
*Esta reportagem foi publicada originalmente em 31 de outubro de 2021 e atualizada em 12 de abril de 2022
Quando o m�dico Marcos Barreto participa de congressos e confer�ncias fora do Brasil, n�o � incomum que achem que ele trabalha em zonas de guerra.
Na verdade, ele chefia a unidade de queimaduras do Hospital da Restaura��o Governador Paulo Guerra, no Recife (PE), refer�ncia no tratamento de queimados no pa�s.
Ali s�o atendidas cerca de 280 pessoas por m�s, uma m�dia de quase dez por dia. E nos 40 leitos costumam ser internados, em m�dia, 1,1 mil pacientes por ano, diz Barreto, que atua no hospital h� 47 anos, desde que era estudante de Medicina.
"No exterior, acham que (n�meros dessa magnitude) s� podem ser de queimaduras por conflito", explica Barreto � BBC News Brasil.
"E se voc� me perguntar se esse n�mero tem aumentado no Brasil, digo que sim, claro. Quanto mais pobreza, maior o n�mero de acidentados. (...) Mas n�o � nada novo: � um problema hist�rico. Eu vejo isso h� d�cadas. � um problema puramente social, e muito grave. Minha clientela � miser�vel. Eu nunca atendo rico queimado."
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Essa rela��o direta entre o aumento recente da pobreza e mais queimaduras ainda n�o consta de estat�sticas oficiais recentes, mas � confirmada por especialistas e tem sido observada nos �ltimos meses, em particular no acesso a combust�vel para cozinhar de modo seguro.
Enquanto o pre�o do g�s de cozinha acumulou alta de quase 30% nos 12 meses at� mar�o de 2022, 56% da popula��o adulta brasileira viu sua renda cair desde o in�cio da pandemia, segundo pesquisa do Unicef (bra�o da ONU para a inf�ncia) publicada em maio de 2021.
O resultado � que se tornaram mais comuns os relatos - e os riscos de acidentes - envolvendo pessoas que, sem conseguirem comprar g�s de cozinha, passaram a preparar refei��es com combust�veis alternativos, mais inflam�veis ou perigosos.
"Sempre quando aumenta o pre�o do g�s, centros de atendimento de queimados j� sabem que precisam se preparar para atender mais gente", sobretudo em regi�es vulner�veis, explica � BBC News Brasil o m�dico Jos� Adorno, presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ).

Um caso recente a ganhar o notici�rio foi o de Ang�lica Rodrigues, 26, de S�o Vicente (SP), que morreu com queimaduras em 85% do corpo ao tentar cozinhar com �lcool, porque n�o tinha dinheiro para comprar um botij�o.
Em 2021, Geisa Stefanini, de 32 anos, moradora de Osasco (SP), morreu depois de ter grande parte do corpo queimado em um acidente dom�stico. Seu beb�, de sete meses, sobreviveu � explos�o, mas sofreu queimaduras em 18% do corpo.
Desempregada e sem dinheiro para um botij�o, segundo relatos de pessoas pr�ximas, Stefanini tinha tentado cozinhar com um fog�o improvisado com tijolos, uma grelha e �lcool obtido em um posto de gasolina.
2 litros de �lcool em garrafa PET
Recentemente, 80% dos leitos femininos do Hospital da Restaura��o recifense chegaram a ser ocupados por casos como o de Geisa, informa o m�dico Marcos Barreto.
"O povo est� indo ao posto de gasolina porque n�o tem R$ 100 para comprar o g�s de cozinha, mas �s vezes tem R$ 10 na m�o. Com isso, compram 2 litros de �lcool no posto, em garrafa PET, e cozinham por dois dias e meio", explica Barreto.
"Se voc� fizer a conta, isso sai mais caro do que o g�s, mas � o que cabe no bolso deles naquele momento. A pessoa garante que vai cozinhar hoje e amanh�. Faz um trip� com uma panelinha de �lcool no meio."
O improviso � altamente arriscado. "Voc� quase n�o enxerga o fogo azulado do �lcool. Quando vai reabastecer, porque acha que o fogo acabou, ocorre o acidente."
O �lcool e a gasolina s�o muito vol�teis e se espalham e evaporam rapidamente, explica o major Marcos Palumbo, do Corpo de Bombeiros do Estado de S�o Paulo, corpora��o que atendeu � ocorr�ncia de Geisa.
"Ao evaporar, o combust�vel forma uma nuvem invis�vel. E, ao contr�rio de um fog�o, que voc� desliga, n�o tem como cortar o suprimento do combust�vel: o fogo s� acaba quando queimar, destruindo tudo", detalha o major. "Por isso, nunca se deve improvisar a substitui��o de combust�vel em uma cozinha, que j� est� adaptada ao uso do g�s."
Mas, mesmo que sejam alertadas sobre os riscos, as pessoas se veem sem alternativas, observa Barreto. "Elas me dizem, 'doutor, mas eu vou cozinhar com o qu�?'. J� cheguei a internar tr�s gera��es da mesma fam�lia - av�, m�e e filha - por acidente na cozinha."

Cozinhar com lenha e carv�o
Como aponta Barreto, o problema n�o � novo. Em 2019, uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica) estimou que, no ano anterior, 14 milh�es de fam�lias brasileiras (ou 20% do total) usavam lenha ou carv�o para cozinhar - um aumento de 3 milh�es de fam�lias em rela��o a 2016.
Ficaram, portanto, mais suscet�veis a acidentes, queimaduras ou intoxica��o pela fuma�a.
Outras 89 mil fam�lias usavam outros combust�veis para preparar alimentos, o que pode incluir o �lcool.
No mundo inteiro, um relat�rio do Banco Mundial publicado em outubro de 2020 apontou que 2,8 bilh�es de pessoas dependiam de lenha, res�duos de colheita, carv�o e outros combust�veis inseguros e poluentes para cozinhar.
O preju�zo social acumulado disso, seja em danos � sa�de, ao clima (pela emiss�o de gases do efeito estufa) e � produtividade das mulheres - as principais encarregadas do preparo de refei��es - foi estimado em US$ 2,4 trilh�es.
Al�m disso, em 2014 a ONU calculou que 4,3 milh�es de pessoas morriam por ano por doen�as causadas pela polui��o em ambientes fechados - sobretudo por part�culas e mon�xido de carbono produzidos pela queima de madeira, carv�o ou res�duos em fog�es improvisados ou ineficientes.
A Organiza��o Mundial da Sa�de n�o tem estat�sticas atualizadas sobre queimaduras, mas calculou, em 2018, que cerca de 180 mil pessoas morriam por ano no mundo em decorr�ncia desse tipo de les�o, sobretudo em pa�ses de renda baixa e m�dia, a maior parte na �frica e no Sul da �sia.
No Brasil, alguns estudos estimam que haja mais de 1 milh�o de casos de queimadura por ano, dos quais 2,5 mil terminam em morte. E dois ter�os ocorrem dentro de casa, muitas vezes envolvendo crian�as.
Cerca de 90% dos atendimentos s�o na rede p�blica de sa�de, evidenciando a vulnerabilidade de muitas das v�timas, segundo a SBQ.

Aqui, uma lei sancionada em novembro de 2021 prev� subs�dio, a cada dois meses, de ao menos metade do valor de um botij�o de g�s para as fam�lias inscritas no Cadastro �nico de programas sociais do governo federal.
Exposi��o excessiva ao �lcool
Para al�m dos custos do botij�o de g�s, a pandemia favoreceu uma exposi��o excessiva das pessoas ao �lcool como higienizador, sem que isso tenha sido acompanhado de medidas educativas, explica Jos� Adorno, da Sociedade Brasileira de Queimaduras.
Adorno lembra que, em mar�o de 2020, a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) flexibilizou as restri��es � fabrica��o e � venda do �lcool na concentra��o 70%, que � altamente inflam�vel.
"Aumentou a presen�a do �lcool na casa das pessoas, o que n�o � seguro", pontua Adorno.
O resultado, diz ele, � que come�aram a surgir desde casos extremos "de pessoas passando �lcool gel no corpo como se fosse protetor solar" at� um aumento nos atendimentos ambulatoriais e nas interna��es por conta de queimaduras acidentais graves, segundo relataram � SBQ centros hospitalares especializados em queimaduras.
Entre mar�o e novembro de 2020, houve cerca de 700 interna��es decorrentes de acidentes com l�quidos inflam�veis, diz a sociedade.
"Os acidentes mais comuns (ocorrem quando) o adulto acende um fogareiro com crian�a por perto, ou a crian�a depois pega o �lcool para copiar o adulto", prossegue o presidente da SBQ.
Acidentes em casas pequenas, em que a cozinha n�o fica em um c�modo separado, ou em �reas externas, com o uso de �lcool l�quido para acender churrasqueiras (o que n�o � recomendado), tamb�m s�o frequentes.
Por isso, segundo a SBQ, deve-se manter em casa apenas frascos pequenos de �lcool 70%, para higienizar m�os, e usar na limpeza em geral �gua e sab�o ou o �lcool 46, que � menos vol�til. E os recipientes devem sempre ser mantidos longe de locais quentes e fora do alcance de crian�as.

"Mas os frascos de �lcool tamb�m precisariam ser mais bem diferenciados pela ind�stria", critica o Adorno. "O �lcool 70% precisaria ter alguma tarja que o identificasse, assim como fazemos com medicamentos tarja preta ou com venenos."
Palumbo, do Corpo de Bombeiros de S�o Paulo, lembra que, para churrasqueiras, o mais seguro � usar acendedores, que n�o v�o evaporar rapidamente, como faz o �lcool l�quido.
Tratamento nem sempre existe
Gambiarras em redes de eletricidade, queimaduras por escaldadura (por exemplo, quando crian�as viram sobre si panelas de �gua ou caf� quente) e botij�es de g�s mal instalados completam o quadro de causas comuns de acidentes, cujas v�timas nem sempre conseguem o tratamento adequado.
O professor universit�rio maranhense Daniel Moraes descobriu isso em 2017, quando uma explos�o por vazamento de g�s na casa de sua vizinha causou queimaduras em 65% de seu corpo. Foi o in�cio de uma tr�gica saga pessoal que o deixou internado por nove meses e com a sensa��o de que, em suas palavras, "minha vida tinha acabado".
"Eu n�o tinha ideia da dimens�o disso (das queimaduras) at� acontecer comigo, porque � um problema invis�vel", diz Moraes � BBC News Brasil.
"Fiquei meses internado em um bom hospital aqui de Caxias (cidade a 360 km da capital maranhense S�o Lu�s), mas que n�o tinha atendimento especializado para queimaduras - que requer nutri��o adequada, fisioterapia etc."
Como ele n�o suportava a dor, cada troca de curativo tinha de ser feita no centro cir�rgico, sob anestesia geral. Sem fisioterapia e passando dias a fio deitado e im�vel, Moraes viu suas pernas - um dos principais focos das queimaduras - atrofiarem e "ficarem da mesma finura que meus bra�os".
"Achei que n�o fosse sobreviver, nem voltar a andar", recorda.
Foi s� depois que conseguiu ser transferido para um centro de refer�ncia em Goi�nia (GO) que Moraes conseguiu acesso a profissionais m�dicos especializados em queimaduras: "sa� de l� 18 dias depois, andando." O que o fez concluir que, se tivesse recebido cuidados adequados desde o in�cio, seu sofrimento - cujas cicatrizes f�sicas e psicol�gicas perduram at� hoje - poderia ter sido encurtado.

"Eu tive educa��o e acesso a informa��es e passei por tudo isso. Conheci pessoas de poder aquisitivo baix�ssimo, pessoas que precisaram largar tudo para mudar de Estado e poder se tratar", conta.
Com a amiga advogada Andr�a Barbosa, que o ajudou durante o tratamento, Moraes criou a Associa��o Maranhense de Apoio a Sobreviventes de Queimaduras, em que ajudam v�timas a navegar pelo sistema estatal de sa�de e a obter desde vagas em centros especializados at� itens caros do tratamento, como malhas compressivas e cremes hidratantes.
"A maior parte dos sobreviventes que nos procuram vivem na pobreza, em povoados onde n�o h� atendimento hospitalar", conta Andr�a Barbosa.
Existe, de fato, uma distribui��o desigual na oferta per capita de atendimento a queimados no pa�s, explica o m�dico Jos� Adorno, com maior concentra��o no Sudeste e menor no Norte e em parte do Nordeste.
O Maranh�o, apesar de ter um dos mais altos �ndices de acidentes com queimaduras no Nordeste, ainda n�o tem um centro pr�prio de atendimento a queimados - este est� em fase de conclus�o e treinamento de sua equipe. Enquanto isso, pacientes com frequ�ncia s�o mandados para outros Estados ou se tratam por conta pr�pria, diz Barbosa.
"Para se ter uma ideia, em algumas casas que visitamos, encontramos crian�as sentadas na rede com os bra�os (queimados) esticados, sem curativos nas queimaduras, apenas com um ventilador".
(Observa��o: a recomenda��o de especialistas, no caso de queimaduras, � jamais aplicar pomadas, medicamentos ou quaisquer produtos caseiros, como borra de caf� ou clara de ovo; deve-se apenas lavar a �rea queimada com �gua corrente, cobrir com um pano limpo e buscar ajuda m�dica imediatamente).

'Trauma que fica na penumbra'
Al�m da desigualdade no acesso a tratamento, um dos muitos aspectos tr�gicos � o fato de as queimaduras em geral afetarem pessoas jovens e crian�as, no auge de suas vidas sociais e produtivas.
Segundo Adorno, as queimaduras s�o uma das principais causas de desperd�cio de anos de vida, porque muitas vezes exigem longos per�odos de interna��o hospitalar, m�ltiplas cirurgias, afastamento do trabalho e reabilita��o.
"� um problema que atinge um p�blico jovem e imp�e uma vida dif�cil, cheia de restri��es (por exemplo, muita sensibilidade ao sol), estigma (por causa das cicatrizes) e cuidados f�sicos e psicol�gicos que o SUS n�o est� preparado para oferecer", diz o m�dico.
"� um trauma que fica na penumbra: o sequelado convive menos com a sociedade e � muito estigmatizado."
A experi�ncia de Daniel Moraes, ao deixar o hospital com m�scaras e roupas especiais para proteger a pele, corrobora isso. "As pessoas te olham e voc� se sente muito mal. A reinser��o social � muito dif�cil, (porque) o trauma � muito grande. Eu estava fazendo mestrado, come�ando minha carreira, e tudo precisou ser interrompido pelo acidente. Eu s� consegui (retomar a vida) porque tive o apoio de muitas pessoas, de muitos amigos."
Os desfechos podem, tamb�m, ser fatais: a SBQ calcula que o Brasil tenha acumulado 33 mil mortes por diferentes tipos de queimaduras entre 2011 e 2019.
O atraso no atendimento emergencial contribui para mortes ou a perda de membros, diz Adorno, uma vez que queimaduras mal cuidadas tendem a infeccionar.
"Enquanto os pa�ses desenvolvidos diminu�ram sua mortalidade por queimaduras para cerca de 3% dos casos, aqui nossa mortalidade �, em m�dia, de 8% a 10% dos casos", agrega.
Preven��o sai mais barato, econ�mica e socialmente

No Hospital da Restaura��o, no dia em que Marcos Barreto conversou com a reportagem, no final de outubro de 2021, os 15 leitos infantis da ala de queimados estavam ocupados. Outras cinco crian�as aguardavam vaga no corredor de emerg�ncia.
Os 25 leitos de adultos tamb�m estavam tomados, enquanto dois pacientes aguardavam na UTI e outros dois, na emerg�ncia.
Naquele mesmo dia, Barreto havia acabado de atender um paciente que havia ateado �lcool e fogo ao pr�prio corpo, em uma tentativa de suic�dio - casos que tamb�m se tornaram mais comuns na rotina do hospital em meio ao desalento da pandemia, de poss�veis efeitos psicol�gicos da covid longa (problema que ainda est� sendo estudado pela medicina) e da crise econ�mica, diz o m�dico.
Ele e sua equipe de 150 pessoas fazem em torno de 6 mil curativos em queimaduras todos os anos. "Parece uma guerra civil", retrata.
S� as queimaduras por �lcool, como a que matou Geisa Stefanini em Osasco e Ang�lica Rodrigues em S�o Vicente, resultaram em quase 23 mil interna��es em todo o pa�s entre 2012 e 2019, segundo a SBQ. Os custos estimados ao SUS s�o de R$ 73 milh�es, sem contar os preju�zos sociais e produtivos das v�timas.
Jos� Adorno cita um levantamento feito nos EUA apontando que cada US$ 1 investido em educa��o e preven��o de queimaduras gerou uma economia de US$ 27 em atendimento m�dico evitado.
"Cada dia de tratamento de uma queimadura em um centro avan�ado custa at� US$ 1 mil (R$ 5,5 mil na cota��o atual) e deixa para a sociedade uma pessoa cheia de sequelas e com dificuldades de reabilita��o", conclui o m�dico.
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