
O Brasil tem tr�s supercomputadores entre os 500 mais potentes do mundo. Dois s�o da Petrobras — Atlas e F�nix. O terceiro, o Santos Dumont, localizado no Laborat�rio Nacional de Computa��o Cient�fica (LNCC), em Petr�polis (RJ), desde o ano passado tem sido usado nos esfor�os para combater a pandemia de COVID-19 no Brasil.
Entre outras atribui��es, ele � utilizado no sequenciamento gen�tico de amostras do v�rus que chegam de diferentes regi�es do pa�s.
Foi com a ajuda dele que a equipe coordenada pela bi�loga Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, respons�vel pelo Laborat�rio de Bioinform�tica do LNCC, identificou em dezembro uma variante nova do coronav�rus no Rio de Janeiro, posteriormente batizada de P.2.
A cientista trabalha no laborat�rio h� quase 40 anos. Ela � uma das pioneiras no pa�s da bioinform�tica — ci�ncia que usa computa��o, matem�tica e estat�stica para processar e interpretar dados da biologia e responder quest�es em aberto na Ci�ncia.
Essa � uma �rea muito recente do conhecimento, ampliada exponencialmente nas �ltimas d�cadas gra�as ao avan�o da tecnologia.
Isso porque, quando se fala em gen�tica — um dos campos que t�m se beneficiado da bioinform�tica e a especialidade de Ana Tereza —, existe a necessidade de processamento de um oceano de dados. O DNA, apesar de microsc�pico, guarda um volume imenso de informa��o.
No caso do genoma humano, o "receitu�rio" de todas as nossas caracter�sticas f�sicas est� descrito em tr�s bilh�es de pares de bases nitrogenadas, estas representadas por quatro letras — C (citosina), G (guanina), A (adenina) e T (timina), os blocos que comp�em a fita do DNA.
Entender o genoma e a fun��o dos genes (uma sequ�ncia espec�fica do DNA que cont�m a informa��o para fabrica��o de uma prote�na ou uma mol�cula de RNA — o que os bi�logos chamam de "produto funcional espec�fico") pode auxiliar na preven��o de doen�as, no desenvolvimento de medicamentos e terapias.
Tamb�m tem uma larga aplica��o na agricultura e pecu�ria, no melhoramento gen�tico de plantas e animais, e tem se mostrado um ingrediente fundamental no combate � pandemia. O "retrato" do v�rus obtido pelo sequenciamento gen�tico permite entender como ele funciona e como se propaga — informa��es fundamentais para subsidiarem a tomada de decis�o das autoridades de sa�de.

'Ci�ncia do s�culo 21'
Ana Tereza come�ou a trabalhar no LNCC em 1984, um ano depois de se formar em Ci�ncias Biol�gicas, para atuar com modelagem matem�tica. Nessa �poca, o laborat�rio ainda estava na cidade do Rio — desde 1998 ele funciona em Petr�polis (RJ).
O trabalho naquela �poca era completamente diferente, j� que a Ci�ncia nem havia codificado o primeiro genoma completo ainda, apenas fragmentos sequenciais de DNA.
O primeiro genoma completo viria em1995, o da bact�ria Haemophilus influenzae, sequenciado nos Estados Unidos. Relativamente pequeno, tinha pouco mais de 5% do tamanho do genoma humano, que seria decodificado cinco anos mais tarde, no ano 2000, pelo geneticista americano Craig Venter.
A bi�loga entrou nesse mundo pouco depois de ingressar no LNCC, quando seu caminho se cruzou com o do cientista Darcy Fontoura de Almeida, precursor na �rea de gen�tica no pa�s e �quela altura um nome conhecido na comunidade cient�fica brasileira.
Formado em Medicina, ele fora orientado por Carlos Chagas Filho, fundador do Instituto de Biof�sica da UFRJ (� �poca, Universidade do Brasil) e um dos que contribu�ram para institucionalizar a pesquisa cient�fica no pa�s.
Em uma entrevista em 2009 � revista Ci�ncia Hoje, Almeida, falecido em 2014, explica como foi parar no LNCC:
"Por volta de 1989, conclu� que a an�lise de DNA ia evoluir e explodir. Era l�gico, �bvio. No IB [Instituto de Biof�sica] n�o poder�amos fazer isso, pois precisar�amos de uma computa��o poderosa. Lembrei-me ent�o do LNCC e fui falar com o Ant�nio Olinto, que � �poca era o diretor. Expliquei o que estava acontecendo na biologia e disse que achava um absurdo n�o haver ali uma �nica linha de pesquisa em biologia, 'a ci�ncia do s�culo 21'. Ele quis saber ent�o o que poderia ser feito. Disse que queria conversar com o pessoal jovem do LNCC."
O "pessoal jovem" era Ana Tereza. Ela e Darcy passaram ent�o a trabalhar juntos. O cientista foi seu orientador no mestrado em biof�sica e no doutorado em gen�tica.
Naquela �poca, a internet n�o havia chegado ainda ao Brasil. O computador que a dupla usava era um mainframe, uma m�quina de grande porte, e as informa��es eram compartilhadas entre os cientistas por meio de disquetes.
"O professor Darcy tinha assinatura do GenBank [banco de dados p�blico de sequ�ncias criado em 1982 nos EUA] e, como n�o tinha internet, a gente recebia tudo pelo correio, naqueles disquetes grandes. E o arquivo n�o vinha em texto, tinha que programar pra extrair as informa��es."
Por volta de 1998, ela conta, come�aram a chegar ao pa�s sequenciadores gen�ticos mais potentes, capazes de sequenciar fragmentos maiores de genoma.
Foi a� que teve in�cio o primeiro projeto nacional de sequenciamento de genoma de um organismo, em que Ana Tereza organizou a forma��o de uma "rede do genoma nacional", com a capacita��o de 25 laborat�rios em 15 Estados.
O primeiro organismo sequenciado foi a Chromobacterium violaceum, bact�ria encontrada em regi�es tropicais e subtropicais e que vive nas �guas �cidas do rio Negro, no Amazonas. Ela � at� hoje estudada no Brasil e l� fora por seu potencial biotecnol�gico, com poss�veis aplica��es em medicamentos e cosm�ticos.
O projeto genoma nacional ajudou a capacitar grupos em diferentes regi�es do pa�s e a formar recursos humanos que contribuiriam para descentralizar a pesquisa em bioinform�tica no pa�s.
A primeira p�s-gradua��o na �rea foi criada pela Capes em 2003. Hoje h� cursos em institui��es como Fiocruz, Universidade de S�o Paulo (USP), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Paran� (UFPR) e, mais recentemente, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

For�a-tarefa contra o Sars-CoV-2
Desde ent�o, os cientistas trabalham em rede e compartilham informa��es entre si, o que tem ajudado na atual crise sanit�ria. Um estudo publicado em setembro do ano passado na revista Science analisando a evolu��o da pandemia de COVID-19 no Brasil � assinado por pesquisadores das mais diversas institui��es, inclusive do LNCC.
A bioinform�tica e a gen�tica t�m tido papel importante nos esfor�os contra o novo coronav�rus.
Gra�as aos avan�os nessas �reas, cientistas de todo o mundo j� compartilharam mais de 700 mil genomas do Sars-Cov-2, dispon�veis na plataforma p�blica Gisaid.
Essa escala sem precedentes tem permitido ao planeta entender a dissemina��o do v�rus e acompanhar as muta��es que ele tem acumulado � medida que se espalha pelo globo. � quase como assistir � evolu��o em tempo real.
Algumas dessas variantes, como a encontrada em janeiro em Manaus e batizada de P.1, preocupam porque podem estar ligadas a um aumento da transmissibilidade do v�rus. A cepa identificada no Amazonas tem duas muta��es — a N501Y e E484K — localizadas em genes que codificam a esp�cula, a prote�na respons�vel por interagir com a c�lula do hospedeiro, e que, na pr�tica, facilita a entrada do coronav�rus nas c�lulas humanas.
A P.2, encontrada no Rio de Janeiro pela equipe coordenada por Ana Tereza, que conta com cerca de 25 pessoas, tamb�m apresenta a muta��o E484K — estudos t�m apontado que ela pode driblar a a��o de anticorpos.

Antes de ser aplicado nos esfor�os contra a COVID-19, o supercomputador Santos Dumont j� foi usado para estudar os v�rus que causam a dengue e a zika. Ele � utilizado n�o apenas pelo laborat�rio de bioinform�tica, mas tamb�m por outras especialidades — e est� aberto a toda a comunidade cient�fica brasileira.
Ana Tereza diz que seu laborat�rio tem hoje entre 15 e 20 projetos simult�neos em andamento. Um deles, mais recente, visa entender porque algumas pessoas t�m manifesta��es mais graves da COVID-19. Para isso, a equipe vai come�ar a sequenciar DNA de pacientes, e n�o apenas o material gen�tico do v�rus.
"Precisamos entender a resposta imune do hospedeiro, a carga gen�tica do paciente."
"A gente v� casos em que um casal vive junto, mas apenas um desenvolve a doen�a", exemplifica.
Fazer Ci�ncia no Brasil
Ana Tereza participou da cria��o e foi a primeira presidente da Associa��o Brasileira de Bioinform�tica e Biologia Computacional (AB3C) e foi membro do conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ci�ncia entre 2015 e 2019.
Para ela, um dos aspectos mais dif�ceis de ser pesquisador no Brasil s�o os repentinos e frequentes cortes no financiamento da Ci�ncia no pa�s.
"� um horror a gente n�o ter continuidade de trabalho, n�o saber se no pr�ximo ano vai ter o mesmo edital para pedir financiamento para a pesquisa. As coisas s�o muito inst�veis", afirma.
"Tem picos em que h� investimentos em laborat�rio, mas depois n�o tem material de consumo, de bancada. Ou n�o tem aluno porque as bolsas est�o cortadas. Quem sobrevive na pesquisa no Brasil s�o her�is, est�o ali por uma causa em que acreditam."
Desde 2016, segundo ela, a �rea de gen�mica vem sofrendo sucessivas restri��es de recursos. E os cortes recentes no or�amento da Ci�ncia e Tecnologia s� agravaram o problema.
Como o Brasil n�o produz os insumos usados na pesquisa (os reagentes usados no sequenciamento gen�tico, por exemplo, s�o todos importados), fica ref�m das flutua��es cambiais — em um momento como o atual, em que o d�lar custa cerca de R$ 5,60, fazer ci�ncia custa ainda mais caro.
O quadro � agravado pela redu��o de bolsas de pesquisa, de mestrado e doutorado, de concursos para novos professores, o que tem cada vez mais estimulado cientistas brasileiros a buscarem melhores condi��es de trabalho em outros pa�ses, a famosa "fuga de c�rebros".
"O Brasil investe muito na forma��o, tem uma forma��o de recursos humanos muito boa, e depois n�o cria condi��es prop�cias para que os alunos fiquem aqui."
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