
o Brasil, a escritora mo�ambicana Paulina Chiziane tem sido destacada por um seleto f�-clube, formado especialmente pelas mulheres negras, apreciadoras da sua grande literatura, entre as quais merece men��o a escritora mineira Concei��o Evaristo.
� emblem�tico termos um c�rculo t�o pequeno de seus admiradores, embora significativos, para uma escritora que, em seu pa�s de origem, � considerada umas das maiores narradoras e, acima de tudo, a primeira mulher prosadora a escrever um romance em sua terra africana.
� certo que, quando falamos da literatura mo�ambicana, o nome que nos vem � mente � de um homem, o do escritor Mia Couto, que, ali�s, � branco. Mesmo o de Ungulani Ba Ka Khosa, fant�stico escritor negro, que esteve recentemente no Brasil lan�ando o seu novo livro, Gungunhana: Ualalapi e as mulheres do imperador (Editora Kapulana), � lembrado. Os m�ritos de Mia Couto j� n�o s�o mais postos em d�vida, dada a mensurada qualidade de seu trabalho liter�rio, amplamente divulgado e difundido no Brasil.
No caso espec�fico da escritora Paulina Chiziane, pesa bastante uma injusti�a que, certamente, tem a ver com o fato de ela ser mulher e ser negra, salvo outro ju�zo de valor, argumentado em contr�rio, mas com base fundamentada, prezando pela l�gica e a coer�ncia.
Come�o dizendo isso ap�s ler, com imensa alegria, o seu mais recente livro divulgado aqui entre n�s – O alegre canto da perdiz. A leveza desse livro nos faz lembrar uma afirma��o que a pr�pria Paulina, em conversa numa tarde comigo, em S�o Paulo, durante a FlinkSampa, gostava de (re)afirmar: “Gosto mais de dizer que sou uma contadora de est�rias. Isso de dizer que sou romancista, gosto, mas n�o gosto muito”.
Paulina Chiziane � considerada, com toda a raz�o, ap�s a publica��o de Balada de amor ao vento, de 1990, a primeira romancista (ou contadora de est�rias) da �frica mo�ambicana. E esse t�tulo, embora ela minimize o r�tulo, como � da sua mod�stia, � altura da mesma simplicidade com que sorri e fala de sua literatura e do seu pa�s, tem projetado seu nome mundo afora, como representante n�o s� das mulheres negras da �frica negra, mas das mulheres negras de todo o planeta.
No caso de O canto alegre da perdiz, chama a aten��o na autora um dado importante na forma de narrar e de contar a tal “est�ria”: a descri��o das cenas em si e a apresenta��o dos personagens. A escritora africana apresenta, de forma leve e original, os tipos da cena que quer descrever, em que cada par�grafo do texto serve de passo e de guia, levando o leitor, logo no in�cio das primeiras p�ginas, a ter um envolvimento �ntimo e pessoal com os seus personagens, criando desde j� um v�nculo, uma empatia, uma esp�cie de rela��o de amor e cumplicidade.
A hist�ria gira em torno tamb�m de duas mulheres, Delfina e Maria das Dores. O percurso dessas duas personagens vai mostrar que Paulina tem como prop�sito determinar o espa�o de fala das mulheres africanas, impressa nas dores dos seus corpos, na cartografia do seu espa�o de a��o, elevando a ideia do matriarcado. Na verdade, ela procura denunciar (ou desconstruir) o projeto colonial de poder, na figura branca do invasor do pa�s e de todo o continente.
Ao colocar o discurso feminino do anticolonialismo nas vozes de mulheres negras, Paulina Chiziane potencializa a sua pr�pria escrita anticolonialista. O sentido de dor e perda, inerente �s suas personagens mulheres, vem carregado de uma carga dura e forte de preconceito e de viol�ncia contra a mulher africana e, por tabela, contra o homem africano tamb�m. Ler Paulina Chiziane, por este prisma, nos faz entender por que ela vem sendo t�o lida e ouvida mais no exterior do que em Mo�ambique.
Nesse sentido, O alegre canto da perdiz, ao demarcar um ponto alto da literatura de Chiziane, cumpre bem o papel de instrumento de fabula��o, de conta��o de hist�rias, de den�ncia contra o arb�trio desumano que foi a escravid�o e suas sequelas.
Ao cumprir com esse objetivo, o de fabular e denunciar, ao expor sorrisos e feridas, a escritora mo�ambicana “traz a boa-nova escrita do avesso”, nas palavras de uma de suas personagens. E esse seu livro �, seguramente, a narrativa que mais se aproxima de uma “literatura de miss�o” – entret�m o leitor e, ao mesmo tempo, o mant�m alerta sobre a potencialidade de uma �frica ainda muito viva e pulsante.
A �frica, na concep��o de Paulina Chiziane, tem a ver com esse corol�rio de cores e vozes distintas e exasperadas na forma de emo��o e m�ltiplos sentidos. A dor contida de suas personagens � reverberada na representa��o escrita da autora mo�ambicana, pondo em destaque o conceito de mem�ria, exposto nas falas das mulheres da narrativa, e o estigma do tempo, referendado no “corpus” escrito e na ancestralidade, que carregam em si a trajet�ria de vidas que se nutrem do pr�prio sangue que derramam e do sofrimento sentido.
Paulina Chiziane, com essa l�gica da insensatez, diga-se de passagem, � extremamente assertiva e subverte o sentimento narrativo, elevando-o � melhor condi��o de uma hist�ria contada sobre o ponto de vista de quem volve a terra e se expressa pelos olhos das mulheres africanas.
* Tom Farias � escritor e jornalista, autor de Cruz e Sousa: dante negro do Brasil (Pallas Editora) e Carolina, uma biografia (Mal� Editora)
Escrita necess�ria
A nova edi��o do romance O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane, � o ponto alto de sua literatura ap�s a estreia liter�ria com Balada de amor ao vento, em 1990. Uma das vozes femininas mais importantes hoje da literatura africana, com livros traduzidos para os mais consagrados mercados livreiros no mundo, como o Brasil, a Europa e os Estados Unidos, Paulina Chiziane, no entanto, ainda n�o � uma escritora popular, pelo valor liter�rio dos seus livros e pela for�a documental dos seus romances.
No Brasil, onde a conhecemos muito pouco, dada as edi��es acanhadas de suas obras, ela tem um pequeno c�rculo de admiradores, entre o p�blico em geral, escritores e acad�micos. Por esta raz�o, Paulina Chiziane sobrevive por aqui e � cultuada por uma pl�iade pequena, mas consider�vel: Concei��o Evaristo, Ana Maria Gon�alves, Paulo Lins, Martinho da Vila, Oswaldo de Camargo, Oswaldo Faustino, Luiz Cuti, Cristiane Sobral, Eduardo de Assis Duarte e Laura Padilha, entre poucos outros.
Com a for�a narrativa que tem, e o �mpeto de contar a hist�ria que faz ao mesmo tempo uma rica historiografia da �frica pr� e p�s-colonial, Paulina Chiziane �, sem qualquer d�vida, digna merecedora da aten��o e dos louvores que, pelo menos, vem merecendo por aqui.
A condi��o de mulher negra e africana, sobretudo esta �ltima, traz uma carga de tens�o emocional bastante significativa para a obra de Paulina Chiziane, sobretudo quando ela trata das rela��es amorosas, mormente marcadas pelos conflitos geracionais, que t�m muito a ver com a cultura dos povos tradicionais, de forte tradi��o protestante, da qual ela � oriunda.
O teor feminista do seu discurso se alinha �s den�ncias contra o status quo atual da pol�tica em favor da mulher em Mo�ambique. Por estas raz�es, sua escrita � t�o atual e necess�ria.
O ALEGRE CANTO DA PERDIZ
. De Paulina Chiziane
. Dublinense
. 352 p�ginas
. 49,90