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Estado de Minas 7 DE SETEMBRO

Jos� Bonif�cio: como 'patriarca da Independ�ncia' teve projeto de pa�s rejeitado e acabou amargurado

Conhecido at� hoje pelo ep�teto de 'patriarca da Independ�ncia', ele ficou conhecido como um g�nio pol�tico que concebeu um projeto de na��o brasileira � frente de seu tempo, embora vis�es recentes relativizem sua primazia em alguns campos.


06/09/2022 22:14 - atualizado 07/09/2022 08:36


Retrato de José Bonifácio pelo pintor Benedito Calixto
Retrato de Jos� Bonif�cio pelo pintor Benedito Calixto (foto: Dom�nio P�blico)

Enquanto D. Pedro 1º, o grande art�fice da independ�ncia brasileira, tem uma reputa��o marcada pelas humilha��es p�blicas que imp�s � Imperatriz Leopoldina, pela fama (exagerada) de que lhe faltava sofistica��o intelectual, por seu temperamento explosivo e at� pelo folcl�rico epis�dio da disenteria no 7 de setembro, a imagem de outro personagem da proclama��o se sedimentou ao longo da hist�ria de uma maneira bem diferente.

Conhecido at� hoje pelo ep�teto de "patriarca da Independ�ncia", Jos� Bonif�cio ganhou destaque como um g�nio pol�tico que concebeu um projeto de na��o brasileira � frente de seu tempo.

H�, em sua trajet�ria, as defesas da luta abolicionista em meio a uma sociedade fortemente escravocrata, da amplia��o do acesso � educa��o para a popula��o e da avan�ada ideia de uma consci�ncia ambiental.

Vis�es mais recentes, no entanto, jogam luz sobre uma figura mais complexa. A carreira tida como brilhante na Europa � relativizada ap�s um exame mais demorado sobre sua passagem no continente.

O entusiasmo pelas ideias liberais e iluministas, em voga entre intelectuais do come�o do s�culo 19, se choca com epis�dios de posi��es antidemocr�ticas.

As origens

Jos� Bonif�cio de Andrada e Silva nasceu em Santos, em 1763, uma vila colonial decadente na �poca, com popula��o de pouco mais de 1.500 pessoas.

Foi batizado como Jos� Ant�nio (o Bonif�cio do pai seria incorporado ao seu nome apenas na cerim�nia de crisma) e cresceu em uma fam�lia de nove irm�os (uma d�cima irm� morreu ainda beb�). O pai tinha uma das maiores fortunas da regi�o: era dono de im�veis, terras e uma fazenda.

Aos 14 anos, foi para a cidade de S�o Paulo estudar aos cuidados de um frei. Um pouco mais tarde, empreenderia uma viagem ainda mais importante para a sua forma��o: seguiu rumo a Portugal em 1783 com objetivo de estudar direito e filosofia na Universidade de Coimbra.


Estátua de José Bonifácio no Rio de Janeiro em 1895
Est�tua de Jos� Bonif�cio no Rio de Janeiro em 1895 (foto: Getty Images)

Era um roteiro conhecido para os filhos da elite do Brasil col�nia. A maioria, por�m, retornava pouco depois da conclus�o dos estudos para assumir os neg�cios da fam�lia.

Jos� Bonif�cio demorou-se muito mais na Europa — e em tempos de particular efervesc�ncia no continente. A revolu��o francesa, em 1789, reverberaria por d�cadas nas ideias pol�ticas europeias.

Mas o Jos� Bonif�cio dessa arena s� ganharia proemin�ncia depois. Sua especializa��o intelectual nessa �poca se deu no ramo das ci�ncias naturais, mais especificamente a mineralogia. Havia raz�es pragm�ticas para isso.

Conhecer e saber diferenciar os min�rios e seus valores era de grande interesse a reis ou rainhas. E, para avan�ar em suas ambi��es na carreira cient�fica, o patroc�nio do Estado seria importante.

Passou por lugares como Alemanha, It�lia, Hungria, �ustria, Su�cia, Dinamarca e Noruega. Em seus escritos, anota��es sobre as caracter�sticas dos povos locais.

Segundo ele, alem�es se comportam nos teatros como "mortos, batem apenas um instante de palmas" e suecos "cuidam ser perfeitos e n�o tentam melhoria".

Longe de ser apenas um observador de costumes estrangeiros, Bonif�cio se destacou em sua �rea ao registrar quatro esp�cies minerais at� ent�o desconhecidas (espodum�nio, petalita, criolita e escapolita) e entrou num seleto grupo de mineralogistas que fizeram descobertas.

Mas, segundo a bi�grafa e historiadora Mary del Priore, autora de As Vidas de Jos� Bonif�cio (Esta��o Brasil, 2019) pouco prov�vel que tenha sido amigo de Alexander von Humboldt, um dos maiores nomes das ci�ncias naturais na hist�ria, como costuma-se contar na sua trajet�ria.

Suas andan�as pelo continente tamb�m serviram para acumular informa��es sobre as maneiras que as intend�ncias locais exploravam comercialmente suas minas.

Uma d�cada depois, j� aos 37 anos, voltou a Portugal. Teve grande proximidade com d. Rodrigo de Souza Coutinho, afilhado pol�tico (e de batismo) do outrora poderoso Marqu�s de Pombal. Coutinho liderava um projeto de moderniza��o do pa�s que tinha influ�ncia liberal.

Assim, Bonif�cio galgou posi��es tanto na Academia de Ci�ncias de Lisboa (onde chegou a secret�rio, o cargo m�ximo) quanto na administra��o do reino (ficou respons�vel pelo importante papel de gerenciar e aumentar a efici�ncia das minas e ferrarias de Portugal).

Protoecologista

Uma de suas marcas, segundo bi�grafos e historiadores, foi estender sua vis�o al�m da explora��o econ�mica e contemplar o desenvolvimento social dentro de um projeto de desenvolvimento.

A� tamb�m desponta a faceta hoje vista como de protoecologista. Defende em escritos o plantio de novos bosques em Portugal como parte do que hoje poderia ser entendido como sustentabilidade.


José Bonifácio retratado no quadro 'A Fundação da Pátria Brasileira' (1899), de Eduardo de Sá
Jos� Bonif�cio retratado no quadro 'A Funda��o da P�tria Brasileira' (1899), de Eduardo de S� (foto: Dom�nio p�blico)

"Jos� Bonif�cio era um cientista com a preocupa��o de dar aplica��o pr�tica a seus conhecimentos cient�ficos. Ainda em Portugal, esteve a cargo de administra��o e conserva��o de bosques e escreveu a respeito. Foi sem d�vida um pioneiro na preocupa��o com o que hoje se chama ecologia", diz o historiador e membro da Academia Brasileira de Letras Jos� Murilo de Carvalho.

"Autorit�rio e defensor da ecologia, se hoje vivesse, estaria pondo na cadeia os respons�veis pelos crimes ecol�gicos", complementa.

J� para a historiadora da USP e bi�grafa Miriam Dolhnikoff, autora de Jos� Bonif�cio (Companhia das Letras, 2012), essa vis�o era mais centrada numa busca por produtividade econ�mica.

"[Ele] denunciou em alguns dos seus escritos o uso irracional da natureza. Mas esta den�ncia tinha car�ter econ�mico. Para ele, o problema era o arca�smo da explora��o da terra, que comprometia a produtividade da agricultura e de outras atividades econ�micas", diz.

"� completamente anacr�nico falar em qualquer tipo de ambientalismo no Brasil do s�culo 19."

Agita��o na Europa

Os projetos e ambi��es de ascens�o na administra��o ap�s o retorno se chocaram com a burocracia portuguesa — algo que se agravou com a sa�da for�ada de D. Rodrigo. Dolhnikoff, em seu livro, aponta o peso de outro fator nessas dificuldades: a quantidade de cargos que Jos� Bonif�cio acumulou como funcion�rio p�blico.

Nesse meio-tempo, a agita��o no continente europeu crescia. Napole�o Bonaparte amea�ava invadir Portugal, que vivia sob a �rbita de influ�ncia dos ingleses, rivais da Fran�a.

Quando isso se concretizou, a fam�lia real portuguesa zarpou em mais de 30 navios para se instalar no Brasil, longe das for�as bonapartistas, mas Jos� Bonif�cio permaneceu em Portugal como parte da resist�ncia.

Ficou encarregado da f�brica de p�lvora na contraofensiva e, em fase posterior, assumiu o Servi�o de Seguran�a do Ex�rcito para combater a espionagem francesa e os colaboracionistas.

Passado o conflito e expulsos os franceses, as dificuldades no exerc�cio de suas fun��es na administra��o portuguesa permaneceram. Ele se queixava, por exemplo, da falta de estrutura como professor na Universidade de Coimbra. Mas as cr�ticas � vis�o lusitana das coisas tinha amplo escopo.

As frustra��es na metr�pole e a relev�ncia que o Brasil ganhou ao ser elevado a reino ajudaram a materializar finalmente o retorno tantas vezes ensaiado de Jos� Bonif�cio � terra-natal.

Aos 56 anos, embarcou em 1819 com a mulher e a filha mais nova, Gabriela. A mais velha, Carlota, j� casada, ficou em Portugal. Tamb�m seguia uma crian�a fruto de um relacionamento extraconjugal de Jos� Bonif�cio que foi batizada com o nome de sua esposa, Narcisa C�ndida.

Bi�grafos de diferentes �pocas detalham a partir dos pr�prios escritos de Bonif�cio o intenso interesse sexual pelas mulheres, em rela��es casuais ou visitas a bord�is.

H� frases dele que hoje n�o seriam aceitas: "As mulheres t�m sido a peste da minha vida — amo-as, mas n�o as estimo muito", anotou certa vez.

"A misoginia era uma caracter�stica da �poca. A virilidade fazia parte da constru��o social, daquilo que era respeitado num homem. O homem tinha que ser viril. Ele tinha e podia ter amantes. At� porque, em geral, casava-se dentro de uma rede de interesses", diz Mary del Priore.

Sem aposentadoria

Ap�s tr�s d�cadas e meia fora, Jos� Bonif�cio aporta em territ�rio brasileiro aparentemente disposto, como manifesta em cartas, a aproveitar a aposentadoria.

Mas logo retoma o seu trabalho cient�fico em viagens mineral�gicas ao lado do irm�o Martim Francisco — o outro, Ant�nio Carlos, estava preso no Nordeste por conta de seu envolvimento na revolu��o pernambucana de car�ter separatista em 1817.

E o esp�rito cr�tico que dedicava aos portugueses seguiu em plena forma com o que via no Brasil.


Visconde de Cairu e José Bonifácio em quadro de R. Nunes
Visconde de Cairu e Jos� Bonif�cio em quadro de R. Nunes (foto: Dom�nio p�blico)

Havia impress�es sobre ruas e caminhos em estado de desleixo que � "entretido e aumentado pelas ideias supersticiosas e fan�ticas que uma boa parte do clero da vila [de Itu, no interior paulista] prega ao povo, e que muitas vezes tem sido a causa de desuni�o das fam�lias, da corrup��o da mocidade e do afrouxamento do servi�o p�blico".

� nessas imedia��es que tamb�m v� com desgosto a situa��o dos �ndios, ainda alvo de traficantes, e o mecanismo de uma sociedade escravocrata.

"A sorte daqueles �ndios merece toda nossa aten��o [...] para que n�o ajuntemos ao tr�fico vergonhoso e desumano dos desgra�ados filhos d'�frica o ainda mais horr�vel dos infelizes �ndios de que usurpamos as terras, e que s�o livres n�o s� pela raz�o, mas, tamb�m, pelas leis."

Segundo Miriam Dolhnikoff, para Bonif�cio, "a escravid�o seria um obst�culo instranspon�vel para a constru��o do novo pa�s, em primeiro lugar porque seria necess�rio combater permanentemente um inimigo interno: a popula��o escravizada".

"Para garantir a ordem era preciso transformar escravos em cidad�os que compartilhassem o pertencimento � nova na��o. Em segundo lugar, a viol�ncia embutida na escravid�o incapacitava, segundo ele, os homens livres para o exerc�cio da cidadania. Uma elite que vivesse da explora��o violenta de homens e mulheres n�o seria capaz de entender o sentido da cidadania em um regime liberal."

A historiadora da USP lembra que "� importante ressaltar que a na��o e o Estado projetados por Bonif�cio deveriam refletir os interesses da elite branca a qual ele pertencia, a escravid�o assim, para ele, era um obst�culo para materializar os interesses mais amplos da elite".

Envolvimento na independ�ncia

Os ares de agita��o que se encresparam com movimentos independentistas no Brasil ficaram ainda mais densos com a revolu��o constitucionalista do Porto, de 1820, que exigia a volta do rei D. Jo�o 6° a Portugal e a reda��o de uma Constitui��o.

D. Jo�o, ap�s muitos adiamentos, cedeu e tomou o caminho de Lisboa, mas os portugueses estavam dispostos a reverter os privil�gios que o Brasil havia obtido como sede da fam�lia real.

Uma das exig�ncias era o retorno do pr�ncipe D. Pedro e, na pr�tica, uma anula��o da autonomia que a antiga col�nia havia conquistado.

Em meio a essa movimenta��o que desaguaria na independ�ncia, Jos� Bonif�cio, junto a seus irm�os (Ant�nio Carlos j� havia sido libertado), ganhou proemin�ncia na pol�tica paulista.

Participou da organiza��o das elei��es de deputados (mas n�o como candidato) para as Cortes de Lisboa que formulariam a nova Constitui��o.

Em determinado momento, ajudou a elaborar uma esp�cie de programa de governo para a prov�ncia em que destaca a import�ncia da educa��o.

Para ele, o desenvolvimento dependia de investir em educa��o para que "nunca faltem, entre as classes mais abastadas, homens que n�o s� sirvam os empregos, mas igualmente sejam capazes de espalhar pelo povo os conhecimentos, que s�o indispens�veis para o aumento, riqueza e prosperidade da na��o".

A intensa press�o para a volta de D. Pedro colocou Bonif�cio definitivamente no protagonismo do processo de independ�ncia.

No in�cio de 1822, envia uma carta ao pr�ncipe em que conclama que "vossa alteza real deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos das Cortes Constituintes, n�o s� para nosso bem geral, mas at� para a independ�ncia e prosperidade futura do mesmo Portugal".

Estava aberto caminho para o "fico" de D. Pedro.

Logo seria o in�cio de um relacionamento pr�ximo e tamb�m turbulento entre o jovem monarca e o experiente pensador pol�tico, de personalidades bem diferentes. Bonif�cio seria escolhido como o ministro do Reino e Neg�cios Estrangeiros.

Poucos anos depois do 7 de setembro e da proclama��o da independ�ncia, as pontes entre os dois ruiriam.

"A resist�ncia da maioria dos deputados lusitanos em Lisboa em aceitar um governo com autonomia no Rio de Janeiro e o medo da fragmenta��o da Am�rica acabou por desembocar na independ�ncia e neste processo D. Pedro e Bonif�cio caminharam juntos", diz Dolhnikoff.

"Contudo, havia diverg�ncias fundamentais no interior da elite brasileira. Bonif�cio defendia um projeto de reformas que considerava centrais para viabilizar o novo pa�s, entre elas o fim do tr�fico negreiro e a aboli��o gradual da escravid�o. Projeto rejeitado por praticamente toda a elite, que se articulou contra Bonif�cio, pressionando D. Pedro a demiti-lo do minist�rio."

Tempos finais

Em novembro de 1823, D. Pedro 1º fecha a constituinte na qual Bonif�cio tentava incorporar seu projeto de pa�s e � condenado ao ex�lio no sul da Fran�a.

L�, aparece um Bonif�cio amargurado e magoado pela trai��o do pupilo que ajudou a colocar no poder. "Estou t�o acabrunhado que suspeito �s vezes se deixei de ser animal racional. Estou em torpor, como os bichos da terra que s� vegetam no inverno".

Havia um gosto de derrota por n�o ter concretizado seus planos de dar a forma imaginada a uma nova na��o.

Sustentava-se na Fran�a com uma pens�o paga pelo governo brasileiro que dizia ser insuficiente e paga com atraso. Sofria tamb�m com problemas de sa�de e o desejo de voltar a uma Am�rica com temperaturas mais elevadas.

O retorno ao Brasil se d� quando � nomeado tutor de D. Pedro 2º depois da abdica��o do trono brasileiro pelo pai. Novamente, Bonif�cio entra em choque com a classe pol�tica de ent�o, � destitu�do da tutoria e colocado em pris�o domiciliar na ilha de Paquet� - em mais um ostracismo.

Morreu em 1838, aos 74 anos, uma idade bastante avan�ada para a �poca.

"A trajet�ria de Jos� Bonif�cio foi mitificada uma vez que foi al�ado � figura de patriarca da independ�ncia. Defendia reformas profundas, mas as defendia porque considerava que eram imprescind�veis para a viabilidade da na��o e do Estado. No entanto, era um homem da elite branca do s�culo 19", afirma Dolhnikoff.

"Jos� Bonif�cio n�o era, nem pretendia ser, um liberal e um democrata, mas era, sem d�vida, um estadista de grande vis�o e um defensor do progresso", diz Jos� Murilo de Carvalho.

- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62669105

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