
Ainda n�o chegamos � metade do ano, mas o Cerrado j� atingiu um novo recorde de desmatamento, tanto no m�s de maio quanto no acumulado anual, da s�rie hist�rica, iniciada em 2019.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre janeiro e maio deste ano foram desmatados mais de 3.320 km² do bioma, um aumento de 27% em rela��o ao mesmo per�odo do ano passado.
Para compara��o, esse territ�rio desmatado nos primeiros cinco meses de 2023 equivale a quase duas vezes a �rea total da cidade de S�o Paulo.
A realidade n�o � nova. Em 2022, a ecorregi�o j� havia registrado a maior taxa de desmatamento em sete anos: foram 10.689 km², segundo os dados oficiais divulgados pelo Prodes Cerrado, programa de monitoramento do Inpe.
Ao todo, 110 milh�es de hectares do bioma (49% do total) j� foram destru�dos, sendo substitu�dos pelo cultivo extensivo de commodities agr�colas, principalmente soja, milho, cana-de-a��car e algod�o, ou usado para extra��o de mat�rias-primas voltadas � produ��o industrial.
Enquanto o Cerrado bateu recordes de destrui��o nos primeiros cinco meses de 2023, o desmatamento na Amaz�nia Legal caiu 31% na compara��o com o mesmo per�odo do ano passado.Foram 1.986 km² de �rea desmatada entre janeiro e maio. Em termos absolutos, esse total representa quase metade do que foi registrado no Cerrado, sendo que a floresta no norte do Brasil tem quase o dobro da �rea da regi�o sav�nica.
Especialistas afirmam que � necess�rio cautela ao interpretar os dados de desmatamento em �pocas de chuva, j� que a alta cobertura de nuvens pode aumentar o tempo de detec��o dos alertas de desmatamento. Ainda assim, todos afirmam que a situa��o � preocupante.
A devasta��o da vegeta��o nativa para uso da terra por atividades de agricultura, pecu�ria e minera��o preocupa especialmente por suas consequ�ncias brutais para a din�mica h�drica nacional e no cone sul do continente e, consequentemente, na produ��o de alimentos na regi�o.

“O Cerrado � o bioma mais amea�ado do Brasil e talvez um dos mais amea�ados do mundo”, diz Yuri Salmona, ge�logo e diretor executivo do Instituto Cerrados, que explica que, por muitos anos, a Mata Atl�ntica esteve sobre grande risco, mas nas �ltimas d�cadas foi alvo de fortes esfor�os de conserva��o, ao contr�rio da �rea de savana.
Segundo o pesquisador, � no per�odo entre maio e junho que costumam ser registradas as maiores taxas de desmatamento no Cerrado, por conta do clima. “Ainda estamos entrando nesse per�odo, o que significa que podemos esperar n�meros ainda piores nos pr�ximos meses.”
Legisla��o e �reas de conserva��o
Segundo os especialistas consultados pela BBC News Brasil, grande parte da discrep�ncia entre os n�meros mais recentes de desmatamento no Cerrado e na Amaz�nia pode ser explicada por leis mais permissivas na �rea de savana.Embora seja o segundo maior bioma da Am�rica do Sul, o Cerrado � o que tem a menor porcentagem de �reas sobre a prote��o integral no pa�s.
Enquanto o C�digo Florestal protege 80% da mata localizada em �reas privadas na Amaz�nia contra o desmatamento, as reservas legais cobrem apenas de 20% a 35% do Cerrado. Ou seja, a lei estabelece uma propor��o quase oposta para os dois biomas.
Ao mesmo tempo, apenas 8,21% da �rea total da savana � legalmente protegida com unidades de conserva��o (UCs), contra quase metade da floresta do norte.
“Historicamente, o Cerrado foi escolhido para morrer”, diz a ecologista Ros�ngela Azevedo Corr�a, professora da Universidade de Bras�lia (UnB) e diretora do Museu do Cerrado, que classifica ainda a legisla��o como “desastrosa” para a ecorregi�o.

A especialista afirma que uma legisla��o mais permissiva no Cerrado em rela��o � Amaz�nia tamb�m n�o faz sentido do ponto de vista cient�fico, j� que as duas �reas est�o fortemente relacionadas e dependem uma da outra para sobreviver.
“Todos os rios da margem direita do Amazonas dependem da �gua das entranhas do Cerrado”, diz. “Se o Cerrado morrer, metade da Amaz�nia morre junto.”
O ge�logo Yuri Salmona diz ainda que � preciso pensar em pol�ticas p�blicas para Amaz�nia e Cerrado juntos.
“Mais de 80% do desmatamento no pa�s acontece nesses dois biomas e a regi�o onde se encontram os maiores �ndices de desmatamento da Amaz�nia Legal compreende o bioma Cerrado, apesar de estar localizada na Amaz�nia”, afirma.
“Criar pol�ticas p�blicas separadas pode deslocar o desmatamento de um bioma para o outro, pois os respons�veis pela destrui��o buscam novas �reas para seguir com seus neg�cios.”
Iniciativas de preserva��o e vontade pol�tica
H� ainda, segundo os pesquisadores ouvidos pela reportagem, mais iniciativas voltadas para a prote��o da Amaz�nia do que para o Cerrado, apesar da situa��o mais urgente da �rea de savana.
"Sabemos que o novo governo Lula ainda est� se estruturando e lidando com a falta de estruturas e o desmonte promovido pelo governo anterior, mas at� o momento se priorizou muito mais a Amaz�nia do que o Cerrado”, diz o diretor executivo do Instituto Cerrados.
“Temos esperan�as de que isso possa mudar, mas precisamos de demonstra��es dessa vontade pol�tica logo.”

O ge�logo afirma tamb�m que os n�meros alarmantes dos �ltimos meses podem ser uma resposta de agricultores e pecuaristas ao novo governo, algo como uma “corrida” pelo desmatamento antes que novos mecanismos de prote��o sejam instalados.
J� Ros�ngela Azevedo Corr�a v� as indica��es dos ex-governadores Rui Costa (Bahia) e Fl�vio Dino (Maranh�o) para, respectivamente, ministro da Casa Civil e ministro da Justi�a, como um ato simb�lico do governo do presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT).
“Bahia e Maranh�o s�o dois dos Estados onde mais se continua destruindo o Cerrado e, ainda assim, dois ex-governadores foram nomeados ministros”, diz. “� por isso que do ponto de vista pol�tico, os dados de desmatamento recentes n�o surpreendem tanto.”
Dados do Inpe classificam os Estados do Tocantins e de Goi�s como os respons�veis pelo maior incremento de desmatamento acumulado nos �ltimos 20 anos. Eles s�o seguidos por Maranh�o, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia.
“A invisibilidade do Cerrado se tornou pol�tica p�blica no Brasil, infelizmente”, diz Corr�a.
A professora da UnB acredita ainda que h� falta de conhecimento da sociedade brasileira sobre o Cerrado e sua situa��o delicada, o que colabora para uma certa prioriza��o da Amaz�nia em detrimento da savana.
“A popula��o n�o conhece o Cerrado e, portanto, n�o luta para defend�-lo”, diz.
“Em uma de minhas pesquisas analisei 20 livros did�ticos utilizados nas escolas de Ensino Fundamental do Distrito Federal e, quando muito, eles trazem uma p�gina sobre o Cerrado, com uma ou outra foto do Lobo-guar� e do Ip�-amarelo”.
Outro ponto levantado por especialistas � o fato do Cerrado n�o ser patrim�nio nacional do Brasil, como a Amaz�nia, a Mata Atl�ntica, a Serra do Mar, o Pantanal e a Zona Costeira.
Uma proposta de emenda para alterar a Constitui��o Federal e incluir o Cerrado e a Caatinga na lista de patrim�nios est� h� 13 anos em tramita��o no Congresso. A PEC passou em janeiro de 2023 pela Comiss�o de Constitui��o e Justi�a (CCJC) da C�mara dos Deputados e est� pronta para ser votada em Plen�rio.
“O fato do Cerrado n�o ser patrim�nio enquanto quase todos os outros s�o � um sinal da predile��o do Estado brasileiro, que reflete nas pol�ticas nacionais”, diz a bi�loga Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA).
Aten��o internacional
Outro ponto apontado como significativo pelos pesquisadores � o baixo interesse despertado pela preserva��o do Cerrado fora do Brasil, especialmente quando comparado � aten��o recebida pela Amaz�nia.
“L�deres internacionais quando v�m ao Brasil s� visitam a Amaz�nia”, diz Ros�ngela Azevedo Corr�a, que cita as doa��es ao Fundo Amaz�nia, destinado � prote��o e desenvolvimento da regi�o, como consequ�ncia positiva da fama desse bioma no resto do mundo.
“Mas o governo brasileiro decidiu destinar apenas 20% do fundo para os demais biomas brasileiros. Ou seja, cinco biomas tendo que dividir essa parcela”.

Nurit Bensusan afirma que o interesse despertado e as campanhas massivas realizadas pela Amaz�nia por vezes deslocam as atividades econ�micas - e consequentemente o desmatamento - para o Cerrado, j� que os produtores e pecuaristas passam a buscar outras regi�es para se desenvolver.
“Costumo dizer que o Cerrado � um bioma azarado, porque est� no pa�s com a maior floresta tropical do mundo, um dos ambientes mais devastados, que � a Mata Atl�ntica, e a maior plan�cie �mida do planeta, o Pantanal”, diz.
Yuri Salmona cita ainda a atual legisla��o europeia que pro�be a venda no continente de produtos oriundos de desmatamento em florestas, mas permite a comercializa��o do que � fruto da destrui��o do Cerrado, como exemplo da falta de apoio ao bioma.
A norma aprovada pela Uni�o Europeia (UE) em abril deste ano estipula que qualquer cultura que utilize local onde houve desmatamento ilegal, como na Amaz�nia, sofrer� san��es de compra pelos pa�ses dao bloco.
A regulamenta��o oferece prote��o � Amaz�nia, � Mata Atl�ntica e ao Chaco, os biomas tipicamente florestais da Am�rica do Sul, mas n�o trata do Cerrado.
“O Brasil precisa impulsionar acordos internacionais espec�ficos que pro�bam, por exemplo, o consumo de soja e outros produtos agropecu�rios que venham do desmatamento do Cerrado ou pelo menos pleitear uma revis�o da lei aprovada na Uni�o Europeia”, diz. “N�o faz sentido s� importar as solu��es usadas para a Amaz�nia.”
Abastecimento h�drico e produ��o de alimentos
Segundo especialistas, a destrui��o do Cerrado pode impactar diretamente na biodiversidade e no abastecimento h�drico n�o s� do Brasil, como de outros pa�ses na regi�o do Cone Sul.
O bioma � conhecido como "ber�o das �guas" por sua enorme capacidade de abastecimento. Oito das 12 principais bacias hidrogr�ficas brasileiras — como as dos rios S�o Francisco e Paran� — nascem no territ�rio do Cerrado, que � tamb�m o segundo maior bioma do pa�s, s� atr�s da Amaz�nia.
“O Cerrado funciona com um distribuidor de �guas para v�rias bacias hidrogr�ficas. Mas o processo de armazenamento e distribui��o h�drico depende da intera��o entre atmosfera, vegeta��o e solo”, explica Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Bras�lia (UnB).
Segundo a bi�loga, que � hoje uma das principais refer�ncias no bioma Cerrado, al�m do impacto nas �guas superficiais, a altera��o da cobertura de vegeta��o tem efeito direto tamb�m no retorno de �gua para atmosfera pela transpira��o das plantas.
“� por isso que diversos estudos consecutivos apontam que o Cerrado como um todo est� se tornando mais seco e mais quente”, afirma.
"Estamos cortando v�rias conex�es que fazem o sistema funcionar produzindo �gua para outros biomas.
Uma pesquisa realizada por Yuri Salmona com o apoio do Instituto Sociedade, Popula��o e Natureza (ISPN), mostrou que os rios do Cerrado perderam 15,4% de sua vaz�o de �gua por causa do desmatamento e das mudan�as clim�ticas entre 1985 e 2022.
A perspectiva de futuro tamb�m n�o � nada animadora: um ter�o do volume de �guas (34%) tende a ser perdido at� 2050 caso a destrui��o do bioma continue no ritmo atual.

E interferir no ciclo hidrogr�fico da regi�o significa n�o s� diminuir a oferta de �gua que chega nas torneiras da popula��o brasileira, mas tamb�m de pa�ses como Argentina, Paraguai e Uruguai, segundo especialistas.
Isso porque o Cerrado � componente importante para o ecossistema do Rio Paran�, que � tamb�m o principal curso de �gua formador da Bacia do Prata, a segunda maior da Am�rica do Sul e a quinta maior do mundo, com aproximadamente 3,1 milh�es km².
Compartilhada por Brasil, Argentina, Bol�via, Paraguai e Uruguai, estima-se que cerca de 50% da popula��o desses cinco pa�ses se concentre em seu territ�rio.
Al�m disso, a bacia ainda alimenta o Aqu�fero Guarani, um reservat�rio subterr�neo capaz de abastecer v�rias cidades no Brasil, na Argentina e no Uruguai.
"De 1985 para c�, n�s perdemos 19,7 mil metros c�bicos de �gua por segundo nas bacias analisadas, o equivalente � vaz�o do rio Paran�. � como se tiv�ssemos jogado fora o rio Paran� inteiro nesse per�odo", explicou Salmona � BBC Brasil.
“Os aqu�feros n�o se det�m nas fronteiras. Ou seja, o impacto � de toda uma regi�o do continente sul-americano”, diz Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA).
Os profissionais consultados pela reportagem afirmam ainda que o desmatamento do Cerrado e a diminui��o da vaz�o da rede h�drica t�m efeito direto na produ��o de alimentos em todas as �reas afetadas.
Al�m da depend�ncia da �gua para irriga��o das planta��es, a agricultura e a pecu�ria s�o diretamente impactadas pela instabilidade clim�tica e pela contamina��o por agrot�xicos e outros res�duos deixados pelas atividades econ�micas.
“� medida em que se desmata para cria��o de novas �reas de agricultura, o clima e a produ��o de chuvas se tornam mais err�ticos e a temperatura mais alta, alterando as condi��es que s�o importantes para a produ��o de alimentos”, diz Mercedes Bustamante.
E o Cerrado � considerado por muitos atualmente o “pilar da agricultura brasileira”.
Sozinho, o Brasil alimenta 900 milh�es de pessoas por ano atualmente. O pa�s tem hoje 79 milh�es de hectares em �reas plantadas, dos quais 36 milh�es s�o dedicados � soja. Metade desse total est� no Cerrado, onde o cultivo de soja avan�ou sobre 16,8 milh�es de hectares nos �ltimos 36 anos.
“Desmatar o Cerrado � um tiro no p� do pr�prio setor agr�cola”, resume Bustamante.
Biodiversidade

O Cerrado tamb�m tem um imenso valor para a diversidade de esp�cies.
A ecorregi�o � respons�vel por um ter�o da biodiversidade do pa�s, com mais de 11 mil esp�cies identificadas de plantas, al�m de 837 esp�cies de aves, 185 de r�pteis, 194 de mam�feros, 150 de anf�bios e 14.425 de invertebrados.
Por tudo isso, � considerada a forma��o sav�nica mais biodiversa do planeta, compreendendo cerca de 5% do total da biodiversidade mundial.
Mas um estudo publicado em 2017 na revista Nature mostrou que, se a trajet�ria de desmatamento do bioma continuasse como naquele momento e nenhuma grande mudan�a de pol�tica p�blica fosse implementada, uma extin��o massiva de esp�cies poderia estar no horizonte.
Por fim, o Cerrado tem ainda uma capacidade incr�vel de estocar carbono em suas ra�zes profundas e no solo. Desmatar a sua vegeta��o, portanto, significa imediatamente emitir uma quantidade enorme de g�s carb�nico e metano.
Atualmente, segundo Yuri Salmona, o desmatamento no Cerrado j� emite mais CO2 que toda a ind�stria brasileira.
O que diz o governo?
� BBC News Brasil, o Secret�rio Extraordin�rio de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial do Minist�rio do Meio Ambiente, Andr� Lima, afirmou que houve um aumento m�dio de 100% nas a��es de autua��o e fiscaliza��o ambiental realizadas pelo Ibama em todos os biomas do pa�s.
Segundo ele, a fiscaliza��o acontece “em um ritmo e volume muito mais intenso do que no mesmo per�odo do ano passado” apesar do “sucateamento do Ibama pela gest�o anterior”.
Lima disse tamb�m que uma parte importante dos casos de desmatamento em Estados onde o Cerrado est� concentrado, como por exemplo a Bahia, foram registrados no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural, cuja fiscaliza��o � feita pelos governos estaduais.
“Estamos requerendo estas informa��es a todos os Estados, com foco no Cerrado, para entender o que � desmatamento legal e o que � ilegal e poder estruturar as pr�ximas a��es”, afirmou.
O secret�rio tamb�m disse que o governo trabalha a partir do que � estabelecido pela lei federal em vigor desde 2012, sobre a qual n�o tem controle.
Al�m disso, segundo Lima, o governo planeja o PPCerrado, um plano de a��o dedicado exclusivamente ao bioma e elaborado a partir de uma iniciativa de consulta � sociedade civil e � Academia.

O secret�rio afirmou tamb�m � BBC Brasil que n�o tem conhecimento de iniciativas do governo brasileiro para influenciar a legisla��o europeia. “N�o queremos que nenhum parlamento europeu se mobilize para mudar a legisla��o nacional, ent�o n�o faremos o inverso”, disse.
“A obriga��o do Estado brasileiro � implementar a legisla��o de prote��o da vegeta��o nativa no Brasil, que � o nosso C�digo Florestal. E vamos fazer isso sem preju�zo aos mecanismos e instrumentos econ�micos que possam estimular o n�o desmatamento de �reas pass�veis de supress�o pela legisla��o em vigor”, afirmou.
Segundo Lima, esse � o grande desafio para que se atinja a meta de desmatamento zero at� 2030 assumida pelo Brasil.