
Oferecer diferentes "curas" no meio de uma crise de sa�de global � uma maneira de "moldar e amplificar a emerg�ncia sanit�ria para atender a seus interesses pol�ticos", avalia Casar�es, professor da Funda��o Get�lio Vargas em S�o Paulo. Com isso, Bolsonaro cria divis�es e tenta distrair a popula��o da pandemia, avalia.
Curiosamente, o conceito de "populismo m�dico" foi definido por pesquisadores em um artigo pr�-pandemia, de 2018. � um "estilo pol�tico em crises de sa�de p�blica que coloca 'o povo' contra o 'establishment'", definem no texto os autores Gideon Lasco e Nicole Curato, das Universidades das Filipinas e de Canberra, na Austr�lia.
"Enquanto algumas emerg�ncias de sa�de levam a respostas tecnocr�ticas que acalmam as ansiedades de um p�blico em p�nico, o populismo m�dico prospera politizando, simplificando, e espetacularizando quest�es complexas de sa�de p�blica", diz o artigo publicado na revista Social Science & Medicine.

Como um dos exemplos, o trabalho cita o ex-presidente da �frica do Sul Thabo Mbeki (1999 a 2008) e seu negacionismo da AIDs. Em 2000, Mbeki formou um Conselho consultivo com v�rios cientistas que negavam que o HIV causasse a AIDs. Sua ministra da Sa�de recomendou tratamentos com alimentos como o alho e a beterraba para tratar a doen�a.
Com a pandemia da covid-19, um dos autores do artigo original, o antrop�logo m�dico e professor da Universidade das Filipinas Gideon Lasco, voltou a escrever sobre o populismo m�dico, desta vez ligando o conceito �s estrat�gias adotadas por Bolsonaro no Brasil, o presidente Rodrigo Duterte nas Filipinas e o ex-presidente americano Donald Trump.
O estilo adotado por esses l�deres na condu��o da maior emerg�ncia sanit�ria global dessa gera��o "simplifica a crise, dramatiza suas respostas a ela e cria divis�es que desviam as pessoas de quest�es mais urgentes", diz Lasco por e-mail � BBC News Brasil.
Na vis�o dele, o populismo m�dico foi praticado por l�deres no mundo inteiro: pelo primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e por Duterte, nas Filipinas, que minimizaram a crise. Por l�deres como Bolsonaro que "abra�aram totalmente o negacionismo" ou por aqueles que ofereceram "curas", como o presidente de Madagascar, Andry Rajoelina, autor de declara��es promovendo uma planta como solu��o para a doen�a que j� matou mais de 3 milh�es de pessoas no mundo todo.
No Brasil, o professor da FGV Casar�es e David Magalh�es, professor de rela��es internacionais da PUC-SP e da FAAP, ambos coordenadores do grupo de pesquisa Observat�rio da Extrema Direita, tamb�m adotaram o termo para explicar a estrat�gia de Bolsonaro diante da pandemia, publicando um trabalho sobre o assunto intitulado "A Alian�a da hidroxicloroquina" na Revista de Administra��o P�blica da FGV. Segundo Casar�es, o populismo m�dico � uma esp�cie de "bra�o da estrat�gia populista" dos l�deres que se valem dela.
Divis�o na sociedade
Ele explica: duas importantes caracter�sticas do estilo ou da estrat�gia populista � a de que o populista divide o mundo sempre entre o povo a quem ele deve lealdade, de um lado, e as elites, "geralmente tachadas de antinacionais, corruptas ou imperialistas, dependendo de quem usa a distin��o", do outro. Outro tra�o marcante � a de que o l�der populista � um "gerador de crises".

"Ele cria crises, sejam elas imagin�rias ou reais, justamente porque quer dar uma resposta simples e contundente."
O populismo m�dico, ent�o, � a aplica��o dessas duas caracter�sticas do populismo a uma situa��o de emerg�ncia sanit�ria: a divis�o da sociedade entre povo e elite e a produ��o de crises.
Desde o come�o da crise sanit�ria no Brasil, o presidente contrap�e as medidas para conter a dissemina��o da doen�a � manuten��o de uma economia saud�vel no Brasil.
Bolsonaro descreve o confinamento para interromper as cadeias de transmiss�o da doen�a como uma medida de governos autorit�rios ou ditatoriais. E do outro lado desse ringue, ele coloca o trabalho. "A pol�tica do fica em casa, fecha o com�rcio est� errada. O povo tem que trabalhar", afirmou Bolsonaro em mar�o. "Tudo tem um limite, eu, todo meu governo, n�s estamos do lado do povo", disse em abril. Na ocasi�o, afirmou que "est�o empobrecendo a popula��o para melhor domin�-la".
Na segunda (19/4), um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), escreveu no Twitter: "De um lado, ditadores tentando destruir o Brasil… De outro, brasileiros de todos os tipos, desde o ambulante at� o grande empres�rio, sofrendo ao ver suas vidas sendo destru�das…".
Ou seja, a divis�o est� criada: o distanciamento f�sico, medida recomendada pelas maiores autoridades sanit�rias do mundo para evitar mais contamina��es e mortes, contra o trabalho, a liberdade e a sa�de do povo brasileiro. "De acordo com esse discurso, o lockdown � uma medida elitista e autorit�ria contra o povo de bem, e o povo brasileiro m�dio n�o pode trabalhar por causa disso", diz Casar�es.

O papel da cloroquina
Para Lasco, da Universidade das Filipinas, a cria��o da divis�o na sociedade explora sentimentos que as pessoas j� podem ter, como desconfian�a em rela��o �s farmac�uticas, planos de sa�de encarecidos e hesita��o em rela��o � pr�pria ci�ncia.
E � a� que entram as solu��es milagrosas.
"O s�mbolo maior do desejo populista de n�o ter que tomar decis�es mais dr�sticas e portanto impopulares, como um lockdown nacional, � apostar na cloroquina", afirma Casar�es.
O medicamento foi incensado primeiro pelo presidente americano Donald Trump, em mar�o do ano passado, depois de uma publica��o extremamente criticada pela comunidade cient�fica apontando a cloroquina como ben�fica no tratamento para a covid-19. Bolsonaro foi atr�s. Referiu-se � cloroquina como uma "poss�vel cura" e disse ter mandado que o Ex�rcito ampliasse sua produ��o do medicamento.
- Hospital Albert Einstein e a poss�vel cura dos pacientes com o Covid-19. pic.twitter.com/Aia4RzTVlp
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) March 21, 2020
O medicamento, que h� meses se sabe ser comprovadamente ineficaz para a doen�a e pode at� trazer efeitos colaterais graves, "virou uma esp�cie de s�mbolo altamente politizado daqueles que defendiam que havia uma solu��o muito mais f�cil e intuitiva para a crise", diz Casar�es.
"� como se a cloroquina fosse a solu��o barata que voc� encontra em qualquer farm�cia, uma solu��o de alcance do povo contra as elites da ind�stria farmac�utica, as elites das universidades e um suposto lobby internacional", afirma.
"� uma solu��o que o presidente, que est� do lado certo - do povo e da hist�ria -, pode oferecer contra essa elite que quer sonegar das pessoas o acesso ao rem�dio."
Al�m disso, a cloroquina teve um efeito secund�rio importante que foi "dar uma esp�cie de carta branca para que pessoas voltassem � normalidade", diz o cientista pol�tico.
Curas milagrosas
Do in�cio de 2020 para c�, o Brasil j� viu seu l�der exaltar diferentes medicamentos como cura para a covid-19. Da cloroquina, passou para a ivermectina, depois para o spray nasal israelense e o chamado "tratamento precoce". Recentemente, voltou para a cloroquina defendendo a nebuliza��o da droga em pacientes doentes. Esses medicamentos s�o comprovadamente ineficazes ou n�o t�m comprova��o de efic�cia para a covid-19.
A defesa de medicamentos n�o se limitou a discursos. O governo federal tamb�m investiu recursos financeiros: segundo levantamento da BBC News Brasil do in�cio do ano, gastou quase R$ 90 milh�es com a compra de medicamentos como cloroquina, azitromicina e Tamiflu.
Para tentar adquirir o spray nasal que est� em fase de testes iniciais, enviou a Israel uma comitiva de dez pessoas, incluindo o ent�o ministro das Rela��es Exteriores Ernesto Ara�jo.
Os n�meros da pandemia em todo mundo mostram que a maior parte das pessoas que contrai covid-19 se recupera. Por isso, segundo especialistas, rem�dios apresentados como "cura" acabam "roubando o cr�dito" do que foi apenas uma melhora natural. Assim, "� dif�cil refutar as curas milagrosas - j� que as pessoas que as tomam se recuperam de verdade, embora obviamente isso n�o aconte�a por causa delas", diz Lasco.
Para ele, "curas milagrosas permitem a simplifica��o da pandemia, que � um dos elementos centrais do populismo m�dico". "A maioria dessas curas milagrosas � acess�vel e barata, ao contr�rio das vacinas. Portanto, elas tornam a esperan�a a seu alcance."
*- TABELA DA OMS DE 04/JAN/2021.*
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) January 5, 2021
*- Nota-se a baix�ssima taxa de �bitos por Covid em pa�ses africanos (no Brasil s�o 923/milh�o/hab em 03/jan/21).*
*- No Programa, a distribui��o em massa da IVERMECTINA pode ser a respons�vel pela baixa mortalidade da Covid-19 nesses pa�ses.* pic.twitter.com/vC9qzubDtg
A vacina foi o "�ltimo recurso do governo, depois de esgotadas todas as outras formas", opina Casar�es, "porque � cara e envolve mobiliza��o da m�quina p�blica que o governo n�o queria mobilizar".
Al�m disso, parte do eleitorado de Bolsonaro tem uma ressalva a vacinas, consequ�ncia de teorias conspirat�rias importadas dos Estados Unidos. Por fim, diz o cientista pol�tico, a disputa com o governador de S�o Paulo, Jo�o Doria, foi decisiva para que Bolsonaro finalmente considerasse a vacina como uma solu��o para a crise. "Quando Doria saiu na dianteira, Bolsonaro teve de dar o bra�o a torcer."
Ali�s, o pr�prio governador paulista pode tamb�m ser visto como um populista sanit�rio, de acordo com Casar�es. "Ele tamb�m joga o jogo do populismo sanit�rio, ainda que esteja alinhado com a ci�ncia", avalia. Os esfor�os de Doria para o desenvolvimento de uma vacina em parceria com a China, algo que propagandeou diversas vezes, resultou no que � hoje o imunizante mais aplicado no pa�s.

M�dicos e o tratamento precoce
Ao lado de Bolsonaro, grupos m�dicos t�m surfado na onda da "cura milagrosa", recomendando o que chamam de "tratamento precoce" ou "kit covid", um grupo de medicamentos j� considerados ineficazes para a covid-19 ou sem efic�cia comprovada. Usam as redes sociais para divulgar seu "protocolo" e fazem atendimento online, cobrando por consultas em que d�o receitas para esses medicamentos.
Chefes de UTIs de hospitais de refer�ncia no Brasil disseram � BBC Brasil que o uso do "kit covid" tem contribu�do de diferentes maneiras para aumentar as mortes no pa�s. O jornal O Estado de S. Paulo revelou como j� h� pacientes que morreram ou foram para a fila de transplante de f�gado por causa do uso do "kit covid".
Para Casar�es, n�o h� d�vidas de que determinados m�dicos est�o se valendo da defesa desses medicamentos para se projetar politicamente.
O discurso do tratamento precoce tamb�m gerou uma divis�o na sociedade m�dica. "Em geral, o m�dico que receita o kit covid vai criticar o seu colega que n�o receita dizendo que ele � professor universit�rio, mas n�o est� na linha de frente, no atendimento. � o 'm�dico das pessoas versus o m�dico da universidade'", diz Casar�es. "Dentro desses discursos do populismo m�dico, se cria um antagonismo � pr�pria ci�ncia."
Mas, para ele, o que os m�dicos fazem � mais "oportunismo" do que "populismo".
O futuro do populista sanit�rio
Resta a pergunta: o populismo m�dico ou sanit�rio � eficaz? Como os l�deres que adotaram o estilo durante a pandemia de covid-19 no mundo se sair�o nos pr�ximos anos?
Na vis�o de Casar�es, Bolsonaro ganha muito insistindo nesse discurso.
Sobretudo porque, com a estrat�gia, ele continua sustentando a base do argumento bolsonarista, "de que se tem algu�m que se preocupou amplamente com a vida de todo mundo, � ele".
"Mesmo a despeito de tanta coisa que est� errada, Bolsonaro consegue manobrar, convencer muita gente."
Para Lasco, o populismo m�dico tem um grande apelo para a popula��o por causa de suas "dimens�es visuais e viscerais". "Explora divis�es pr�-existentes, afirma��es que aparentemente s�o do senso comum e a��es dram�ticas que ressoam com o p�blico", diz.
"O fato de Duterte e Bolsonaro terem permanecido populares, apesar de suas respostas calamitosas, fala da efic�cia do populismo m�dico." O futuro dos l�deres depende do futuro da pandemia, diz. No Brasil, at� agora, mais de 375 mil pessoas perderam suas vidas por causa da doen�a.
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