
“N�o consigo suportar a minha vida sem pelo menos um pouco de coragem. Enquanto eu souber que sou covarde, vou ser infeliz”, diz o Le�o Covarde.
“Sei que voc� tem muita coragem. S� precisa de confian�a em si mesmo. N�o existe criatura viva que n�o sinta medo quando se v� diante do perigo. A verdadeira coragem consiste em enfrentar o perigo mesmo com medo, e esse tipo de coragem voc� tem de sobra”, rebate Oz.
“Vou ficar muito infeliz se voc� n�o me der o tipo de coragem que faz a pessoa esquecer que est� com medo”, insiste o Le�o Covarde.
O m�gico completa: “Muito bem, ent�o lhe darei esse tipo de coragem.”
O di�logo acima � uma das importantes mensagens do cl�ssico O m�gico de Oz (The wonderful wizard of Oz), que chega ao mercado brasileiro em nova edi��o, com capa dura, pela editora Zahar, com introdu��o e texto original do autor, Lyman Frank Baum (1856-1919), e ilustra��es tamb�m originais de William Wallace Denslow (1856-1915). Conclu�da em abril de 1900 e lan�ada em agosto do mesmo ano, a obra de Baum tem hoje uma leitura contempor�nea, nada infantil, sustentada por tr�s pilares – c�rebro (pensar), cora��o (amar) e coragem (agir) – que servem como analogias bem sugestivas para os tempos bicudos atuais, de preconceito ao conhecimento cient�fico, dificuldade de interpreta��o de textos, retrocesso cultural, intoler�ncia ao outro e ao diferente e rela��es vol�veis e distantes turbinadas pelas redes sociais. Na base dos tr�s pilares est� uma tradi��o inviol�vel, a terra natal e a fam�lia acima de todos os valores, capaz de resistir at� a ciclones.
Dorothy � orf�, foi adotada por tia Em e tio Henry e levada para a fazenda deles no Kansas. Mas l� tudo � triste e cinza – a terra, a relva e at� seus tios, com faces e l�bios acinzentados. Mesmo assim, ela vive feliz com seu c�ozinho Tot�. Um dia, entretanto, um ciclone pega a garota de surpresa, enquanto seus tios se escondem no abrigo, e Dorothy � levada para a multicolorida terra de Oz, povoada por seres fant�sticos, entre eles os pequeninos Munchkins. N�o sabe como chegou ali, fica maravilhada, mas quer voltar para casa e n�o tem como. A solu��o � seguir a sugest�o dos Munchkins e pegar a estrada de tijolos amarelos at� a Cidade das Esmeraldas, onde fica o castelo do M�gico de Oz, que pode lev�-la de volta. E a� come�a o caminho de autoconhecimento e das novas amizades da menina.
UM C�REBRO PARA
DEIXAR DE SER BURRO
A jornada de Dorothy pela yellow brick road come�a com o Espantalho, que ganha vida ao ser retirado de estaca pela garota � beira da estrada e sonha ganhar um c�rebro. “A verdade � que n�o sei nada. Sou recheado de palha e, por isso, n�o tenho c�rebro”, diz � menina a tristonha criatura. Como n�o tem miolos, o Espantalho anda sempre ereto e assim enfia o p� nos buracos e cai de cara nos tijolos amarelos. “Se eu for com voc� at� a Cidade das Esmeraldas, o grande Oz pode me dar um c�rebro?”, anima-se o Espantalho. Afinal, “um bom c�rebro � a �nica coisa que vale a pena ter neste mundo, tanto para os homens quanto para os corvos”, diz ele, que ainda arremata: “� muito ruim essa sensa��o de saber que voc� � burro. Ter um c�rebro e poder pensar direito bem que vale todo o trabalho”.
Comovida com o desejo do Espantalho, Dorothy se agarra ao amigo, que mal pensa, n�o come, n�o dorme e nada teme, a n�o ser um palito de f�sforo aceso. E ambos seguem os tijolos amarelos. J� no castelo, ao ganhar um c�rebro feito de farelo de trigo misturado com alfinetes e agulhas, ele ouve de Oz: “Eu recheio a sua cabe�a com miolos. S� n�o posso dizer como voc� vai usar o seu novo c�rebro: voc� vai ter de descobrir por sua conta”. Diante da d�vida do estranho, Oz emenda: “A cada dia voc� aprende uma coisa nova. Um beb� tem c�rebro, mas n�o sabe muita coisa. A experi�ncia � a �nica coisa que traz o conhecimento e quanto mais tempo voc� passa na Terra, mais experi�ncia voc� acumula”. Empolgado, o Espantalho se vira para Dorothy: “Voc� h� de aprender a pensar mais em mim depois que ouvir as �timas ideias que v�o aparecer no meu c�rebro”. Curioso, o Lenhador de Lata, amigo da estrada, pergunta: “E por que essas agulhas e alfinetes brotando da sua cabe�a?” O Le�o Covarde, outro novo amigo, observa: “S�o a prova de que ele tem racioc�nio agudo”. O leitor atento de hoje poderia concluir que o Espantalho com c�rebro de verdade n�o atropelaria o conhecimento cient�fico humano que diz que a Terra � redonda, e n�o plana, e que o nazismo � doutrina de esquerda, ao contr�rio do que muitos querem fazer acreditar.
UM CORA��O
PARA TER AFETO
O segundo encontro de Dorothy na estrada de tijolos amarelos � com o Lenhador de Lata, imobilizado � beira do caminho por falta de �leo. Como homem, ele foi morto pelo pr�prio machado enfeiti�ado por uma bruxa e teve o corpo recomposto com metal por um latoeiro. “A maior perda que sofri foi o meu cora��o. Enquanto eu estava apaixonado, era o homem mais feliz do mundo, mas ningu�m pode amar sem um cora��o e por isso vou pedir a Oz que me d� um novo”. Como Dorothy j� tinha um amigo esquisito, por que n�o ter outro? E l� foram os tr�s pela estrada amarela, sempre com lam�ria: “Eu n�o tenho cora��o, n�o sou capaz de amar”.
Quando encontra o m�gico na Cidade das Esmeraldas, o Lenhador de Lata ouve a advert�ncia: “Acho um engano voc� querer um cora��o. Ele s� traz infelicidade para a maioria das pessoas. Se voc� soubesse como tem sorte por n�o ter um cora��o...” Mas o Lenhador n�o titubeia: “Eu aceitaria suportar toda essa infelicidade sem dar um pio se voc� me desse um cora��o”. O m�gico ent�o pega um “lindo cora��o feito de seda pura e recheado de serragem” e p�e no peito do visitante. “Satisfeito?”, pergunta. “Mas � um cora��o bondoso?”, indaga o Lenhador. “Ah, muito. Agora voc� tem um cora��o que deixaria qualquer homem muito orgulhoso”, � a resposta. O homem de lata hoje poderia usar seu cora��o como celeiro para a toler�ncia em todos os horizontes, diferentemente do que vemos mundo afora. Basta citar a xenofobia.
CORAGEM PARA
ENFRENTAR O MUNDO
O terceiro amigo ex�tico de Dorothy � o Le�o Covarde. Depois de explicar � menina seu drama de rei fracassado dos animais e tremer de medo diante dos menores desafios, ele chega diante de Oz e finalmente v� seu desejo realizado: ser corajoso. O m�gico pega um frasco verde quadrado, derrama o conte�do num prato verde com frisos de ouro e p�e diante do Le�o Covarde, que cheira o l�quido com ar de quem n�o gosta. “Se estivesse dentro de voc�, seria a sua coragem. A coragem est� sempre dentro das pessoas. Ent�o, isso s� pode ser chamado de coragem depois que voc� engolir. E por isso deve tomar tudo o quanto antes”, diz Oz. O Le�o n�o hesita mais e bebe at� esvaziar o prato. “Como est� se sentindo agora?, pergunta Oz. “Cheio de coragem”, responde o Le�o, que volta alegre para junto dos amigos e conta a feliz novidade. A coragem do Le�o de hoje poderia ir muito al�m do pr�prio nariz e da bravata das redes sociais, onde todos parecem ser corajosos, e servir como for�a para encarar o mundo real.
O m�gico, que n�o era m�gico, apenas um impostor, desabafa em pensamento: “Como � que eu poderia deixar de ser um farsante? Essas pessoas me pedem coisas que todo mundo sabe que s�o imposs�veis. Foi f�cil satisfazer o Espantalho, o Le�o e Lenhador de Lata, porque eles imaginam que posso fazer qualquer coisa. Mas preciso mais do que imagina��o para levar Dorothy de volta ao Kansas e n�o sei mesmo como isso poderia ser feito”. O �ltimo desejo, que era o de Dorothy de voltar para casa, n�o pode ser atendido e ela s� depende de si para reencontrar a fam�lia.
DERRUBAR �RVORES
PARA ABRIR PASSAGEM
Depois de suas aventuras, Dorothy, como tudo mundo sabe, consegue finalmente voltar para casa batendo os sapatos que eram de uma bruxa e agora s�o dela. O segredo estava o tempo todo junto dela. Frank Baum opta pelos valores tradicionais do “lar doce lar”. A certa altura da hist�ria, a menina diz: “N�o quero viver aqui. Quero ir para o Kansas para viver com a tia Em e tio Henry”, O Espantalho se surpreende: “N�o entendo como voc� pode querer ir embora deste lindo lugar e voltar para a terra seca cinzenta que chama de Kansas”. A resposta est� na ponta de l�ngua: “Isso porque voc� n�o tem c�rebro. Por mais que as nossas casas sejam tristes e cinzentas, n�s, pessoas de carne e osso, preferimos viver nelas do que em qualquer outro lugar, mesmo o mais lindo do mundo. N�o existe lugar igual � casa da gente”.
Outra curiosidade da obra de Baum � o que hoje seria chamado de inconsci�ncia ambiental. O Lenhador de Lata, ao longo da hist�ria, vai derrubando grandes �rvores com o seu machado como se fossem folhas secas, seja para abrir caminho ou apenas resgatar as roupas do Espantalho de uma grande copa. A virada do s�culo 19 para o 20 ainda era �poca de abund�ncia de florestas. Quarenta anos depois, entretanto, quando o livro chega ao cinema, o Lenhador de Lata, mesmo mantendo o machado, vira Homem de Lata e n�o corta nem uma �rvore sequer.
Outra curiosidade est� logo na introdu��o que Baum, que morreu h� 100 anos, em 6 de maio de 1919, aos 63 anos, faz ao seu livro, na qual insere cr�tica indireta ao brit�nico Lewis Carroll (1832-1898), que havia acabado de morrer. O m�gico de Oz est� para os EUA como Alice no pa�s das maravilhas, que Carroll imaginou, est� para a Gr�-Bretanha. Baum atacava o nonsense de Carroll, mas apreciava criar algo inusitado ou maluco.
Diz ele na introdu��o do livro, em abril de 1900: “O conto de fadas tradicional, depois de servir a muitas gera��es, hoje pode ser classificado de hist�rico. Pois chegou a hora de novos ‘contos maravilhosos’, de eliminar os g�nios, as fadas e os an�es estereotipados, junto com os incidentes medonhos e sinistros imaginados por seus autores para indicar a moral assustadora de cada hist�ria. A educa��o moderna inclui a moral: por isso, a crian�a moderna procura apenas divers�o em suas hist�rias fant�sticas, dispensando alegremente todos os incidentes desagrad�veis. Com essa ideia em mente, a hist�ria de O m�gico de Oz foi escrita apenas para o prazer das crian�as de hoje. Pretende ser um conto de fadas modernizado, em que a admira��o e a alegria se conservam e os sofrimentos e pesadelos s�o deixados de lado”.
Mas um leitor atento perguntaria: Que prazer, admira��o e alegria pode haver em um protagonista com um membro decepado de cada vez, primeiro os bra�os, depois as pernas, o cora��o e a cabe�a? � o caso do Lenhador de Lata. Ou ent�o as passagens com dezenas de lobos e corvos degolados pelo Le�o? S�o todos sofrimentos e pesadelos relativizados por Baum.
REFLEX�ES
“Pensar incomoda como andar � chuva, quando
o vento cresce e parece que chove mais”
>> Fernando Pessoa
“Este o nosso destino: amor sem conta, distribu�do pelas coisas p�rfidas ou nulas, doa��o ilimitada a uma completa ingratid�o, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente,
de mais e mais amor”
>> carlos drummond de andrade
“O correr da vida embrulha tudo. A vida � assim: esquenta e esfria, aperta e da� afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da
gente � coragem”
>> Jo�o guimar�es rosa
LONGO CAMINHO NO IMAGIN�RIO POPULAR
O m�gico de Oz foi o terceiro livro publicado por Frank Baum. N�o havia obra infantil similar naquela �poca, virada do s�culo 19 para o 20, devido � integridade da natureza humana dos personagens. A edi��o lan�ada agora informa que o editor original da obra, George M. Hill, revelou que 10 mil exemplares foram vendidos em duas semanas e 80 mil impressos em seis meses, em 1900. Baum escreveu outros 13 livros com aventuras de Dorothy na Terra de Oz e participou ainda ativamente da primeira montagem do musical para a Broadway, que ficou em cartaz por oito anos.
Mas o que deu longo caminho aos tijolos amarelos, com fama definitiva, foi a produ��o da MGM, um dos principais est�dios de Hollywood, lan�ada em 1939 e dirigida por Victor Fleming, que esteve por tr�s das c�meras em dois outros cl�ssicos naquela �poca – E o vento levou (Gone with the wind), tamb�m em 1939, com Clark Gable e Vivian Leigh, e O m�dico e o monstro (Dr. Jekyll and mr. Hide), em 1941, com Spencer Tracy e Ingrid Bergman.
O filme O m�gico de Oz levou a jovem Judy Garland (1922-1969) ao estrelato. Ela j� n�o era crian�a, tinha 16 anos quando interpretou Dorothy, e foi a segunda op��o para o papel. A favorita para encarnar a menina do Kansas era Shirley Temple (1928-2014), ent�o com 10 anos, a estrela infantil mais bem paga em Hollywood na d�cada de 1930. Mas a 20th Century Fox se recusou a emprest�-la para a MGM e Judy ficou com o papel.
Aos olhos de hoje, � um musical recheado de breguices, mas tem seu valor hist�rico. As cenas iniciais do Kansas cinzento s�o impressionantes para a �poca, com sequ�ncias em preto e branco e tons em marrom. J� as cenas em Oz s�o technicolor, tamb�m de encher os olhos. Indicado a seis Oscars, o filme ganhou nas categorias Can��o Original e Banda Sonora, fazendo jus � maravilhosa Over the rainbow, cantada por Dorothy logo no in�cio do musical. Judy recebeu o chamado Oscar Juvenil, um pr�mio especial por sua atua��o em O m�gico de Oz e em Babes in arms, em 1940.
Em 1978, foi lan�ado o musical O m�gico inesquec�vel ou O feiticeiro (The wiz), vers�o urbana da obra de Baum adaptado a partir do musical da Broadway, de 1985. Dirigido por Sidney Lumet, estrelado por Michael Jackson (Espantalho) e indicado aos Oscars de Melhor Dire��o de Arte, Melhor Figurino, Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Cenografia, foi fracasso de cr�tica e bilheteria. No imagin�rio popular, o que ficou mesmo foram as cenas de Judy Garland e os tr�s amigos esquisitos.
O m�gico de Oz
De L. Frank Baum
Zahar
223 p�ginas
R$ 39,90
R$ 24,90