
Quando o americano Bobby Bostic foi libertado da pris�o em novembro, quase tr�s d�cadas ap�s ter sido condenado a 241 anos, estranhou muitas coisas do lado de fora.
De fones de ouvido sem fio ("Por que os caras est�o falando sozinhos?"), a pessoas conversando com seus alto-falantes ("O que � Alexa?"), o mundo mudou muito, em compara��o com 1995.
Mas o mais estranho de tudo foram as pessoas.
"Como eles s�o amig�veis, em compara��o com a pris�o", diz o homem de 44 anos. "Voc� entra em uma mercearia e � 'Senhor, posso ajud�-lo?' Na pris�o, voc� n�o encontra nada al�m de rostos mal encarados..."
Ele ainda est� se ajustando a ouvir "Ei, como vai?" em vez de "N�o ande t�o perto de mim".
"Aqui, s�o apenas coisas boas. Pessoas sorrindo. Crian�as acenando para voc�. � como se a vida fosse assim. Isso � normal. � assim que as coisas deveriam ser."
Logicamente ent�o, � dif�cil se adaptar ap�s 27 anos de agress�o institucional e persistente.
"No fundo, sempre buscamos essa humanidade, essa conex�o humana. Isso � vida. Isso � beleza. Essa � a alegria de ser humano."
'Novo cap�tulo'
Depois de dormir quase 10.000 noites em uma cela nos Estados Unidos, 8 de novembro de 2022 foi a �ltima que Bobby passou preso. Mas ele estava muito ocupado sonhando com a liberdade para conseguir dormir.Em vez disso, ele passou a noite longa e escura fazendo as malas. Ele deixou seus pertences para outros prisioneiros, mas manteve uma coisa: sua m�quina de escrever.
Ao nascer do sol, com a cela lotada, ele olhou para o quadro que indicava quais prisioneiros estavam mudando de cela. Ao lado de seu nome havia uma palavra: libertado.
"N�o parecia real at� eu ver as palavras", diz ele.
Quando a partida se tornou realidade, Bobby vestiu roupas normais para voltar para casa. Depois de 27 anos vestindo o uniforme cinza da pris�o, ele escolheu um terno azul.
"Ele representa o novo cap�tulo da minha vida", diz ele. "A nova vida."
Vinte e cinco anos antes, a ju�za Evelyn Baker disse a Bobby que ele "morreria na pris�o".
Mas �s 7h30 de uma manh� de novembro, Bobby se tornou um homem livre, vestindo seu terno e com um sorriso t�o brilhante quanto o sol do Missouri.
Assim que saiu, uma mulher de chap�u preto foi em sua dire��o para abra��-lo. Era a ju�za Evelyn Baker.
Guerra judicial
A jornada que terminou com um abra�o do lado de fora da pris�o come�ou em dezembro de 1995, em um dia regado a drogas em St Louis, Missouri.Depois de beber gim, fumar maconha e usar PCP (fenciclidina), Bobby, que na �poca tinha16 anos, e seu amigo Donald Hutson iniciaram uma onda de assaltos � m�o armada.
Eles roubaram de um grupo que dava presentes de Natal para os necessitados. Dispararam sua arma (n�o feriram ningu�m, felizmente). Roubaram o carro de uma mulher amea�ando-a com uma arma.
Ap�s ser preso, a Justi�a ofereceu a Bobby um acordo - se ele se declarasse culpado receberia uma senten�a de 30 anos com possibilidade de liberdade condicional. Ele recusou. E foi, � claro, considerado culpado. Baker o condenou a v�rias senten�as consecutivas por seus 17 crimes, totalizando 241 anos.
J� Hutson fez um acordo, se declarou culpado e pegou 30 anos.
Quando a BBC entrevistou Bobby pela primeira vez, em 2018, ele teve vislumbres de esperan�a. Em 2010, a Suprema Corte dos Estados Unidos havia decidido que menores de idade n�o deveriam receber senten�as de pris�o perp�tua sem liberdade condicional por crimes que n�o envolvessem homic�dio.
Em 2016, foi confirmado que a decis�o deveria se aplicar tamb�m a casos anteriores, como o de Bobby.
Mas o Estado de Missouri n�o estava disposto a liberar Bobby, argumentando que ele n�o havia recebido senten�a de pris�o perp�tua, mas sim v�rias senten�as, por diferentes crimes, que aconteceram ao mesmo tempo.
A Justi�a local chegou a afirmar que ele teria chance de liberdade condicional na "extrema velhice".
Em abril de 2018, um m�s ap�s a entrevista da BBC, a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou os recursos apresentados por Bobby - sem esclarecer o motivo.
"A maioria das pessoas desistiria naquele momento", diz Bobby. "Uma vez que eles te dizem n�o, n�o resta mais nada."
Mas Bobby n�o desistiu. Ele voltou a ler seus livros de autoajuda - o autor americano Napoleon Hill � um dos seus favoritos - e a usar sua m�quina de escrever. A esperan�a permaneceu viva, uma letra de cada vez.

A ju�za arrependida
Foi uma emenda a uma nova lei do Missouri, que oferecia liberdade condicional a prisioneiros condenados a longas senten�as quando crian�as, que deu a Bobby uma nova chance.No entanto, em 14 de maio de 2021 - o �ltimo dia antes do recesso legislativo do Missouri - a proposta ainda n�o havia sido aprovada.
"Eu n�o tinha muita f�", diz Bobby. "Normalmente, se n�o passar at� janeiro ou fevereiro, n�o h� chance de chegar l�."
E ent�o Bobby recebeu uma mensagem de um amigo por correspond�ncia.
"A pris�o come�ou a nos permitir receber e-mails", diz Bostic. "Algu�m me enviou por e-mail um artigo do [jornal] Missouri Independent, dizendo que a lei realmente foi aprovada ... foi um milagre. Eu fiquei tipo, 'cara, isso vai realmente acontecer? O governador vai assinar?'"
O governador, Mike Parson, assinou a lei. Gra�as � "Lei de Bobby", ele - e centenas de outros - tornou-se apto � liberdade condicional. A audi�ncia de Bobby foi marcada para novembro de 2021.
"Mas eu n�o sabia o que esperar", diz ele. "Uma audi�ncia de liberdade condicional n�o � garantia de sair da pris�o."
Nas audi�ncias, � permitido que os presos escolham um representante oficial para ajud�-los. Bobby sabia a quem recorrer - a ju�za que disse que ele morreria na pris�o.

Baker - que, em 1983, se tornou a primeira ju�za negra do Missouri - come�ou a questionar a senten�a de Bobby por volta de 2010, dois anos depois de se aposentar, ao ler sobre a diferen�a entre c�rebros de adolescentes e adultos. Em seus 25 anos de carreira, essa foi a �nica decis�o da qual ela diz ter se arrependido.
Em fevereiro de 2018, ela escreveu um artigo para o jornal The Washington Post, classificando a senten�a de Bobby como "est�pida e injusta". Um m�s depois, ela falou com a BBC, repetindo a mensagem.
Mas o que ela disse na audi�ncia de liberdade condicional?
"Bobby era uma crian�a de 16 anos que eu tratava como um adulto completo, o que era errado", diz ela � BBC agora. "Eu me aproximei de Bobby e de sua irm�. Eu o vi passar de basicamente um delinquente juvenil para um adulto muito atencioso. Ele cresceu."
Assim como a ju�za, uma das v�timas de Bobby do epis�dio de 1995 se pronunicou a seu favor (a BBC j� havia entrado em contato com algumas das v�timas de Bobby e Hutson, mas nenhuma quis falar publicamente). Com a ajuda deles, a audi�ncia de liberdade condicional foi bem-sucedida.
"Se eu pudesse ter dado cambalhotas, eu teria", disse Baker.
Um ano ap�s a audi�ncia de liberdade condicional, a pessoa que ela abra�ou naquela manh� ensolarada de novembro era um homem livre.
"Era como Natal, Ano Novo, todos os feriados reunidos em um", diz ela. "Comecei a chorar. Bobby estava livre."

Depois de encontrar Baker, al�m de amigos, parentes e apoiadores de sua causa, Bobby foi comer sua primeira refei��o fora da pris�o desde 1995. Vegano por 24 anos, ele escolheu um taco. Mas aconteceu um imprevisto.
"Entrei no carro e vomitei toda a comida", diz ele. "N�o andava de carro na estrada h� 27 anos. Existe uma coisa chamada enjoo."
Depois de se recuperar, ele foi para a casa da irm� na zona sul de St. Louis, cidade onde cresceu. Ao longo do dia, diz ele, mais de 400 pessoas vieram cumpriment�-lo.
"Eles formaram uma fila em volta do quarteir�o", diz ele. "Quando vi, apertei a m�o dessa pessoa, desse primo, dessa tia, desse tio, desse amigo... Fiquei acordado at� as duas da manh�."
No entanto, o mundo exterior n�o � uma festa sem fim. Houve, pode-se dizer, epis�dios de enjoo.
Bobby e sua irm� administram uma institui��o de caridade, Dear Mama, que doa comida, brinquedos e outros tipos de apoio a fam�lias de baixa renda em St Louis (o nome da entidade � uma homenagem a m�e falecida deles, Diane, que segundo Bobby "doou a muitas pessoas, ainda que n�o tiv�ssemos muito").
Ele dirige uma oficina de reda��o todas as quintas-feiras no centro de deten��o juvenil da cidade e quer fazer mais. Mas como a caridade, � um trabalho volunt�rio.
Ele ganha dinheiro com a venda de livros - ele tem sete � venda na Amazon, todos escritos em sua m�quina de escrever na pris�o - e ocasionalmente com palestras. Com isso, aluga um apartamento de um quarto e paga as contas.
"Com o que estou fazendo agora, mal estou sobrevivendo", ele admite.
Ele espera conseguir um emprego em tempo integral em trabalho comunit�rio ou evangelismo juvenil, e est� fazendo entrevistas para vagas. No entanto - mesmo que o dinheiro seja escasso - isso n�o diminui sua admira��o ou gratid�o pelo mundo exterior.
"Ainda estou lutando com algumas coisas", diz ele. "Mas fora isso, a vida aqui � linda, todos os dias. Eu vasculho a geladeira e vejo a variedade de coisas para escolher. Um banho na banheira - n�o tomava um h� 27 anos! N�o dou nada como certo."
Bobby ganhou uma segunda chance na vida e � grato por isso. Mas seu parceiro naquele dia de dezembro de 1995 n�o.
Donald Hutson - que aceitou o acordo e pegou 30 anos de deten��o - morreu na pris�o em setembro de 2018. Um relat�rio toxicol�gico apontou para uma overdose. Ele se tornaria eleg�vel para liberdade condicional 9 meses depois.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/czrve0d772no