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Estado de Minas FATO OU MENTIRA?

O que h� de verdade em lenda de premi� holand�s comido pela popula��o em f�ria

Especialista explica que per�odo conturbado no pa�s europeu no s�culo 17 levou a trag�dia que � retratada em pintura exposta em museu


05/02/2023 12:14 - atualizado 05/02/2023 12:38


Obra retrata execução dos dois irmãos
Obra de Pieter Fris retrata execu��o dos dois irm�os (foto: Dom�nio p�blico)

Exposto no Rijksmuseum, o museu nacional dos Pa�ses Baixos, em Amsterd�, um �leo sobre tela de 69,5 cent�metros de altura por 56 cent�metros de largura mostra dois corpos desnudos, de cabe�a para baixo, com os �rg�os extirpados.

A pintura, do holand�s Jan de Baen (1633-1702), chama-se 'Os Cad�veres dos Irm�os De Witt' e foi feita possivelmente entre 1672 e 1675. Para alguns historiadores, o realismo do quadro � uma das origens da narrativa — possivelmente fantasiosa — de que o primeiro-ministro holand�s Johan de Witt (1625-1672) tenha sido devorado pela popula��o enraivecida, depois de linchado.

"A imagem do primeiro-ministro sendo comido pela popula��o se refere muito mais a uma representa��o art�stica do pintor Jan de Baen. Podemos perceber que essas representa��es mais realistas, mais envolventes do corpo humano, j� vinham dos dois s�culos anteriores. Mas [a cena] ilustra muito mais um realismo corporal do que necessariamente um fato hist�rico", comenta o historiador Victor Missiato, integrante de grupo de pesquisa na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor no Col�gio Presbiteriano Mackenzie Tambor�.

O que � fato dado como certo foi que Johan de Witt e seu irm�o Cornelius (1623-1672), os dois corpos representados na pintura, sofreram uma morte violenta, executada por populares revoltosos. "O processo de linchamento ocorria com muito mais frequ�ncia [do que o canibalismo] e h� muitos registros dessa pr�tica na Europa dos s�culo 16, 17 e 18", diz.

"Historicamente � poss�vel afirmar que houve linchamento e que partes do corpo dos irm�os de Witt foram cortados", complementa. "Mas registro hist�rico de que se alimentaram de suas partes, isso � pouco veross�mil. N�o h� nada em rela��o a isso. � mais resultado do impacto da representa��o art�stica do que necessariamente de um fato hist�rico."

Per�odo conturbado


Obra 'Os Cadáveres dos Irmãos De Witt', de Jan de Baen
Obra 'Os Cad�veres dos Irm�os De Witt', de Jan de Baen (foto: Dom�nio p�blico)

Mas o que acontecia nos Pa�ses Baixos naqueles tumultuados anos do s�culo 17 para desencadear t�o grotesco epis�dio? Conforme explica Roberto Georg Uebel, professor de rela��es internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), foi um "per�odo muito conturbado da Holanda, hoje parte dos Pa�ses Baixos, que na �poca era uma das poucas rep�blicas no continente europeu".

Filho de uma fam�lia de pol�ticos importantes da sociedade neerlandesa de ent�o, Witt era advogado e matem�tico quando assumiu o posto de grande pension�rio da rep�blica — algo equivalente ao cargo de primeiro-ministro. Ele ficou no comando do executivo do pa�s por quase duas d�cadas, entre 1653 e 1672.

Uebel pontua que aquele per�odo "coincidiu com as guerras holandesas com a Fran�a, Inglaterra e alguns Estados germ�nicos". No per�odo, houve "um certo enfraquecimento dos Orange-Nassau, uma das fam�lias reais mais importantes e fortes na hist�ria europeia".

Isto porque o estatuder — chefe do Executivo — da regi�o, pr�ncipe Guilherme II de Orange-Nassau (1626-1650) morreu deixando como �nico herdeiro, Guilherme III (1650-1702), uma crian�a rec�m-nascida. Depois de diversas disputadas, Witt assumiu o poder de fato, enquanto Guilherme III era criado e educado para, um dia, suceder o pai.

"De Witt teve sua responsabilidade no fortalecimento do poder mar�timo e geopol�tico da Holanda, que � �poca era concebida como uma das maiores pot�ncias econ�micas e geopol�ticas do mundo", comenta Uebel.

Costumava-se comparar a ent�o Holanda com o imp�rio brit�nico, no sentido de que em ambos "nunca se via o sol se p�r", j� que o poderio se estendia por col�nias al�m-mar. "Por meio das Companhias das �ndias Ocidentais e Orientais, o dom�nio chegava ao Caribe e Am�ricas e ao Sudeste Asi�tico", acrescenta o professor. "O pr�prio nordeste do Brasil se viu sob ocupa��o holandesa."

Missiato explica que a Holanda passava por grandes transforma��es pol�ticas. "J� vinha, anteriormente, da independ�ncia em rela��o � Espanha [ocorrida ap�s a Guerra dos 80 anos, terminada em 1648]. E isso fez com que ocorresse no seio da Europa uma primeira grande divis�o entre catolicismo e protestantismo ap�s os movimentos de reforma e contrarreforma", contextualiza.

Nos primeiros anos p�s-independ�ncia, a Holanda experimentou um momento de crescimento econ�mico sem precedentes. "Principalmente na �rea do com�rcio, a partir da vis�o protestante de sociedade", frisa Missiato.

O historiador tamb�m afirma que o fato de o pa�s ter se configurado como uma rep�blica favoreceu esse desenvolvimento. "Os neg�cios n�o ficavam presos ao poder hierarquizado, aristocr�tico", comenta.

Esse cen�rio promissor passou a incomodar outras regi�es da Europa. "Tanto na parte comercial quanto na parte religiosa", diz Missiato, citando regi�es da atual Alemanha, al�m de Fran�a e Inglaterra como fortes concorrentes. "No centro de muitas disputas comerciais e religiosas, a Holanda teve diversos confrontos ao longo do s�culo 17", acrescenta.

"Era um per�odo de efervesc�ncia pol�tica que coincidia com movimentos p�s-reforma protestante, ocorrida um s�culo antes, com a antessala do iluminismo e com as r�pidas mudan�as trazidas pelo capitalismo metalista e mercantilista, em substitui��o ao feudalismo, que come�ava a ruir suas �ltimas fortalezas na Europa, inclusive na Holanda", afirma Uebel.

"No contexto holand�s, o pa�s passava por uma guerra de propor��es continentais, a Guerra Franco-Holandesa, que deixou marcada a rivalidade de Witt com a casa de Orange-Nassau e seus apoiadores orangistas", conta o professor.

Tens�o e linchamento

Segundo o professor de hist�ria Victor Alexandre, roteirista do podcast Hist�ria em Meia Hora, o estopim desse conflito foi a recusa de Witt em devolver o poder aos de Orange, mesmo com Guilherme j� tendo alcan�ado a maioridade. "Esse foi o primeiro sinal de rusgas entre de Witt e outras na��es, como Fran�a e Inglaterra, que come�avam a fazer uma forte oposi��o ao comandante holand�s", comenta.

Os demais reinos entendiam que essa postura n�o era um bom exemplo. "Essa tens�o entre as na��es escalou ao ponto de o rei franc�s Lu�s 14 determinar a invas�o dos Pa�ses Baixos em 1672, dando in�cio a uma guerra entre Fran�a e Reino Unido contra a Holanda", diz Alexandre. "Foi a partir dos desdobramentos dessa guerra que Johan de Witt foi linchado pela popula��o que queria Guilherme de Orange no poder."

Os dois irm�os acabaram tentando for�ar um acordo de paz com a Fran�a. "Cornelius chegou a ser acusado de trai��o e foi preso", narra Uebel. "Na tentativa de ajudar o irm�o a fugir, Johan de Witt tamb�m foi linchado, assassinado. H� relatos que tenha sido, junto com seu irm�o, alvo de canibalismo post mortem."

Uebel n�o descarta que isso realmente tenha ocorrido, lembrando que tal viol�ncia era uma pr�tica que aludia a uma "Europa pr�-iluminista" guardando resqu�cios "do feudalismo e do medievalismo".

Contudo, oficialmente, de acordo com os relatos hist�ricos da pol�tica holandesa, Uebel diz que o que consta � que os corpos dos irm�os Witt foram "mutilados ap�s suas mortes pelos opositores orangistas e pela popula��o descontente com a situa��o pela qual a Holanda passava e a humilha��o face � Guerra Franco-Holandesa".


Retrato de Johan de Witt, obra de Jan de Baen
Retrato de Johan de Witt, obra de Jan de Baen (foto: Dom�nio p�blico)

"Lenda ou n�o, tamb�m h� relatos, inclusive jornal�sticos, de que seus corpos mutilados de fato tenham sido alvo de pr�ticas de canibalismo", comenta o professor. "Para a cultura pol�tica, o que mais pesa, contudo, � o s�mbolo do desfecho desta crise pol�tica que marcou a transi��o da rep�blica holandesa para uma monarquia orangista e o retorno dos Orange-Nassau ao poder."

Antropofagia improv�vel

"Historicamente falando, � plenamente poss�vel que o primeiro-ministro tenha sido comido. Por�m, precisamos tomar cuidado: n�o � porque algo � poss�vel que isso de fato aconteceu", relativiza Alexandre. "Johan de Witt foi morto ap�s a f�ria desenfreada da popula��o e os relatos contam que ele foi mutilado e, em seguida, seu corpo foi exposto para toda a popula��o."

O professor de hist�ria conta que, sendo ele um dos homens mais importantes dos Pa�ses Baixos, h� registros sobre sobre os epis�dios que o envolviam. "E as fontes mais confi�veis que contam sobre sua vida e tamb�m sua morte n�o trazem nada que diga respeito a canibalismo", enfatiza. "� ineg�vel que ele foi morto pela f�ria da popula��o e bem prov�vel que a lenda a respeito de um homem p�blico ter sido devorado pelos cidad�os tenha se alastrado porque refor�a a no��o de que a for�a de mudan�a estava com o povo que pedia mudan�as."

"Afirmei que historicamente � poss�vel que ele tenha sido comido porque diversas civiliza��es t�m no ritual da antropofagia uma pr�tica relativamente com um em seus respectivos costumes locais", pondera Alexandre. "Os casos mais famosos s�o dos povos habitantes da mesoam�rica e em alguns povos do territ�rio que hoje chamamos de Brasil. Por�m, todos esses rituais tinham uma conota��o religiosa ou simb�lica para justificar a ingest�o de carne humana. Em nenhum dos casos algum ser humano foi comido por um ataque coletivo de raiva, como nesse caso da Holanda."

Orange

Com a morte do primeiro-ministro e de seu irm�o, houve um enfraquecimento desse grupo pol�tico que eles representavam. "E a casa de Orange-Nassau voltou ao poder. A reg�ncia da Holanda, antes comandada por Witt, foi substitu�da por um reino comandado por Guilherme III, que depois viria a ser tamb�m o rei da Inglaterra", contextualiza Uebel.

Ele frisa, entretanto, que embora o epis�dio tenha deixado "o republicanismo holand�s enfraquecido", a experi�ncia republicana ali havida "acabaria por influenciar outros movimentos", como "nos pa�ses germ�nicos e na pr�pria Pen�nsula Ib�rica". "Embora fossem vislumbrar a ascens�o de movimentos republicanos apenas no limiar do s�culo 19".

Missiato comenta que, embora Guilherme III tenha sido diretamente beneficiado pela morte dos irm�os Witt, "n�o h� registro de participa��o direta ou indireta dele no epis�dio". "No s�culo 19, muitos historiadores afirmavam que haveria essa participa��o. Hoje, ela � question�vel", argumenta.

"Sua ascens�o a partir de 1673 destravou muitas consequ�ncias para a hist�ria europeia", acrescenta o historiador Missiato. "Guilherme III foi fundamental para as transforma��es geopol�ticas que ocorreram na Europa no s�culo 18."


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