosto, um tribunal decidiu que os legisladores n�o pretendiam abolir todo o trabalho prisional e encerrou o caso.
J� uma pris�o em Nebraska come�ou a pagar US$ 20 a 30 (cerca de R$ 100 a 150) por semana aos detentos depois que a exce��o foi eliminada naquele Estado, segundo o jornal americano The New York Times. Espera-se que outros questionamentos legais surjam � medida que os prisioneiros continuem a lutar por seus direitos e prote��es.
Davis, que foi preso injustamente em Louisiana, afirma que eliminar a exce��o da pris�o colocar� fim a esse "incentivo" para que seu Estado natal detenha seus cidad�os.
"Acredito que qualquer pessoa com consci�ncia, qualquer pessoa que entenda a legisla��o de propriedade, entende que seres humanos nunca deveriam ser propriedade de outras pessoas", declarou ele � BBC News. "E que tamb�m n�o deveriam ser propriedade do Estado da Louisiana."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63543395