A relut�ncia de ju�zes e delegados de pol�cia em aplicar a Lei Maria da Penha � uma forma expl�cita de tentar manter a desigualdade entre homens e mulheres, afirma a soci�loga Patricia Castro Mattos. Ela acredita que, al�m das formas de
viol�ncia descritas na lei, existem outras formas de “viol�ncia simb�lica” que perpetuam padr�es de comportamento e os desequil�brios entre os homens e as mulheres.A elei��o da primeira presidenta do Brasil aponta para o questionamento da “ordem natural dos sexos”. “H� uma mudan�a simb�lica relevante na elei��o de Dilma [Rousseff] que n�o pode ser ignorada”, revela. Entretanto, segundo ela, n�o se pode ser excessivamente otimista e afirmar que o Brasil � menos machista por ter eleito uma mulher para a Presid�ncia da Rep�blica.
A intelectual coordena o N�cleo de Estudos de G�nero da Universidade Federal de S�o Jo�o Del Rei (UFSJ), em Minas Gerais, e � professora do Departamento de Ci�ncias Sociais.
Em sua opini�o, ainda est�o presentes no pa�s “padr�es de percep��o, avalia��o e comportamento androc�ntrico [supervaloriza��o do ponto de vista masculino], machista e sexista”.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que a soci�loga concedeu � Ag�ncia Brasil por email.
Ag�ncia Brasil: � poss�vel dizer que a rela��o entre g�neros tende a ser mais equilibrada ou mais favor�vel �s mulheres de classe social mais alta?
Patr�cia Mattos: O fato de as mulheres entrarem no mercado de trabalho, seu maior acesso � instru��o formal e sua consequente independ�ncia financeira tendem a gerar fric��es que podem questionar a “ordem natural dos sexos”, gerando, assim, a possibilidade de mudan�as no regime de g�neros. E, nesse caso, as mulheres das classes m�dia e alta, devido ao seu posicionamento social, s�o privilegiadas em rela��o �s mulheres da classe baixa e tendem a ter rela��es mais equilibradas com os homens. Isso n�o significa afirmar, de modo algum, que os padr�es de percep��o, avalia��o e comportamento androc�ntrico, machista e sexista n�o estejam presentes nas rela��es e pr�ticas sociais e institucionais dessas mulheres privilegiadas. Tenho notado em minhas pesquisas com mulheres de classe m�dia que aquelas que conseguiram uma coloca��o bem-sucedida no mercado de trabalho, em muitos casos, tendem a apagar as desigualdades de g�nero e ressaltar toda a ideologia meritocr�tica, ainda que elas relatem sofrer, das mais variadas maneiras, “viol�ncia simb�lica”, que � aquela forma de viol�ncia “suave”, que n�o � percebida enquanto tal pelas suas pr�prias v�timas. J� com as mulheres de classe baixa, as viol�ncias manifestas, abertas, efetivas s�o mais evidentes e expostas. Com isso, n�o estou dizendo que as mulheres das classes m�dia e alta n�o sofram viol�ncias f�sicas, abusos e explora��es, mas que esse tipo de viol�ncia, nesse estrato social, n�o tem a mesma visibilidade que para a classe baixa. Ainda que o “inconsciente androc�ntrico” esteja presente nas rela��es e pr�ticas sociais e institucionais de homens e mulheres em geral, de forma transclassista, creio que na classe baixa o sexismo e o machismo sejam encontrados de maneira mais caricata, mais bruta do que nas classes m�dia e alta.
ABr: Como se perpetuam, nas diferentes classes, os pap�is sociais atribu�dos a homens e mulheres?
Patr�cia: A velha e tradicional divis�o sexual do trabalho, na qual os homens s�o exclusivamente respons�veis pelo ganha-p�o e as mulheres pelo trabalho dom�stico e cuidado com os filhos n�o condiz mais com a realidade vivida por homens e mulheres no Brasil. No entanto, esse “inconsciente androc�ntrico” presente em nosso imagin�rio social, que coloca as mulheres como deposit�rias do afeto e do sentimento e os homens da raz�o, � atualizado constantemente em nossas pr�ticas e rela��es sociais e institucionais. Recordo-me de uma propaganda veiculada em canais de TV aberta h� alguns anos, na qual uma garotinha, falando com seu pai ao celular, tenta, apesar da dist�ncia entre eles, matar a saudade aproximando o celular de todas as coisas que reproduzem o barulho da casa (o tic-tac do rel�gio, a grava��o do ursinho de pel�cia etc.). A mensagem da propaganda era: “Fique mais perto de seu pai, pois, como se sabe, o pai est� sempre longe”. A representa��o simb�lica que est� posta nessa propaganda reproduz a ideia de que pai longe � coisa natural e esperada. O mesmo pode ser percebido quando voltamos o nosso olhar para as brincadeiras de crian�as. Certa vez, observando a intera��o entre meninos e meninas numa festa infantil, na qual as crian�as se entretinham jogando videogame, pude notar uma divis�o clara entre os pap�is assumidos pelas crian�as. Enquanto os meninos jogavam, as meninas, al�m de ficar olhando os meninos competirem, contentavam-se em servi-los com refrigerantes. Quando eu lhes perguntei por que as meninas n�o participavam da brincadeira, eles me responderam que eram elas que desejavam espontaneamente assumir esse papel. Surpreendeu-me constatar que, a despeito da tenra idade e das transforma��es vividas pela gera��o dos pais dessas crian�as, elas ainda reproduzem em suas brincadeiras o imagin�rio androc�ntrico e sexista denunciado h� 60 anos por Simone Beauvoir.
ABr: No texto “A dor e o estigma da puta pobre” a senhora aponta que � comum na hist�ria de vida das mulheres entrevistadas um tipo de socializa��o disruptiva, marcado, entre outras coisas, pela aus�ncia paterna (e agravada com situa��es de abuso sexual). H� um n�mero crescente de fam�lias sem pais, que impacto isso pode ter na forma��o das meninas e dos meninos?
Patr�cia: Quando eu ressaltei a aus�ncia paterna e a quest�o do abuso sexual como marcas desse tipo de socializa��o disruptivo [com rupturas], procurei demonstrar como a socializa��o familiar das prostitutas entrevistadas n�o lhes havia dado, quando crian�as, a sensa��o de se “saber amada e protegida” e, mais ainda, n�o lhes possibilitou o aprendizado pr�-reflexivo, a partir dos exemplos dos pais, de uma “economia emocional”. N�o se pode, no entanto, essencializar a figura paterna sob o risco de se reproduzir os pap�is sociais tipicamente masculino e feminino e ratificar, pura e simplesmente, a velha “ordem natural dos sexos”. Nesse sentido, as novas configura��es de fam�lia – chefiadas unicamente por mulheres, por casais homossexuais etc., ou aquelas nas quais as mulheres � que exercem o papel de dom�nio – podem ser bem-vindas e propiciar o questionamento dos esquemas de percep��o, de avalia��o e de comportamento androc�ntrico, sexista e machista.
ABr: H� magistrados que consideram a Lei Maria da Penha inconstitucional e em algumas delegacias evita-se fazer o registro de viol�ncia como agress�o do c�njuge. Como a senhora v� a relut�ncia de alguns ju�zes e delegados em aplicar a lei?
Patr�cia: Uma das formas mais eficazes de manuten��o da domina��o social injusta, como bem denunciaram todos os movimentos de minorias, com destaque para o movimento feminista, � quando os dominantes recorrem ao universalismo, � igualdade de direito para reproduzir e legitimar a desigualdade de fato. � com base nesse universalismo – no texto constitucional que diz que todos s�o iguais perante � lei - que ju�zes questionam a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, por ela garantir um tratamento especial e diferenciado �s mulheres v�timas de viol�ncias f�sicas e todo tipo de abuso.
ABr: No artigo “A mulher moderna numa sociedade desigual”, a senhora assinala que “as mulheres n�o parecem ter descoberto uma forma expressiva de vivenciar sua condi��o (…) mas, sim, parecem ter tomado o modelo masculino como modelo a ser seguido”. � correto dizer que o que � atribu�do ao universo masculino ainda � mais valorizado socialmente?
Patr�cia: N�o h� d�vida de que a essencializa��o dos g�neros, que est� por tr�s da divis�o social dos pap�is feminino e masculino, � baseada num sistema de classifica��o/desclassifica��o social que coloca as caracter�sticas tidas como tipicamente masculinas como a supremacia da raz�o sobre os sentimentos e as emo��es, tidas como tipicamente femininas, como sendo socialmente mais valorizadas. � bem verdade que a entrada das mulheres no mercado de trabalho competitivo, a possibilidade de as mulheres ocuparem cargos de poder e prest�gio social, ainda que se possa perceber nitidamente a perman�ncia da desigualdade entre os g�neros quando analisamos a coloca��o das mulheres no mercado de trabalho, abre o campo para uma luta simb�lica a favor das mulheres que pode permitir a desconstru��o da essencializa��o dos g�neros. No entanto, como toda a estrutura do capitalismo est� baseada na ideologia meritocr�tica e no consequente apagamento das rela��es assim�tricas entre os g�neros, o grande desafio das mulheres � descobrir uma forma expressiva de vivenciar sua condi��o n�o tomando o modelo masculino como modelo a ser seguido.
ABr: O Brasil que, agora, tem uma presidente � um pa�s menos machista? � poss�vel assinalar alguma mudan�a em pouco mais de 60 dias de poder?
Patr�cia: Essa � a quest�o mais espinhosa para ser respondida. O risco de toda an�lise conjuntural � sempre incorrer na simplifica��o da compreens�o sobre o mundo social. O grande desafio da teoria cr�tica � mostrar a complexidade do mundo social e questionar todo tipo de pensamento, vis�o, ideologia que o conceba como algo dado, como inevit�vel e que sirva para perpetuar e legitimar a domina��o social injusta. Uma das formas mais eficazes de perpetua��o da domina��o � ver mudan�a onde existe perman�ncia e conserva��o. Sem d�vida, a elei��o da presidenta aponta para o questionamento da “ordem natural dos sexos”, na qual o espa�o p�blico e as posi��es de poder s�o reservados aos homens. H�, portanto, uma mudan�a simb�lica relevante na elei��o de Dilma que n�o pode ser ignorada ao se vislumbrar “outros poss�veis”, isto �, outras formas de ser e atuar no mundo para as mulheres. No entanto, o legado que o pensamento cr�tico nos deixa � a tarefa de sopesar a import�ncia da elei��o de uma mulher para o cargo de maior poder pol�tico. N�o podemos correr o risco de ser excessivamente otimistas e deterministas ao afirmarmos que o Brasil � menos machista por ter eleito uma mulher para a Presid�ncia da Rep�blica, sem levar em conta a for�a da “viol�ncia simb�lica”, que perpetua a domina��o social injusta, ao ressaltar a mudan�a, valendo-se da generaliza��o de hist�rias de vida singulares.