(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

''Quando todos est�o gritando, os sensatos sempre perdem'', diz escritor

Ao lan�ar romance que reconstitui a perplexidade brasileira com as manifesta��es de 2013, Jer�nimo Teixeira lamenta a derrota do debate de ideias em tempos de extrema polariza��o


postado em 26/07/2019 04:11

Jerônimo Teixeira, sobre os protestos que convulsionaram o país:
Jer�nimo Teixeira, sobre os protestos que convulsionaram o pa�s: "Se tivesse de definir minha atitude em rela��o a 2013 em uma palavra, seria perplexidade." (foto: Jer�nimo Teixeira/Paulo Vitale/Divulga��o)

"Um estranho evento pol�tico sobre o qual muito se escreve e do qual pouco se entende”. Assim o narrador de Os dias da crise, terceira incurs�o na fic��o do jornalista Jer�nimo Teixeira, define as manifesta��es de junho de 2013. Depois de A tirania do amor, de Cristov�o Tezza, outro romance brasileiro faz a aproxima��o da fic��o com fatos hist�ricos recentes. Mas n�o espere respostas nem certezas. “O que se definiu em junho? N�o me pergunte, n�o nos pergunte. Ningu�m soube, ningu�m sabe, ningu�m jamais entendeu nada”. 

Entre a observa��o e a vertigem, entre o estilingue e a pedra, Jer�nimo Teixeira usa o humor como ferramenta para construir uma narrativa sat�rica inicialmente distanciada, que ganha dramaticidade nos cap�tulos finais (e ainda utiliza os par�nteses para sublinhar as observa��es ir�nicas de Alexandre, o narrador). “N�o me botei, de largada, a escrever com a decis�o de usar os par�nteses com frequ�ncia para real�ar a s�tira. Mas creio que funciona, sim, como um bom expediente humor�stico. Os par�nteses s�o como aquele aparte que o ator faz no palco para comentar a a��o, com uma piscadela malandra para o p�blico”, explica o autor, nascido em 1968, em Montenegro (RS). Radicado em S�o Paulo, Jer�nimo escreveu cr�ticas de livros por anos na Veja; atualmente, ocupa o cargo de editor-executivo da revista. “N�o me defino exatamente como cr�tico. Por anos, fui um jornalista da �rea de livros que, entre outras fun��es — entrevistas, cobertura do mercado editorial, mat�rias de outras �reas —,  escrevia resenhas”, lembra. 

As primeiras linhas de Os dias da crise  (“N�o gosto de ler. Ningu�m gosta. Mente quem diz o contr�rio. Livros s�o objetos desajeitados, desconfort�veis”) s�o assumidamente provocativas. Como reagiria o resenhista ao se deparar com uma provoca��o assim? “� um exerc�cio bem dif�cil”, admite Jer�nimo. “Acredito, por�m, que eu me sentiria instigado a continuar lendo”. Sobre o exerc�cio da fic��o, ele opina: “N�o parece valer a pena: o trabalho exigido por um livro, ainda que breve — e todos os meus tr�s livros de fic��o s�o breves —, � desproporcionalmente maior que a satisfa��o proporcionada pelas respostas que a obra recebe uma vez publicada”. 
Mesmo com a impress�o de que a literatura foi exclu�da das conversas cotidianas (“Fa�a o exerc�cio em sua roda de amigos: quanto tempo se passa falando de s�ries de tev� e streaming? N�o � um tempo bem maior do que o dedicado a falar de literatura?”), Jer�nimo Teixeira insiste em escrever. “H� coisas que s� podem ser ditas e representadas pela literatura de fic��o. Ainda que os bons leitores sejam tristemente poucos, ser�o sempre o happy few”, acredita Jer�nimo, que, al�m de Tezza, diz admirar a prosa contempor�nea dos brasileiros Jos� Francisco Botelho, Amilcar Bettega Barbosa e Alberto Mussa. 

A seguir, uma entrevista com o autor:

Os dias da crise tem, assumidamente, tom sat�rico. A s�tira pode ser uma forma eficiente de encarar o que o narrador chama de “o est�pido esp�rito do nosso tempo”? 
A s�tira pode, sim, ser um modo muito eficiente para retratar os tempos contempor�neos, a depender, claro, do talento do satirista. Comecei a escrever Os dias da crise com a modesta ambi��o de mostrar como andamos rid�culos — todos n�s, que de algum modo nos envolvemos e nos inflamamos com o debate p�blico, seja na imprensa ou nas redes sociais, � esquerda ou � direita do espectro pol�tico. Espero, no entanto, ter avan�ado um pouco al�m disso. O tom do livro � sat�rico, como voc� diz, mas n�o creio que ele seja apenas uma s�tira. H�, por exemplo, um desenlace tr�gico para um dos personagens mais rid�culos do romance. E, por mais que Alexandre, o executivo frustrado que � protagonista e narrador do livro, tenha a princ�pio uma vis�o c�tica e reticente em rela��o �s manifesta��es de junho de 2013 — como, ali�s, eu mesmo tive na �poca —, de algum modo os eventos daquele m�s escapam ao rid�culo. As manifesta��es talvez tenham sido conduzidas por gente rid�cula, mas n�o s�o, em si mesmas, rid�culas. 

H� uma breve cita��o de Dom Casmurro e a protagonista feminina chama-se Helena. Qu�o machadiano � Os dias da crise?
O nome Helena vem de uma fonte mais �bvia: o rosto que lan�ou mil naus ao mar de que fala o poeta e dramaturgo elisabetano Christopher Marlowe em um verso famoso da literatura inglesa. Mas a refer�ncia mitol�gica aparece em registro par�dico. Enquanto a Helena original desencadeia a Guerra de Troia, a minha Helena n�o �, obviamente, a causa das chamadas Jornadas de Junho de 2013. S� o que ela faz � conduzir Alexandre, um homem distanciado de qualquer milit�ncia pol�tica, �s manifesta��es de rua em S�o Paulo. Dito isso, sim, Os dias da crise tem muitas d�vidas com Machado de Assis, notadamente com Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas. Alexandre, o protagonista e narrador, � um descendente (n�o sei se digno…) do protagonista e narrador do grande romance de Machado. Em um primeiro esbo�o do livro, cheguei at� a incluir uma nota de rodap� (recurso um tanto esdr�xulo para uma narrativa em primeira pessoa) na qual Alexandre criticava Br�s Cubas. Era um expediente defensivo. Cortei: um escritor brasileiro n�o tem como se defender de Machado.

O narrador antecipa o que ocorrer� nos cap�tulos, comenta a pr�pria narra��o, chega a apontar falhas na narrativa, como a aus�ncia de descri��es dos personagens. � um narrador tamb�m que reconhece ter passado, na vida profissional, “por todas as esta��es da cafajestagem”. Como foi a constru��o desse narrador? Cl�ssicos como A vida e as opini�es do cavalheiro Tristram Shandy, cujo narrador tamb�m comenta os cap�tulos em um processo que Jos� Paulo Paes chamou de “exuber�ncia digressiva”, est�o entre suas influ�ncias?
Sim, sempre gostei da fic��o que de algum modo se denuncia como fic��o: Dom Quixote visitando a gr�fica onde se imprime o livro de Cervantes, Hamlet encenando a pe�a dentro da pe�a, Pr�spero como demiurgo da ilha ficcional em que ele mesmo vive etc. N�o creio, por�m, que tenha ido t�o longe em Os dias da crise. Alexandre, o narrador, faz l� suas considera��es sobre o processo de escrita do livro, mas isso por si s� n�o transgride as conven��es do realismo em fic��o. Para citar um personagem muito distinto tanto em personalidade quanto em origem social, temos o Paulo Hon�rio de Graciliano Ramos: S�o Bernardo come�a com esse personagem-narrador contando que pensara em escrever o livro em colabora��o com alguns not�veis da cidade, mas as parcerias desandaram e ele acabou escrevendo a hist�ria sozinho depois de ouvir o pio da coruja. Alexandre, como Paulo Hon�rio, � um n�o escritor que decide escrever.  

Nas discuss�es agressivas que se tornaram rotina em um pa�s polarizado, descritas no romance como uma guerra de “orgulhos machucados e vaidades ultrajadas”, quem s�o os maiores derrotados?
Os sensatos sempre perdem, porque ainda acreditam no poder da argumenta��o quando todos ao redor est�o gritando. Perdem os moderados, os que buscam o equil�brio (e s� por isso s�o chamados depreciativamente de “isent�es”), os que buscam considerar todos os fatos — sobretudo aqueles fatos que eventualmente contradigam cren�as pr�vias — antes de opinar. Perdem tamb�m aqueles que exercem a cr�tica livre e independente, porque a l�gica dominante da guerra cultural � pr�pria das seitas: jamais critique os seus, pois n�o se tolera “fogo amigo”. Em Os dias da crise, Jorge, um dos amigos de Alexandre, representa essa figura moderada que desperta a ojeriza de gente que em tese estaria no seu campo pol�tico. Alexandre diz, a prop�sito, que Jorge “cultivava a insensata cren�a de que a sensatez pode convencer os insensatos”.   
As manifesta��es de junho de 2013 s�o descritas como “estranho evento pol�tico sobre o qual muito se escreve e do qual pouco se entende”. Como a literatura pode se aproximar de fatos t�o recentes do ponto de vista hist�rico?
Participei de um evento liter�rio em Porto Alegre mediado por Jos� Francisco Botelho, um excelente tradutor e escritor, e ele me apresentou falando exatamente disso: do desafio que eu havia encarado ao situar um romance em tempos t�o recentes. Respondi que me pareceria um desafio bem maior criar uma cena em um acampamento dos ex�rcitos de An�bal em sua marcha em dire��o a Roma, como Botelho fez em um dos contos do seu Os cavalos de Cronos. O ficcionista que se dedica ao passado hist�rico — que ningu�m sabe exatamente quando come�a: um romance situado nos meses iniciais de euforia do Plano Cruzado, por exemplo, j� seria “hist�rico”? — e aquele que desenvolve sua narrativa em tempos recentes enfrentam desafios diferentes, mas eu diria que, em qualquer dos casos, a literatura de fic��o imp�e dois esfor�os fundamentais ao escritor: dar um passo atr�s em rela��o ao que lhe � pr�ximo, e aproximar-se do que lhe � distante. 

E sobre o “estranho evento pol�tico”?
A eclos�o de manifesta��es de massa que tomam o pa�s de surpresa e quase t�o rapidamente quanto surgiram se esvaziam me parece caber bem nessa defini��o do meu personagem. Um constrangimento para governantes tucanos e petistas, junho de 2013 j� foi interpretado como a express�o das correntes mais radicais da esquerda e como o alvorecer de uma nova direita que em seguida pediria o impeachment (que os adeptos dessa linha interpretativa preferem chamar de golpe) e depois levaria Bolsonaro ao Planalto. Eu mesmo, a princ�pio, encarei as manifesta��es com retic�ncia, quando n�o com franca m� vontade. Mitiguei bastante essa opini�o inicial. Hoje, se tivesse de definir em uma palavra minha atitude em rela��o a 2013, a palavra seria perplexidade. Os dias da crise � talvez uma express�o dessa perplexidade, ainda que o personagem-narrador seja demasiado autossuficiente (quando n�o arrogante) para admitir-se perplexo.   

O protagonista de A tirania do amor (2018), mais recente romance de Cristov�o Tezza, lamenta: “Estou imerso na vulgaridade”. Por causa de diverg�ncias ideol�gicas, tamb�m enfrenta dificuldades no relacionamento com os filhos. Enxerga conex�es entre o seu romance e o de Tezza? Quais outros escritores contempor�neos, brasileiros ou estrangeiros, tentam refletir sobre o seu tempo?
Creio que 60% ou 70% de Os dias da crise j� estavam escritos quando saiu A tirania do amor. Ao ler esse romance — do qual gostei muito — n�o pude deixar de pensar que deveria ter trabalhado mais r�pido: Tezza chegou l� primeiro! O momento hist�rico dos dois livros n�o � o mesmo, mas h�, como voc� bem notou, paralelos not�veis. Como o Otavio de A tirania do amor, Alexandre tamb�m est� “imerso na vulgaridade”. Os dois personagens s�o flagrados em seus momentos de precariedade (est�o para perder o emprego), e compartilham de um desencanto que provavelmente precede a crise profissional (mas eles elaboram o desencanto de forma diferente: Alexandre � mais c�nico e talvez mais ressentido, embora procure negar seus ressentimentos). O registro sat�rico distancia o meu livro de A tirania do amor — mas o pr�prio Tezza, resenhando Os dias da crise, diz que a s�tira ao final acaba n�o sendo a nota predominante no livro.

H� outros tantos escritores contempor�neos que se dedicam a examinar a vulgaridade na qual est�o imersos, mas citarei s� mais um: Philip Roth. Em A marca humana, o escritor americano comenta, pela voz de seu delegado ficcional Nathan Zuckerman, o esc�ndalo em torno das sacanagens de Bill Clinton com uma estagi�ria no Sal�o Oal da Casa Branca. Clinton � tratado com relativa generosidade. Essa passagem, muito breve (duas p�ginas, logo no in�cio do romance), � circunstancial, panflet�ria, proselitista, partid�ria — tudo aquilo que nos dizem que a literatura n�o deve ser. E, no entanto, funciona que � uma maravilha! O pano de fundo do mundo pol�tico assombrado pelo puritanismo em sua vers�o mais reta e clara casa com perfei��o � hist�ria que ser� narrada nas p�ginas seguintes: a queda em desgra�a do professor de literatura Coleman Silk, tamb�m ele acossado pela vigil�ncia puritana, agora em sua vers�o progressista, feminista e p�s-moderna. � nesse trecho que aparece uma s�ntese genial de certo esp�rito militante nosso contempor�neo — uma express�o na qual cabem, por exemplo, tanto o filho rancoroso do Otavio de A tirania do amor quanto a filha radical de Alexandre em Os dias da crise: “o �xtase da santim�nia”. 
 
TRECHO DO LIVRO

“A primeira pedra quicou no vidro temperado, em cuja superf�cie escura deixou apenas um desprez�vel arranh�o, voou perigosamente sobre as cabe�as da hoste que cercava a ag�ncia banc�ria e, derrotada, sem quebrar nada nem ferir ningu�m, rolou at� perto dos meus p�s. Eu ouvi o convite da pedra, o chamado irresist�vel da for�a destruidora exaltada por Bakunin; pus o p� de apoio � frente e curvei o corpo, bra�o direito estendido para apanh�-la, para tentar eu mesmo o arremesso que afinal quebraria a vidra�a da ag�ncia banc�ria, detonando a inexor�vel cadeia de eventos que, a confiar na gritaria dos jovens a meu redor, faria ruir todo o opressivo edif�cio do capital financeiro internacional.”

Os dias da crise
De Jer�nimo Teixeira.
Companhia das Letrasl 128 p�ginas
R$ 44,90


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)