
Arque�logo amador, o padre franc�s Louis Duchesne (1843-1922), fil�logo, professor e historiador do cristianismo, anunciou uma descoberta impressionante em 1878, resultado de suas andan�as por s�tios ligados � hist�ria dos primeiros crist�os.
Tratava-se de uma inscri��o encontrada em uma pedra localizada nas ru�nas de uma igreja na antiga Calced�nia — atualmente parte de Istambul, na Turquia —, reconhecida tradicionalmente como o primeiro templo constru�do e consagrado em honra ao “mart�rio de S�o Crist�v�o”.
O texto dizia que “com Deus foi lan�ada a pedra fundamental do mart�rio de S�o Crist�v�o”, e trazia algumas informa��es de datas e nomes de autoridades da �poca — entre elas, o imperador romano Teod�sio 2º (401-450).
Isso permitiu duas conclus�es, segundo os estudiosos. A primeira delas, e mais importante, era a comprova��o hist�rica da exist�ncia desse santo, sobre quem pouco se sabe. Ou, ao menos, a comprova��o de que a venera��o a sua mem�ria � algo extremamente antigo dentro da hist�ria do cristianismo.
A segunda conclus�o foi que essa igreja teria sido erguida entre maio de 449 e setembro de 452.Em entrevista � BBC News Brasil, o escritor e te�logo J. Alves, pesquisador de hist�ria de santos, diz que embora “n�o haja consist�ncia hist�rica” para comprovar que Crist�v�o “tenha de fato existido”, ao mesmo tempo “n�o se pode negar sua exist�ncia” naqueles primeiros s�culos do cristianismo. Alves � autor de, entre outros livros, Os Santos de Cada Dia (Editora Paulinas).
“O fato de ser venerado ao longo dos tempos como grande m�rtir impulsionou narrativas edificantes na Idade M�dia, misturando lendas e realidades”, comenta ele.
Fato � que seu nome sobreviveu aos s�culos e, mesmo sem muitas informa��es biogr�ficas a respeito dele, S�o Crist�v�o seguiu sendo um santo muito popular entre os devotos.
Como ele � considerado o padroeiro dos motoristas, � comum que par�quias — sobretudo em cidades do interior — organizem anualmente uma carreata que culmina com o padre aspergindo �gua benta sobre carros e seus condutores.
� comum tamb�m que motoristas cat�licos carreguem um santinho — pequeno folheto impresso com a imagem do santo de um lado e uma ora��o do outro — em honra a ele na carteira, geralmente junto com o documento de habilita��o.
Quem foi ele?
Segundo Alves, a populariza��o da fama do santo pode ser atribu�da ao fato dele ter sido inclu�do na Legenda Aurea, conjunto de narrativas hagiogr�ficas reunidas por volta de 1260 pelo arcebispo de G�nova, Jacopo de Varazze (1229-1298).
Isto porque, explica o escritor, o documento foi “traduzido em v�rios idiomas e largamente difundido dentro e fora da Europa, contribuindo fortemente para a propaga��o do culto dos santos, por meio de exemplos edificantes extra�dos de suas vidas”.
“[O trabalho de Varazze] tornou-se a base da religiosidade popular que permanece at� nossos dias”, contextualiza Alves.
Tamb�m estudioso da vida de santos, o professor Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos, cita uma outra fonte al�m do compilado do s�culo 13.
“Existe um texto chamado ‘Atos de S�o Crist�v�o’, escrito originalmente em latim e datado do s�culo 7. � o texto mais antigo conhecido sobre a vida de S�o Crist�v�o”, comenta ele, em entrevista � BBC News Brasil.
“Mas ele ficou mais conhecido por meio da famosa Legenda Aurea. A� que sua hist�ria acaba recuperada e passou a se tornar muito forte durante a Idade M�dia.”

O cruzamento de informa��es de diversas lendas sup�e que Crist�v�o tenha nascido ou na L�bia ou onde hoje fica Israel. E tudo indica que ele tenha sido morto, martirizado, em 251, na Anat�lia, hoje Turquia. Foi na �poca do governo do imperador romano D�cio (201-251). Segundo o pesquisador Alves, as lendas tamb�m permitem inferir que ele teria vivido na S�ria.
Maerki diz que, nos textos hagiogr�ficos, Crist�v�o era descrito “como um homem de apar�ncia sombria”.
“Consta que ele ingressou ao ex�rcito imperial e, convertido ao cristianismo, anunciou sua f� aos companheiros soldados. Esta revela��o fez com que ele passasse a ser submetido a in�meras torturas”, narra o professor.
“Segundo antigas tradi��es, Crist�v�o era um homem de grande estatura e dotado de grande for�a f�sica”, pontua Alves. Tinha ele “mania de grandeza” e gostava de se vangloriar porque “servia o maior e mais poderoso rei da Terra”.
A convers�o teria se dado a partir dessa hist�ria. Aquele soldado acabaria “descobrindo”, em sua f�, que o tal maior rei da Terra n�o era “nem o imperador romano, nem Satan�s”. “Mas Jesus Cristo”, diz Alves.
Depois de batizado e “instru�do na f�”, ele passou a ser perseguido pelos soldados e, contam as lendas, acabaria tendo de se refugiar “�s margens de um rio de �guas revoltas”.
Atravessando o rio

Nesse ponto da hist�ria, v�rias lendas se fundem e h� varia��es de narrativas. Maerki detalha que, muito provavelmente, esse rio ficaria na regi�o da L�cia, na costa sul da atual Turquia.
“H� uma tradi��o lend�ria muito comum no Ocidente que relaciona a vida de Crist�v�o ao sentido etimol�gico de seu nome, em grego, ‘aquele que carrega Cristo’”, contextualiza o professor.
Na hagiografia de Varazze, vale ressaltar, h� a indica��o que o nome Crist�v�o n�o tenha sido originalmente do personagem.
“Crist�v�o, antes do batismo chamava-se R�probo, mas depois passou a ser Crist�v�o, que quer dizer ‘aquele que carrega Cristo’, pois o carregou de quatro maneiras”, diz o texto da Legenda Aurea.
“Sobre as costas para transport�-lo; em seu corpo por meio da macera��o; em sua mente por meio da devo��o; em sua boca por meio da confiss�o ou da prega��o.”
Segundo as narrativas, ao se ver situado nas proximidades de tal rio, o homem assumiu a fun��o de barqueiro, em algumas vers�es, ou mesmo de uma figura que podia carregar sobre os ombros aquele que precisasse cruzar de uma margem a outra.
“Por ser de grande estatura e dotado de extraordin�ria for�a f�sica, ajudava as pessoas carregando-as em seguran�a sobre os ombros na travessia de um rio de �guas turbulentas, salvando a muitas do perigo da morte”, diz Alves.
“As narrativas, de cunho mitol�gico, folcl�rico e lend�rio, contribu�ram para se formar a representa��o iconogr�fica de S�o Crist�v�o, como santo defensor e protetor dos perigos no dia a dia.”

Maerki conta que h� uma vers�o que descreve Crist�v�o como “um gigante, um homem muito grande que era barqueiro de um rio”.
“Esse homem era extremamente mal humorado e vivia sozinho em uma floresta que era de sua propriedade”, narra. “Segundo consta, uma noite um menino foi at� ele pedindo para ser carregado para atravessar o rio.”
“Ele era extremamente robusto mas teria ficado curvado sob o peso da crian�a, que a cada passo se tornava mais e mais pesada para ele”, prossegue o hagi�logo.
Depois de conclu�do o trabalho, o homem teria comentado, com espanto, que n�o entendia como o menino podia ser t�o pesado, “parecia que eu estava carregando o mundo �s costas”. Ao que o rapazinho respondeu que era porque ele era “o redentor do mundo”.
E � da� que vem a tradi��o que associa S�o Crist�v�o �queles que conduzem ve�culos.
“Certamente � por conta disso que h� a tradi��o dele ser protetor dos peregrinos, dos motoristas, dos barqueiros, dos viajantes, daqueles que trabalham com transporte… � porque h� a ideia de que ele foi o instrumento de transporte do pr�prio Cristo. E isto � muito bonito”, diz Maerki.
No Brasil
Conforme explica Alves, a devo��o a S�o Crist�v�o chegou ao Brasil devido aos jesu�tas, a partir do s�culo 16.
“Seu culto logo se espalhou por todas as regi�es, suscitando a edifica��o de mosteiros e igrejas, patronatos, irmandades, influenciando os modos de produ��o, o com�rcio, a cultura e a religiosidade popular”, afirma.
Entre as igrejas mais antigas dedicadas ao santo est� a capela de S�o Crist�v�o erguida em 1627 no Rio de Janeiro.
Alves ressalta que, no f�rtil solo do sincretismo religioso brasileiro, S�o Crist�v�o encontrou espa�o para se mesclar com o orix� Xang�.
“Assim, quem est� sob a prote��o do grande defensor e protetor S�o Crist�v�o ou Xang� nada deve temer”, diz.
“Prote��o e livramento � o que nossa gente sempre buscou e busca em S�o Crist�v�o, independentemente de sua cren�a, promovendo assim �s avessas um saud�vel sincretismo religioso, que s� tem a enriquecer a religiosidade e a cultura popular brasileiras.”