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Estado de Minas HERAN�A VIOLENTA

Cultura do medo e legado da ditadura ajudam a explicar trucul�ncia da pol�cia do Rio, diz ex-chefe das UPPs

Em entrevista � BBC News Brasil, o antrop�logo Robson Rodrigues, hoje na reserva da PM, falou sobre guerra �s drogas, corrup��o policial e como a heran�a da ditadura ainda influencia o modo como se faz policiamento no pa�s. 'O resultado dessa escolha ainda estamos vendo hoje', disse.


16/05/2021 07:50 - atualizado 16/05/2021 13:44


Uma operação da Polícia Civil na comunidade do Jacarezinho, no Rio, terminou com 29 mortos na semana passada(foto: Reuters)
Uma opera��o da Pol�cia Civil na comunidade do Jacarezinho, no Rio, terminou com 29 mortos na semana passada (foto: Reuters)

Para o antrop�logo Robson Rodrigues, ex-comandante das Unidades de Pol�cia Pacificadora (UPPs) e ex-chefe do Estado Maior da Pol�cia Militar do Rio de Janeiro, a tradicional cultura do medo e a heran�a violenta da ditadura militar que comandou o pa�s por 21 anos ajudam a explicar por que as pol�cias atuam de maneira truculenta no Brasil.

No �ltimo dia 6, uma opera��o da Pol�cia Civil na comunidade do Jacarezinho, zona norte da capital fluminense, terminou com 28 pessoas mortas. Entre elas, um agente da pr�pria corpora��o.

No ano passado, as interven��es policiais no Rio de Janeiro deixaram um total de 1.245 v�timas, segundo dados do Instituto de Seguran�a P�blica. Isso representa uma m�dia de mais de 3 mortes por dia. O n�mero, apesar de muito alto, � menor que o total de v�timas fatais dos dois anos anteriores. Em 2019, foram 1.814 e em 2018, 1.534.

A invas�o da pol�cia ao Jacarezinho ocorreu apesar de uma decis�o do STF (Supremo Tribunal Federal) suspender, em junho de 2020, opera��es policiais em favelas do Rio durante a pandemia. A decis�o permite a��es apenas em "hip�teses absolutamente excepcionais". Para isso, os agentes precisam comunicar ao Minist�rio P�blico sobre o motivo da opera��o.

Em nota, a Secretaria de Pol�cia Civil defendeu a necessidade de opera��es em favelas. "A a��o foi baseada em informa��es concretas de intelig�ncia e investiga��o. Na ocasi�o, os criminosos reagiram fortemente. N�o apenas para fugir, mas com o objetivo de matar", escreveu.

"O Rio de Janeiro foi constru�do na base do medo, um sentimento muitas vezes manipulado pelos interesses pol�ticos: medo da invas�o francesa, medo de um levante dos escravos, medo da Rep�blica, medo dos comunistas. Estamos constantemente em um estado de medo do outro, e isso gera rea��es violentas", afirmou Rodrigues em entrevista � BBC News Brasil.

Segundo ele, durante a Constituinte de 1988, a sociedade brasileira escolheu manter o modelo de pol�cia criado pelo regime ditatorial: uma corpora��o respons�vel pelo policiamento ostensivo, e outra civil, que cuida das investiga��es.

"A pol�tica e a sociedade n�o foram capazes de propor uma estrutura moderna para as pol�cias, algo que desse conta dos desafios sociais e de justi�a criminal. O resultado dessa escolha estamos vendo at� hoje", disse.

Durante a entrevista, o antrop�logo, hoje na reserva da PM, tamb�m comentou o fracasso da guerras �s drogas, o falho combate � corrup��o policial no Brasil e como grandes criminosos lucram com a manuten��o da viol�ncia em �reas controladas por fac��es.

Robson Rodrigues ocupou diversos cargos de dire��o na PM do RJ entre 2009 e 2016. Ele esteve � frente da coordena��o de UPPs entre 2010 e 2011 e foi chefe do Estado Maior da PM do RJ de 2015 a 2016.

Confira a entrevista abaixo.


O antropólogo Robson Rodrigues, hoje na reserva da PM, critica o legado da ditadura militar na atuação das polícia no Rio(foto: BBC)
O antrop�logo Robson Rodrigues, hoje na reserva da PM, critica o legado da ditadura militar na atua��o das pol�cia no Rio (foto: BBC)

BBC News Brasil - Por que a viol�ncia policial no Brasil muitas vezes n�o � tratada pelas pr�prias corpora��es como um problema?

Robson Rodrigues - Existem alguns setores das pol�cias, embora ainda com pouca gente, que t�m discutido bastante a quest�o da viol�ncia, inclusive com a academia.

Mas o problema � que a cultura de autoritarismo j� est� arraigada, e n�o somente dentro da pol�cia. Est� presente em v�rias institui��es e na sociedade brasileira. � preciso habilidade para mud�-la, principalmente na conjuntura pol�tica que a gente tem visto no Brasil.

A qualidade da nossa pol�tica tem ficado muito aqu�m do esperado para tocar nesse problema. Vivemos em uma sociedade de comunica��o muito r�pida, e a pol�tica tem usado a seguran�a p�blica como palanque eleitoral com discursos populistas, oferecendo solu��es simples para situa��es muito complexas. Com isso, tem havido muitos retrocessos.

Para caracterizar uma sociedade minimamente civilizada � preciso ter mecanismos para afastar a viol�ncia dos modos de solucionar conflitos, mas nossas institui��es n�o t�m sido capazes de fazer isso. N�s falhamos, n�o s� como pol�cia, mas como Estado e como sociedade. A gente v� muita viol�ncia, por exemplo, no tr�nsito e nas rela��es de classes.

Por outro lado, quando as pessoas percebem que as institui��es n�o funcionam, querem fazer justi�a com as pr�prias m�os. E, quando essas m�os est�o armadas, o cen�rio se torna pior.

BBC News Brasil - Essa viol�ncia pode ser lucrativa tamb�m? H� interesses econ�micos em manter as coisas como est�o?

Rodrigues - H� um lado racional na viol�ncia: ela incrementa os mercados. Precisamos olhar a viol�ncia no Rio de Janeiro como mercados il�citos, altamente violentos, que se assemelham � geografia pr�-moderna, da Europa feudal, onde n�o havia um poder centralizado, e sim uma disputa violenta pela administra��o de territ�rios.

Essa viol�ncia se tornou instrumental para policiais corruptos e outros que atuam na criminalidade. Os grandes criminosos, aqueles que realmente lucram, n�o est�o ali na ponta. Eles ficam invis�veis, se aproveitam da invisibilidade enquanto a pol�cia e o sistema criminal est�o olhando para outro lado.

Os grandes traficantes, de redes internacionais, t�m muita facilidade de acesso a essas comunidades. Mas, ao mesmo tempo, quando a viol�ncia aumenta, os pre�os tamb�m aumentam, o ped�gio tamb�m aumenta. A viol�ncia torna o mercado mais lucrativo, pois ela mexe na demanda e na oferta.


No ano passado, as intervenções da polícia do Rio de Janeiro mataram 3 pessoas por dia, em média(foto: Reuters)
No ano passado, as interven��es da pol�cia do Rio de Janeiro mataram 3 pessoas por dia, em m�dia (foto: Reuters)

BBC News Brasil - Qual a influ�ncia da ditadura militar no comportamento violento das pol�cias de hoje?

Rodrigues - As pol�cias nunca foram reformuladas no Brasil. O problema da viol�ncia policial no Rio de Janeiro n�o vem apenas da ditadura. Ele vem da col�nia. Infelizmente, a pol�cia se especializou ao longo do tempo em ser uma institui��o truculenta.

O Rio de Janeiro foi constru�do na base do medo, um sentimento muitas vezes manipulado pelos interesses pol�ticos: medo da invas�o francesa, medo de um levante dos escravos, medo da Rep�blica, medo dos comunistas. Estamos constantemente em um estado de medo do outro, e isso gera rea��es violentas.

J� o arcabou�o legal das pol�cias foi constru�do pela ditadura, estabelecendo as fun��es que hoje s�o da pol�cia civil e da militar. No momento da Constituinte de 1988, a pol�tica e a sociedade n�o foram capazes de propor uma estrutura moderna para as pol�cias, algo que desse conta dos desafios sociais e de justi�a criminal.

Embora eu tenha sido da Pol�cia Militar por muitos anos, sempre fui um cr�tico da militariza��o. Esse foi um erro que a sociedade cometeu e que d�i muito. O resultado dessa escolha estamos vendo at� hoje.

BBC News Brasil - H� uma m�xima de que o crime organizado n�o se sustenta sem participa��o de alguma esfera do Estado. Em que medida a corrup��o policial auxilia o crime?

Rodrigues - Uma pol�tica de seguran�a que n�o combata a corrup��o policial est� fadada ao erro. � uma fal�cia, uma mentira.

Em v�rios lugares do mundo foi preciso combater a imagem de uma pol�cia corrupta para facilitar as a��es de combate ao crime. Todos esses lugares partiram desse princ�pio. Nova York, por exemplo, tinha uma das pol�cias mais corruptas do mundo.

Na Col�mbia, a pol�cia nacional tinha uma face voltada quase exclusivamente para a guerra civil. A c�pula queria manter essa situa��o, porque esse estado de guerra obviamente dava lucro para os corruptos. A pol�cia e as Farc (For�as Armadas Revolucion�rias da Col�mbia) lidavam com a coca�na, que � um dos bens mais valiosos do mundo. Quando algu�m teve coragem de lidar com isso, e reformou a pol�cia, o Estado ganhou legitimidade com a popula��o. Combater a corrup��o policial � o ponto de partida.

O crime organizado se sustenta com medo, armas, drogas e viol�ncia. Mas de onde v�m as armas e os outros insumos?


Intervenções policiais no Rio de Janeiro deixaram um total de 1.245 vítimas em 2020(foto: REUTERS/Ricardo Moraes)
Interven��es policiais no Rio de Janeiro deixaram um total de 1.245 v�timas em 2020 (foto: REUTERS/Ricardo Moraes)

BBC News Brasil - As mil�cias surgiram com um discurso de combate ao tr�fico e a criminosos que controlavam certos territ�rios.

Rodrigues - � f�cil para um discurso demag�gico dizer que est� combatendo o tr�fico. As mil�cias se aproveitaram desse discurso, mas hoje muitos milicianos s�o parceiros de traficantes. J� existe a narcomil�cia.

Tanto o tr�fico quanto a mil�cia s�o parasitas do Estado. Ambos s�o m�fias, amantes do dinheiro, querem sempre lucrar.

BBC News Brasil - Observat�rios da viol�ncia no Rio de Janeiro t�m mostrado que as opera��es policiais n�o atingem �reas controladas por milicianos. H� uma explica��o para isso?

Rodrigues - Posso falar apenas hipoteticamente. Podem existir policiais envolvidos por quest�es racionais e objetivas, que � a busca do lucro. S�o agentes que, ao n�o combater a mil�cia, acabam se beneficiando disso.

Por outro lado, h� tamb�m uma percep��o emocional por parte dos policiais de que o inimigo � o tr�fico de drogas.

BBC News Brasil - As pol�cias do Rio continuaram a fazer opera��es mesmo com a decis�o do STF que suspendeu a��es do tipo durante a pandemia. E o delegado Rodrigo Oliveira (subsecret�rio Operacional da Pol�cia Civi) falou em 'ativismo judicial', uma esp�cie de interfer�ncia da Justi�a nas pol�cias do Rio. Como essa decis�o do STF foi recebida pelas corpora��es?

Rodrigues - A pol�cia � heterog�nea. Ent�o, a decis�o pode ter sido recebida de v�rias formas.

Meu entendimento � que quem est� fazendo ativismo policial � o delegado. Ele padece do mesmo problema do qual est� acusando o STF.

O objetivo da opera��o no Jacarezinho foi mal comunicado. Qual era o objetivo? N�o ficou bem explicado. Se o discurso oficial foi amb�guo e pouco claro, ele deu � sociedade o direito de acreditar que o que estava em jogo ali era a quest�o do Supremo Tribunal Federal, testar as institui��es. Para mim, levantar hostes contra o STF � ativismo. � uma disputa de quem manda mais? Quem est� sofrendo com isso � a popula��o.

O fato � que essas opera��es sem p� nem cabe�a, motivadas por uma ocupa��o de territ�rio, n�o t�m dado resultado. H� v�rios erros t�cnicos: no arcabou�o legal brasileiro, quem faz policiamento ostensivo, de ocupa��o de espa�os, � a Pol�cia Militar, n�o a Civil. O papel da Pol�cia Civil � investigar crimes.


A população negra é a maior vítima da violência no Brasil(foto: Getty Images)
A popula��o negra � a maior v�tima da viol�ncia no Brasil (foto: Getty Images)

BBC News Brasil - Nesse sentido, os pr�prios policiais n�o acabam se tornando v�timas dessa pol�tica? O n�mero de policiais assassinados no Brasil � bastante grande.

Rodrigues - Eu te pergunto: essa pol�tica de enfrentamento da viol�ncia est� dando certo? E ser� que a nossa sociedade quer uma pol�cia consciente? Temos a pol�cia que mais mata e a que mais morre.

Esse discurso simpl�rio de enfrentamento se encaixou perfeitamente com a incapacidade intelectual e cognitiva do (presidente Jair) Bolsonaro. Nessa vis�o, combatemos a viol�ncia com mais brutalidade, com trucul�ncia. Mas isso n�o resolve nada, n�o est� resolvendo nada.

A opera��o no Jacarezinho sinaliza perfeitamente esses equ�vocos: ativismo policial, falta de planejamento, descaso com os policiais.

BBC News Brasil - O Brasil vive uma guerra �s drogas que j� dura d�cadas. O resultado n�o � positivo. O consumo de drogas, que em tese � o objetivo dessa guerra, continua normalmente, e as quadrilhas que controlam o tr�fico ficaram mais fortes, dominando territ�rios. Como o sr. enxerga essa quest�o?

Rodrigues - O setor acad�mico fala bastante da guerra �s drogas. Uma pesquisa do Centro de Estudos de Seguran�a e Cidadania (Cesec), da qual fui consultor, mostrou os custos alt�ssimos dessa proibi��o. S�o R$ 5 bilh�es por ano no Rio e em S�o Paulo.

Essa guerra � providencial para alimentar o mercado da corrup��o e da mil�cia, cujo objetivo em tese � combater o tr�fico.

Por outro lado, h� uma a��o tradicional sobre como combater o tr�fico que j� dura anos e n�o muda. As elites da pol�cia e da sociedade acreditam que o problema da viol�ncia � esse, e essa vis�o dificilmente vai mudar a curto prazo, embora a discuss�o esteja aumentando.

N�s, como sociedade, queremos identificar onde est� o perigo, apontar onde est� o risco. Com isso, h� uma redu��o de toda a complexidade do problema da viol�ncia a uma quest�o localizada que � o tr�fico de drogas. Por�m, por tr�s disso, h� estruturas que emergem � superf�cie: conflitos de classe, criminaliza��o da pobreza, racismo estrutural.

J� o policial que est� na linha de frente, principalmente da PM, foi conduzido a acreditar que o inimigo � aquele que est� ali na rua: o jovem armado vendendo a droga, muitas vezes um sujeito muito parecido em origem e idade com o pr�prio policial. Mas esse jovem � s� a ponta do problema.

BBC News Brasil - Por que esse enfrentamento ao tr�fico n�o tem dado certo?

Rodrigues - Temos pol�ticas p�blicas muito fr�geis e simpl�rias, com objetivos pol�ticos de quatro anos, e n�o metas de Estado. Ningu�m quer mexer com as estruturas.

Temos a tend�ncia de reduzir o problema do crime organizado ao tr�fico de drogas.

O tr�fico � uma rede internacional e complexa, conectado com mercados globais. H� pa�ses na Am�rica Latina que j� est�o bem mais avan�ados nessa quest�o, com pol�ticas espec�ficas para o varejo e outras para o chamado grande tr�fico.

Outro erro � reduzir todos os problemas de seguran�a p�blica � a��o da pol�cia. Seguran�a � um conceito muito maior, envolve educa��o, cultura, fam�lia, oportunidades. A pol�cia deve ser o �ltimo bra�o dessa pol�tica, e n�o o primeiro.

Por outro lado, h� muitos interesses pol�ticos em manter a popula��o mal informada, com medo, cercada por tanques nas ruas.

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