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Tarantino, o cineasta que recria a hist�ria em nome da vida

Al�m de homenagear o cinema, o diretor americano volta �s telas com Era uma vez em... Hollywood, para recontar fatos hist�ricos, com grande poder de fabula��o.


postado em 23/08/2019 12:05 / atualizado em 23/08/2019 12:07

Arte sobre pôster de Era uma vez em...Hollywood(foto: divulgação)
Arte sobre p�ster de Era uma vez em...Hollywood (foto: divulga��o)

''Ao nos levar para essa jornada em um lugar (Hollywood, claro) e um tempo (1969) estrangulados por um crime hediondo que, de certa forma, inaugurou uma �poca bastante sombria, Tarantino real�a o poder evocativo do 'era uma vez' de seu t�tulo (que � muito mais do que uma �bvia homenagem a Sergio Leone) e prop�e um jogo de espelhos solar na superf�cie, mas perturbador em seus efeito''

Andr� de Leones

 
Em C�es de aluguel (1992), primeiro longa-metragem de Quentin Tarantino, h� uma sequ�ncia na qual o cineasta consegue envolver o espectador em uma anedota que o policial interpretado por Tim Roth conta para se infiltrar em uma gangue de criminosos. Trata-se da famosa cena cujo cl�max se d� no banheiro de uma esta��o de trem, envolvendo o “traficante”, quatro policiais e um pastor-alem�o. Tudo � t�o bem escrito e montado, desde os ensaios do policial com seu colega at� o momento em que, de fato, visualizamos a “cena”, que, em um dado momento, o espectador inadvertida e efetivamente abra�a a tens�o da coisa, como se tudo aquilo estivesse acontecendo “para valer” no contexto do filme, mesmo sabendo de antem�o que � uma hist�ria inventada, contada por um policial que finge ser um bandido e precisa ganhar a confian�a dos bandidos de verdade. � uma aula de constru��o narrativa, e a primeira grande homenagem de Tarantino ao ato de contar hist�rias.

Homenagens assim est�o em toda a sua filmografia e adquirem formula��es diversas. �s vezes, como em C�es de aluguel, dizem respeito a uma anedota que, por assim dizer, ganha vida ou � usada com outras inten��es (nem sempre saud�veis); em outras, remete � pr�pria investida do cineasta na cria��o e no povoamento de um universo cinef�lico extremamente particular. Cito alguns exemplos: a odisseia de um certo rel�gio de ouro em Pulp fiction (1994); a cena em que um marginal convence outro a entrar em um porta-malas em Jackie Brown (1997) – cr�dito ao grande Elmore Leonard aqui, pois a passagem j� estava no romance Ponche de rum (Rocco), no qual o filme se baseia; a conversa junto � fogueira no segundo volume de Kill Bill (2004); o papo do dubl� para ganhar uma lap dance em � prova de morte (2007); o uso de uma sala de cinema para trucidar o estado-maior nazista em Bastardos ingl�rios (2009); a lenda de Siegfried e Br�nnhilde revisitada e reimaginada em Django livre (2012); tudo o que envolve uma suposta carta de Abraham Lincoln em Os oito odiados (2015); e, por fim, o uso brilhante de inser��es de s�ries e filmes (reais e fict�cios) no decorrer de Era uma vez em... Hollywood (2019), em cartaz em 16 salas de Belo Horizonte.

No cinema de Tarantino, h� sempre essa afabilidade essencial: n�o obstante toda a viol�ncia, n�s, os espectadores, estamos seguros, pois estamos do lado do narrador. Eu me refiro, aqui, � pr�pria forma como hist�rias e personagens (e as hist�rias dentro das hist�rias, “verdadeiras” ou n�o) s�o distendidos e colocados � nossa disposi��o, com uma generosidade e um interesse que sempre me parecem genu�nos, contagiantes. Mesmo quando “driblam” a hist�ria (como em Bastardos ingl�rios e Era uma vez em... Hollywood), ou justamente quando faz isso, Tarantino est� investindo na puls�o narrativa que lhe � pr�pria, incrementando o jogo inerente ao pr�prio ato de narrar e, assim, reafirmando a verdade da imagina��o. � constrangedor que alguns cr�ticos, diante de um filme de fic��o, venham reclamar exatamente dessa liberdade narrativa, liberdade que, em Tarantino, � convocada e renovada a cada filme, a cada cena, a cada m�sero segundo de proje��o: meu mundo, minhas regras.

Era uma vez em... Hollywood � uma elegia. Ao nos levar para essa jornada em um lugar (Hollywood, claro) e um tempo (1969) estrangulados por um crime hediondo que, de certa forma, inaugurou uma �poca bastante sombria, Tarantino real�a o poder evocativo do “era uma vez” de seu t�tulo (que � muito mais do que uma �bvia homenagem a Sergio Leone, diretor de longas como Era uma vez no Oeste) e prop�e um jogo de espelhos solar na superf�cie, mas perturbador em seus efeitos: o que n�o acontece no filme continua l�, latente, vibrando nas sombras de um universo alternativo e dist�pico, isto �, do nosso universo, da vida do lado de c� da telona. A carga perturbadora do longa reside justamente nesse espa�o entre o fato e a fic��o, engendrado, alargado e transformado pela liberdade do criador.

Sharon no cinema

Quando acompanhamos Sharon Tate (Margot Robbie) em um passeio vespertino, indo � livraria (onde compra um exemplar de  Tess of the d’Urbervilles, de Thomas Hardy, para presentear Polanski – romance que ele depois adaptaria em um de seus melhores filmes, lan�ado em 1979 e estrelado por Nastassja Kinski, n�o por acaso dedicado � mem�ria de Sharon) e depois a um cinema para se ver e ver o p�blico no ato de v�-la, � imposs�vel n�o se emocionar, pois � um desses milagres que s� o cinema possibilita. Ela se sente viva ali, animada pelo pr�prio trabalho e pelo p�blico que a assiste na telona, e n�s a sentimos viva, ao testemunhar e tomar parte desse espelhamento formid�vel. E mais: n�s vemos “tudo” – as v�rias Sharons (no filme-dentro-do-filme, a personagem e a atriz que interpreta a personagem, e no filme, Margot-Sharon, que v� a si mesma, as outras duas e o p�blico vendo ela pr�pria e as outras duas), a plateia no filme e, por fim, a plateia do filme, da qual fazemos parte.

Dessa forma, Tarantino coloca a imagina��o a servi�o da vida, demonstrando pela en�sima vez que seus constantes jogos de cita��es e espelhamentos n�o t�m nada de est�reis. Ao mergulhar de novo e de novo em tal universo cinef�lico, ele n�o “foge” da realidade, mas sublinha o seu car�ter tr�gico e tamb�m a sua beleza essencial. Cocteau teria dito, certa vez, que “o cinema filma a morte no seu trabalho, � a �nica arte que mostra a morte comendo os atores, que imortais nos personagens s�o mais fortes em nossa mem�ria que a lembran�a dos vivos”. Em Era uma vez em… Hollywood, essa “lembran�a dos vivos” brilha justamente naquela que, brutalmente assassinada, n�o est� mais aqui, mas est� l�, viv�ssima em nossa lembran�a, nos filmes que fez e, claro, no filme que agora a resgata para n�s. Como disse no outro par�grafo, � o tipo de milagre que s� o cinema e Tarantino proporcionam, e eu n�o consigo pensar em uma homenagem mais digna e bela aos que partiram, ao pr�prio cinema e � arte superior do contador de hist�rias.

Em meio a tudo isso, os verdadeiros protagonistas do longa (um ator em dificuldades e seu fiel dubl� e faz-tudo) tamb�m ajudam a constituir a verdade da coisa pela outra via — s�o fict�cios, mas, n�o por acaso, vizinhos dos personagens reais. De certo modo, o ator interpretado por Leonardo DiCaprio e o dubl� vivido por Brad Pitt funcionam como os guardi�es daquela verdade da imagina��o: inseridos em um contexto “real”, salvaguardam a liberdade do criador por meio de sua interven��o providencial�ssima.

A exemplo do que acontece no cl�max de Bastardos ingl�rios, Tarantino refor�a a distin��o entre os universos real e fict�cio (e, reitero, s� idiotas exigem uma “fidelidade” que n�o cabe necessariamente � fic��o) para sublinhar tanto um quanto o outro. Eles n�o se anulam e tampouco se “desmentem”, mas s�o complementares. E, claro, esse tipo de escolha n�o diz respeito a um falseamento, mas � o s�mbolo maior daquela liberdade imaginativa que o cineasta exibiu desde o momento em que colocou um bando de sujeitos sentados a uma mesa, jogando conversa fora, pouco antes de nos mostrar a que vieram. As joias daquela maleta roubada pelos C�es reluzem at� hoje nesse universo alternativo que, vez por outra, visitamos e que, generoso, Tarantino n�o se cansa de expandir, celebrando a cada novo filme os atos de criar e de existir, de lembrar e de (re)imaginar.

  • Andr� de Leones (Goi�nia, 1980) � romancista, autor de Eufrates (Jos� Olympio, 2018), Abaixo do para�so (Rocco, 2016) e Terra de casas vazias (Rocco, 2013), entre outros. Seu primeiro romance, Hoje est� um dia morto (2006), foi adaptado para o cinema por Robney Bruno Almeida e lan�ado em maio de 2019 como Dias vazios. P�gina pessoal: andredeleones.com.br.



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