
O tempo passou e comprei outro exemplar numa dessas cole��es de “grandes obras da literatura”, vendida em banca de jornal. Foi a� que reli, sublinhando as partes que julgava importantes, sempre viajando nas emo��es e me emocionando com a grande viagem que � ler um bom livro. De forma especial, fico sempre um bom tempo diante da frase de abertura da primeira parte da obra, Animula vagula blandula, em latim, traduzida para Pequena alma terna flutuante. Sempre considerei essas quatro palavras uma poesia completa, e, divagando, at� hoje procuro um sentido para tanta beleza. Agora, foi lan�ada nova edi��o de Mem�rias de Adriano, pela Nova Fronteira (Cole��o Cl�ssicos de Ouro, com capa dura), tradu��o de Martha Calderaro e pref�cio in�dito da historiadora Mary del Priore. Confesso que j� comprei e vou guard�-lo para, talvez, a �ltima leitura l� pelo fim da vida.
O mais importante, devo admitir, n�o � propriamente a “autobiografia imagin�ria” composta com sensibilidade superlativa pela escritora nascida em Bruxelas, na B�lgica. Eu me apaixonei pela escrita, o jeito elegante e muito pr�prio de contar a trajet�ria do imperador Adriano (76-138 d.C), as observa��es sobre o mundo e o tempo, passagens, muitas vezes, misturando criadora e criatura num �nico ser humano. O livro me abriu as portas para outras obras da autora, as quais devorei com um apetite feroz. Ou leve, dependendo do momento: A obra em negro, com a figura extraordin�ria de Z�non, Golpe de miseric�rdia, Como a �gua que corre, Mishima ou a vis�o do vazio e outras compostas como sinfonia.
"Se esse homem n�o tivesse mantido a paz do mundo e renovado a economia do imp�rio, suas felicidades e seus infort�nios interessar-me-iam menos" Marguerite Yourcenar (1903-1987)
Vale lembrar que a cria��o de Mem�rias de Adriano somou pesquisa, paix�o, rompimento, solid�o, nervos � flor da pele, fic��o e sensibilidade profunda para falar de pol�tica, viagens, poder, amores, ambi��es, enfim, vidas p�blica e privada. Marguerite Yourcenar come�ou a escrever sua obra-prima entre 1924 e 1929, ainda bem jovem, e, nas tr�s d�cadas seguintes, foi do c�u das descobertas ao inferno das incertezas, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, para terminar seu objetivo. Essa corrida alucinada pela perfei��o, em cada p�gina, me deixou perplexo, conforme o Caderno de notas que acompanha a edi��o e deve ser lido atentamente – na verdade, � como se fosse um outro livro dentro desse volume, tal o relato em alguns momentos desesperado e cativante. Nessa fase, entendi o jeito do seu trabalho e nunca esqueci: escrever e desmanchar, escrever de novo, parar e prosseguir. “Todos os manuscritos foram destru�dos e mereciam s�-lo”, pensou e agiu a autora em 1934. Mais ou menos como quem apaga as pegadas ou, no caso de uma bordadeira, que desmancha o ponto, deixa o tecido repousar e reinicia puxando de novo a linha.
CRIADORA... " retrato de uma voz. Se optei por escrever estas Mem�rias de Adriano na primeira pessoa, foi no sentido de eliminar o m�ximo poss�vel qualquer intermedi�rio, inclusive eu. Adriano podia falar de sua vida mais firmemente e mais sutilmente do que eu." Marguerite Yourcenar, em Caderno de notas das Mem�rias de Adriano
AMOR EM M�RMORE
Mas vamos � experi�ncia pessoal. Em 1982, em visita ao Museu do Louvre, na Fran�a, e andando meio sem destino por aqueles espa�os gigantescos e espetaculares, me deparei com a escultura em m�rmore de Ant�noo, o amor da maturidade de Adriano. Fiquei meio estupefato, pois n�o estava procurando nada relacionado � obra. Muitos e muitos anos depois, em Roma, acompanhei atentamente o guia falando sobre Adriano e seus feitos, mas, devido ao pouco tempo, n�o cheguei � Villa Adriana, resid�ncia de veraneio do imperador localizada a 30 quil�metros da capital italiana. Marguerite Yourcenar esteve l� v�rias vezes, conforme seu relato, assim como em outros onde seu biografado viveu.

Em julho deste ano, em viagem a Jerusal�m, visitei um museu e l� estava o busto em bronze de Adriano. Nada demais, afinal a Palestina foi uma prov�ncia do imp�rio que n�o dava tr�gua a judeus e crist�os. Entusiasmado, enlacei a pe�a (o que jamais deveria ter feito) e brinquei com um rec�m-amigo turista: “Faz, por favor, uma foto minha com o imperador Adriano”. E n�o � que quase ca� no ch�o com a escultura e tudo? Foi a� que ouvi: “Tamb�m, enaltecer imperador romano nas terras de Jesus d� � nisso, n�?” .Pausa. Na Cidade Velha, admirei as colunas do tempo de Adriano, constru��es genu�nas que resistiram ao tempo e a tantas transforma��es ao longo de quase 20 s�culos.
..E CRIATURA Pequena alma terna flutuante (Animula vagula blandula, em latim) Pequena alma terna flutuante, H�spede e companheira do meu corpo, Vais descer aos lugares p�lidos duros nus Onde dever�s renunciar aos jogos de outrora... Publius Aelius Hadrianus nome do imperador Adriano
HOMENS LIVRES
Na semana passada, zapeando na tev�, parei no canal italiano RAI e assisti, sem falar a l�ngua, a um programa de disputa liter�ria entre jovens estudantes. No centro das aten��es, o livro de que tanto gosto. Fiz um esfor�o danado e entendi algumas perguntas e respostas, satisfeita com a sapi�ncia da garotada. Mais curioso ainda foi ver, na sequ�ncia, um grupo de adultos versados na hist�ria do imperador e na trajet�ria descrita por Marguerite Yourcenar, a primeira mulher a entrar para a Academia Francesa, na qual a Academia Brasileira de Letras se espelhou. “Era um imperador, mas com todas as contradi��es da exist�ncia humana”, resumiu uma mulher.
Logo depois, voltei ao Caderno de notas de Mem�rias de Adriano, com os bastidores da cria��o. E li mais uma vez: “Se esse homem n�o tivesse mantido a paz do mundo e renovado a economia do imp�rio, suas felicidades e seus infort�nios interessar-me-iam menos'” (…) “Bem depressa compreendi que escrevia a vida de um grande homem. Desse momento em diante, imp�s-se maior respeito pela verdade, maior aten��o e, de minha parte, maior sil�ncio”. E h� uma frase que soa como premoni��o. E merece reflex�o. “O s�culo 2 interessa-me porque foi, durante muito tempo, o s�culo dos �ltimos homens livres. Pelo que nos diz respeito, j� estamos talvez muito distantes desse tempo”.
Trecho do livro
“Os c�nicos e os moralistas concordam em colocar a vol�pia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispens�vel do que aqueles, visto que ele podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista, tudo se espera, mas espanto-me que o c�nico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus pr�prios dem�nios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esfor�ando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terr�vel sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mist�rio no qual se sentem perdidos. Acreditaria nessa associa��o do amor �s alegrias puramente f�sicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que visse um gastr�nomo solu�ar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o amor � o �nico capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o �nico no qual o jogador abandona-se necessariamente ao del�rio do corpo. N�o � indispens�vel que aquele que bebe abdique da raz�o, mas o amante que conserva a sua n�o obedece inteiramente ao deus do amor.”
Quem foi Adriano
No Museu Brit�nico, em Londres, encontra-se o busto do homem esculpido em m�rmore que provocou impacto na jovem Marguerite Yourcenar e foi o come�o de sua cl�ssica obra. Ao lado est� Ant�noo. Terceiro imperador romano, da dinastia dos Antoninos, Adriano governou entre 117 e 138 d.C., marcando o apogeu do Imp�rio Romano. Nascido na regi�o onde hoje � a Espanha, em 24 de janeiro de 76, � descrito pelos especialistas como letrado, amante das artes e do direito. Adotado por seu tio e imperador Trajano e indicado como seu sucessor, Adriano assumiu o posto abandonando a pol�tica de conquistas do seu antecessor e optando pelas alian�as, o que contribuiu para amenizar os riscos de revoltas. Dotado de esp�rito aventureiro e cosmopolita, decidido a garantir a presen�a romana em todo o imp�rio, Adriano passou grande parte de seu governo viajando pelas prov�ncias romanas, cuidando da reorganiza��o administrativa e da defesa das fronteiras do imp�rio. Merece destaque, especialmente para os viajantes, a Muralha de Adriano, com mais de 100 quil�metros. Para enfrentar a amea�a dos chamados povos b�rbaros, ele ordenou a constru��o, entre 122 e 128, de muralhas e fortalezas no atual Reino Unido. A megaestrutura protegia as terras conquistadas e demarcava o limite ocidental dos dom�nios do Imp�rio.

• De Marguerite Yourcenar
• Editora Nova Fronteira – 24ª edi��o
• 296 p�ginas
• R$ 55,90
• R$ 39,99 (e-book)