
O Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou na ter�a-feira (18/4) a extradi��o de um colombiano que matou a namorada e se escondeu no Brasil por quase 30 anos.
A Segunda Turma do STF decidiu por maioria de votos pela extradi��o de Jaime Enrique Saade Cormane. Na conclus�o do julgamento, o ministro Nunes Marques apresentou voto de desempate, e o ministro Edson Fachin mudou seu voto, que era originalmente contra a extradi��o.
Ambos acompanharam o relator, ministro Gilmar Mendes, para aceitar a solicita��o apresentada pelo governo colombiano.
Em 2020, a Corte havia negado a extradi��o e soltado da cadeia Jaime Saade, condenado a 27 anos de pris�o na Col�mbia pela morte e estupro de Nancy Mestre, que tinha apenas 18 anos quando foi morta em 1994.
O caso chocou a Col�mbia e envolveu uma busca de 26 anos do pai da jovem pelo assassino da filha.
Ap�s o assassinato, Jaime fugiu da cidade de Barranquilla para o Brasil, onde se fixou com nome e documentos falsos. Em Belo Horizonte, passou a viver uma vida confort�vel sob o nome de Henrique dos Santos Abdala. Ele se casou com uma brasileira e teve dois filhos no Brasil.Mas a busca incans�vel de Mart�n Mestre, pai de Nancy, pelo assassino da filha interrompeu os planos de Jaime. Ap�s investigar o paradeiro do ex-genro por mais de duas d�cadas, anos, ele o localizou no Brasil e deu as coordenadas � Interpol, que prendeu Jaime Saade em 2020.
Naquele mesmo ano, o Supremo soltou o colombiano e negou a extradi��o com o argumento de que o crime de homic�dio havia prescrito no Brasil.
Na ocasi�o, o placar foi de empate — um dos ministros, Celso de Mello, estava ausente � sess�o em licen�a m�dica. Em vez de aguardar o voto de Celso de Mello, os ministros decidiram aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decis�o que beneficia o r�u.
Com isso, Jaime Saade p�de ficar no Brasil, sem puni��o pela morte de Nancy Mestre. O governo da Col�mbia, que havia pedido a extradi��o, n�o recorreu, considerando que n�o haveria mais chances de trazer Jaime para o pa�s. Com isso, a decis�o transitou em julgado.
Mas o pai da jovem n�o desistiu. Entrou ele pr�prio com uma a��o rescis�ria, apelando para o tribunal rever a decis�o.

Havia a possibilidade de o recurso ser inadmitido sem que os ministros analisassem o pedido, porque Mart�n n�o era parte no processo de extradi��o, mas sim o governo da Col�mbia.
No entanto, numa reviravolta, o relator, ministro Alexandre de Moraes, considerou que o pai da jovem tinha, sim, o direito de entrar com a a��o rescis�ria e votou a favor de rever a decis�o que impediu a extradi��o.
Para ele, diante do empate, a Corte deveria ter aguardado o voto do ministro que estava ausente � sess�o, em vez de ter optado por negar a extradi��o. Outros seis ministros acompanharam o voto de Moraes: Andr� Mendon�a, Edson Faquin, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, C�rmen L�cia e Rosa Weber.
Outros tr�s ministros — Nunes Marques, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — discordaram e votaram por manter a decis�o de negar a extradi��o.
Em 26 de julho deste ano, a a��o penal por homic�dio contra Jaime vai prescrever na Col�mbia. Se ele n�o for extraditado at� esta data, n�o poder� mais ser preso.
Mas quais os detalhes desse crime que chocou a Col�mbia e que foi parar na Justi�a brasileira? E como Jaime Saade conseguiu ficar tanto tempo no Brasil sem ser descoberto?
O crime
Nancy, filha mais nova de Mestre, queria ser diplomata e se mudar da Col�mbia para os Estados Unidos para cursar a faculdade. "Era uma menina alegre, muito estudiosa. Vivia lendo. Queria estudar Direito Internacional e diplomacia", conta Mart�n.
Mas todos os planos da jovem de 18 anos foram interrompidos na madrugada do dia 1° de janeiro de 1994. Nancy, o pai, a m�e e o irm�o brindaram o novo ano em casa.
Pouco depois da meia-noite, Mart�n se despediu da filha, que pediu para continuar a comemora��o de Ano Novo com o namorado, Jaime Saade. O rapaz havia ido busc�-la em casa. "Volte antes das 3h da manh�", pediu Mart�n � filha. "Cuide bem dela", pediu ele a Jaime.
�s 6h, Mart�n acordou sobressaltado. "Assim que acordei j� pressenti algo", conta. Ele foi procurar Nancy pela casa e encontrou o quarto dela vazio.
Saiu pelas ruas da cidade, entrando em discotecas para ver se o casal de jovens estava l�, mas n�o os encontrou. A ansiedade foi aumentando e, enquanto perguntava pela filha a quem via pela rua, rezava em sil�ncio para que ela aparecesse s� e salva.
Por fim, decidiu ir at� a casa dos pais de Jaime, onde o rapaz tamb�m morava. L�, se deparou com a m�e dele limpando o ch�o. "Estava escuro e n�o me dei conta, naquele momento, que eu estava pisando no sangue da minha pr�pria filha. E que a m�e do assassino estava violando a cena de um crime."
"A sua filha sofreu um acidente e est� na Cl�nica del Caribe", disse a mulher.
Mart�n correu para o hospital e l� encontrou o pai de Jaime. "Sua filha tentou se suicidar e est� na sala de cirurgia." Na sala de atendimento de emerg�ncia, m�dicos tentavam estabilizar o quadro de sa�de de Nancy, que estava em coma.
A jovem havia sido levada ao hospital por Jaime, o pai dele e uma mulher que tamb�m morava na casa da fam�lia. Eles enrolaram Nancy, que estava nua, num len�ol e a colocaram na ca�amba de uma caminhonete.
"Foi aos poucos que eu comecei a organizar na minha cabe�a o que tinha acontecido. Ela foi violentada, maltratada e foi jogada na ca�amba de uma caminhonete. Eu disse: 'Meu Deus, o que fizeram com a minha filha!'", lembra Mart�n.
Oito dias de agonia no hospital se seguiriam. A jovem nunca mais recobrou a consci�ncia. "Os m�dicos me avisaram que ela iria partir. Eu, a m�e de Nancy e nosso outro filho, Mart�n, nos reunimos no quarto do hospital e ficamos orando e cantando m�sicas que ela gostava de ouvir quando crian�a", conta.
De repente, o cora��o dela parou de bater.
A fuga
Enquanto os pais de Nancy sofriam no hospital e a pol�cia investigava o que havia acontecido com a jovem naquele dia 1° de janeiro, o principal suspeito do crime, Jaime Saade, fugia da Col�mbia.
"Jaime iniciou a fuga no mesmo dia do assassinato e nunca mais foi visto no pa�s", diz Mart�n. A pol�cia descartou a tese de suic�dio. Nancy morreu com um tiro na cabe�a, que entrou pela t�mpora direita.

Resqu�cios de p�lvora foram encontrados na m�o esquerda dela, um indicativo, segundo as autoridades colombianas, de que ela tentou se defender. A jovem era destra e precisaria ter feito um movimento muito improv�vel, segundo a pol�cia, para acertar a t�mpora direita carregando a arma com a m�o esquerda.
A investiga��o concluiu que Nancy havia sido violentada. Ela tinha ferimentos pelo corpo e, nas unhas quebradas, havia restos de pele - outro sinal de que tentou se defender. Em 1996, dois anos depois da morte da jovem, um tribunal da Col�mbia condenou Jaime Saade a 27 anos de pris�o por homic�dio e estupro.
Segundo a decis�o da justi�a colombiana, ap�s violentar e atirar na cabe�a de Nancy, Jaime teria se desesperado e pedido ajuda ao pai. Eles enrolaram o corpo nu da jovem num len�ol e a levaram para o hospital. O pai de Jaime ficou na cl�nica, enquanto o filho se escondia.
Daquele momento em diante, o foco da vida de Mart�n se tornou encontrar Jaime, uma ca�ada que duraria 26 anos. "Eu sabia que poderia demorar, mas sempre soube que encontraria o assassino da minha filha."
As investiga��es
Desde a condena��o de Jaime Saad, Mart�n passou a cobrar mensalmente das autoridades respostas sobre as investiga��es e estabeleceu contatos com a Interpol para compartilhar informa��es que ele pr�prio encontrava.
A morte de Nancy mudou para sempre o destino da fam�lia. Mart�n e a esposa se separaram. O �nico filho vivo do casal se mudou para os Estados Unidos.
E Mart�n, que � arquiteto e professor, concentrou quase todo o seu tempo e energia na busca por Jaime. Ele ingressou em cursos de intelig�ncia e resgatou conhecimentos que aprendera quando era oficial da Marinha para usar nos seus esfor�os de investiga��o.
"Eu criei quatro personagens fict�cios, dois homens e duas mulheres, e passei a estabelecer contato nas redes sociais com familiares de Jaime para ganhar confian�a e obter informa��es que pudessem me levar a ele", contou � BBC News Brasil.

Mart�n repassava para a pol�cia colombiana e a Interpol cada detalhe que conseguia obter. Ao longo dos 26 anos de busca, v�rios delegados diferentes assumiram o caso. "Cada vez que o respons�vel pela investiga��o mudava, eu ia at� l� com todos os documentos para colocar a pessoa a par de tudo."
Das conversas que estabeleceu com familiares de Jaime, usando os perfis fict�cios, Martin encontrou duas pistas que o levaram a crer que Jaime poderia estar em territ�rio brasileiro.
Primeiro, descobriu que um irm�o de Jaime mora no Brasil. Depois, desconfiou da men��o frequente da fam�lia do rapaz � localidade de Santa Marta. Santa Marta � uma cidade costeira da Col�mbia, com uma praia chamada Bello Horizonte.
A investiga��o dele chegou, por fim, � conclus�o de que Jaime poderia estar na cidade brasileira de Belo Horizonte, n�o em Santa Marta, na Col�mbia. De posse dessas informa��es, a Pol�cia Federal brasileira e a Interpol localizaram uma pessoa com perfil similar ao de Jaime Saade.
A pris�o
Os policiais seguiram o suspeito at� um caf� e, depois que ele saiu do estabelecimento, coletaram o copo que ele usou para beber. Queriam verificar se as digitais batiam com as do colombiano condenado pelo assassinato de Nancy. Eram id�nticas.
Ao abordarem Jaime, ele apresentou documentos falsos e disse se chamar Henrique dos Santos Abdala. Vivia uma vida tranquila em Belo Horizonte, com a esposa brasileira e dois filhos crescidos. Foi preso pela PF e passou a responder no Brasil por crime de falsidade ideol�gica.
Pouco depois, o governo da Col�mbia entrou com pedido de extradi��o para que Jaime pudesse cumprir a pena de 27 anos no pa�s.
"Quando o diretor da Interpol me ligou para contar da pris�o, eu me ajoelhei no ch�o e comecei a agradecer a Deus. Meu Deus! Depois de quase 27 anos vai haver justi�a", conta.
"Telefonei ao meu outro filho, Mart�n, que vive nos Estados Unidos, e � m�e dele, que hoje mora na Espanha, e todos come�amos a chorar." Para Mart�n, seria quest�o de meses at� Jaime come�ar a cumprir a pena na Col�mbia. S� faltava a autoriza��o do Supremo para a extradi��o.
Mas algo muito diferente do que ele esperava aconteceu.
No dia 28 de setembro de 2020, Mart�n recebeu um telefonema de um advogado. O Supremo havia decidido n�o extraditar Jaime porque o crime que ele cometeu havia prescrito no Brasil - o prazo para prescri��o da pretens�o punitiva naquele caso, um assassinato, era de 20 anos. Jaime fora encontrado 26 anos depois da morte de Nancy.
Mas o julgamento no STF n�o foi por maioria, foi um empate. Duas interpreta��es dividiram os ministros presentes. A lei brasileira veda a extradi��o se o crime tiver prescrito no Brasil. Mas a legisla��o tamb�m diz que, se a pessoa cometer outro crime posteriormente, o prazo de prescri��o do primeiro se interrompe.
Jaime havia cometido crime de falsidade ideol�gica e falsifica��o de documentos, j� que para viabilizar a fuga, adotou nome e documentos falsos.
Os ministros Gilmar Mendes e C�rmen L�cia entenderam que ele poderia ser extraditado, porque a suspens�o da prescri��o vale, na vis�o deles, a partir do cometimento do segundo crime.
J� Edson Fachin e Ricardo Lewandowski votaram por n�o extraditar Jaime, com o argumento de que a suspens�o da prescri��o s� ocorre ap�s condena��o e tr�nsito em julgado do segundo crime.
"Meu cliente, o Jaime, n�o tinha nem sido denunciado pelo Minist�rio P�blico na �poca que o Supremo estava julgando o caso. A prescri��o (da puni��o para o crime de homic�dio) ocorreu no Brasil em 2016 e ele s� foi denunciado por crime de falsidade em 2021, portanto seis anos depois da prescri��o", disse � BBC News Brasil o advogado de Jaime, Fernando Gomes de Oliveira.
O ministro Celso de Mello, que poderia desempatar o julgamento, n�o estava presente no dia. O tribunal, ent�o, decidiu aplicar uma regra do Direito Penal segundo a qual, em caso de empate, vale a decis�o que beneficia o r�u. Com isso, Jaime Saade p�de ficar no Brasil, sem qualquer puni��o pela morte de Nancy Mestre.
Para Mart�n, ap�s 26 anos de busca incessante por Jaime Saade, tudo se resolveu "como se fosse uma partida de futebol". "Como � que permitem que uma decis�o importante como essa, onde se est� discutindo justi�a ou impunidade, seja decidida por empate, como se fosse um jogo de futebol?", questiona.
A decis�o foi revertida nesta ter�a-feira e os ministros brasileiros decidiram que o colombiano ser� extraditado.
