
Trabalhadores bra�ais urbanos, negros em sua totalidade, inconformados com desmandos tribut�rios e san��es estatais injustas resolvem cruzar os bra�os. A paralisa��o leva uma metr�pole � in�rcia nos transportes e, consequentemente, �s raias do caos. Pessoas negras acossadas por brancos encastelados no aparato pol�tico e policial. O relato pode parecer atual, mas remonta ao s�culo 19 e � contado por Jo�o Jos� Reis em Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. O livro retrata com louv�vel riqueza de detalhes – visto que o autor � professor do Departamento de Hist�ria da Universidade Federal da Bahia – o primeiro movimento grevista envolvendo um setor sens�vel da classe trabalhadora no Brasil.
Na Salvador do s�culo 19, o transporte de pessoas e mercadorias era realizado por homens africanos e seus descendentes. As mulheres perambulavam pelas ruas com balaios na cabe�a, vendendo diversos produtos. Esses trabalhadores eram chamados de ganhadores e ganhadeiras, e poderiam ser tanto libertos quanto escravizados. Estes �ltimos costumavam contratar com seus senhores a entrega semanal de determinada quantia, e poderiam embolsar o que sobrasse. O sistema de trabalho, conhecido como ganho, permitiu que muitos poupassem o suficiente para comprar suas alforrias.
Nos tabuleiros das ganhadeiras havia de tudo um pouco. Verduras, peixes, mariscos, carne, quitutes e tecidos. O esfor�o era bem recompensado. Quem morava no ‘andar de cima’ de Salvador – 16 anos antes da inaugura��o do Elevador Hidr�ulico da Concei��o, trivialmente denominado de Lacerda – preferia pagar pre�os at� 20% mais caros nas m�os das africanas do que descer � Cidade Baixa para adquiri-los nos armaz�ns ali instalados. Sim, o Lacerda foi inaugurado em 1873 e � o primeiro elevador urbano do mundo.
J� os homens transportavam quase tudo na cidade. De envelopes a pesadas caixas de a��car e barris de aguardente, �gua pot�vel, ton�is de fezes para serem lan�adas ao mar e pessoas em cadeiras de arruar (assentos para carregar pessoas pelas ruas. Da� o nome). A descri��o minuciosa e fundamentada apresentada pelo autor ao longo de 452 p�ginas ambienta perfeitamente o leitor na capital baiana, �quela �poca j� tricenten�ria cidade, destino de 1,5 milh�o de negros trazidos da �frica ao longo da hist�ria. As ruas eram dos negros. “Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega � negro.” Tal paisagem era comum para os nativos – j� que 70% da popula��o era negra, mas fascinava visitantes, cujos relatos carregados de perplexidade est�o contidos em v�rios trechos do livro.
CHAPA DE METAL NO CORPO
Em 1º de junho de 1857, tudo mudou. Nas palavras do autor, “aquela agita��o, o barulho de vozes, gritos, assovios e can��es de trabalho cessou, e as ruas de Salvador amanheceram desocupadas, silenciosas, muito estranhas. Os ganhadores – leia-se carregadores de objetos e gente – haviam decidido cruzar os bra�os”. O motivo, uma postura municipal. O ato normativo obrigava os ganhadores, sob pena de pris�o e multa, a se registrar e usar uma chapa de metal com n�mero de matr�cula em lugar vis�vel do corpo, a apresentar fiador ‘id�neo’ (obviamente branco) que lhes abonasse o bom comportamento, inclusive futuro. “A matr�cula seria paga – 2 mil-r�is. E tamb�m paga a chapa – 3 mil-r�is. Naquele ano de 1857, com esse valor se comprava cerca de uma arroba de carne.” Em outro trecho do livro, Reis conta que a referida chapa custara aos cofres baianos apenas 600 r�is, evidenciando que a pr�tica do superfaturamento n�o � inven��o recente.
O escritor deixa claro o intuito da norma e de um projeto pol�tico maior em curso, contemplado em diversas leis: a ‘desafricaniza��o’. Era necess�rio para a elite branca controlar o africano, fosse no exerc�cio do labor, em rodas de conversa, batuque e capoeira ou t�o somente circulando. Eram vistos como “incivilizados, um corpo estranho na cidade” que almejava seguir as luzes emitidas na Europa.
Os nascidos na �frica eram t�o malvistos que at� negros brasileiros se recusavam a exercer a atividade de ganhadores, pois “consideravam indigno trabalhar lado a lado com escravos ou libertos africanos”. O preconceito era generalizado, heran�a da estrutura mental cotidianamente alimentada. A resposta africana era tamb�m se proteger com barreiras �tnicas, se organizando em ‘cantos’, agrupamentos em que discutiam sobre o trabalho. O nome desses grupos est� diretamente ligado � forma como os trabalhadores exerciam suas tarefas: cantando sobre as mazelas cotidianas. Falta de comida, maus-tratos e a tristeza da vida de quem era submetido a situa��es incompat�veis com a condi��o de ser humano. O vendedor de �gua, definida por seus autores como a primeira can��o popular baiana, � um exemplo. “Desses quatro barris velhos/Podem fazer meu caix�o/Para quem vive de dores/Morrer � consola��o”.
Outro e n�o menos importante prop�sito da nova legisla��o era, o que n�o surpreende, econ�mico. A postura que causou a greve foi proposta pelo vereador Francisco Rocha, advogado e vice-diretor da Companhia do Queimado, respons�vel pelo abastecimento de �gua, que via os carregadores de barris como seus concorrentes. Reis n�o tra�a paralelos expressos entre a sociedade hodierna e a estrutura soteropolitana dos anos de 1850, mas � inevit�vel n�o notar semelhan�as. A dupla jornada dos ganhadores (de trabalhos dom�sticos e na rua), a organiza��o em ‘cantos’ e sua persegui��o pelas autoridades, a opress�o e o tratamento discriminat�rio em raz�o da condi��o social e cor da pele, a deprecia��o da sa�de do trabalhador por atividades insalubres, a aprova��o de leis estapaf�rdias com intuitos escusos, travestidas de prote��o ao cidad�o de bem e uma s�rie de outras “coincid�ncias”.
SENTIMENTO DE MELANCOLIA
Por se tratar de um registro hist�rico, e n�o de uma obra ficcional, Jo�o Jos� Reis n�o usa tintas fortes para descrever os castigos impingidos aos negros. Ainda assim, � imposs�vel n�o ser acometido por um mal-estar ao ler relatos de pessoas sendo flageladas 200 vezes ou atiradas ao c�rcere por ter cometido o grav�ssimo delito de sair � rua durante a noite. Em seu caminhar pela obra, o leitor transitar� entre a curiosidade hist�rica e o sentimento de melancolia. Quase um banzo.
Uma das principais fontes de informa��o de que se vale o autor � o Jornal da Bahia, que, � �poca, noticiou a greve. Um trecho do peri�dico d� ideia do transtorno causado pela paralisa��o. “Ontem esteve a cidade deserta de ganhadores e carregadores de cadeiras. N�o se achava quem se prestasse para conduzir objeto algum. Da alf�ndega nenhum objeto saiu, a n�o ser mui port�til (...) Os pretos ocultaram-se; e se os senhores n�o intervierem nisso, ordenando-lhes que obede�am a Lei, o mal continuar�.”
O impacto da greve levou a Associa��o Comercial a “apoiar” os negros, pressionando a C�mara Municipal para suspender as taxas impostas pela postura. O movimento paredista deixou as autoridades desnorteadas. N�o era revolta. N�o era quilombo. N�o era protesto antiescravista. Era uma resist�ncia pac�fica, mas nem por isso menos perturbadora. Os ganhadores escravos, for�ados por seus senhores a seguir trabalhando, eram maltratados e at� apedrejados pelos grevistas, para que arrancassem as placas de identifica��o e seguissem com a greve. Viam-se alvejados por tr�s artilharias distintas – os fiscais da C�mara, os senhores a quem tinham que prestar contas, e os pr�prios “companheiros” ganhadores.
A press�o, principalmente dos comerciantes, fez o governo derrubar a parte fiscal da postura, e a emiss�o da chapa passou a ser gratuita. Mas ainda permanecia a parte policial, que exigia a utiliza��o da identifica��o. A tal chapa era especialmente indigesta aos africanos, vindos de uma cultura em que o corpo, as roupas, adornos, turbantes e penteados informavam sobre a posi��o social. Os homens, ao us�-las, se sentiam equiparados “a m�seros quadr�pedes” e “ridicularizados perante o bello sexo”. Ademais, o metal ocupava uma �rea nobre do corpo, lugar quase sempre destinado �s guias dos santos do candombl�.
Ap�s uma semana de paralisa��o, os senhores se mobilizaram para matricular seus escravos, para que voltassem ao servi�o. Em 12 de junho, a greve estava praticamente acabada. “Os ganhadores tinham ido at� onde puderam. Depois de mais de uma semana sem ganhar, haviam chegado ao limite suport�vel.” O movimento teve sucesso parcial. Conseguiu derrubar a taxa de matr�cula e abrandar as regras do atestado de conduta exigido dos libertos. Mas a sobreviv�ncia da chapa era uma derrota consider�vel.
� poss�vel perceber no tom adotado por Reis um sutil regozijo com as consequ�ncias da greve. Em diversos trechos ele destaca reflexos do sucesso tempor�rio da paralisa��o. “O fato � que os baianos terminavam aquela semana com o pesadelo de branco: andar a p�, levar eles pr�prios cartas ao correio, pegar �gua na fonte; al�m do desabastecimento geral na cidade, por falta de cangueiros para transportar as mercadorias encalhadas no porto. Como era bom ter africano para prover tudo isso!.”
Em outra passagem, o autor destaca a troca de m�os do poder, ainda que por curto per�odo de tempo, e de forma enviesada. Ao citar um trecho em que o Jornal da Bahia sugerira a aplica��o de um “corretivo” nos grevistas, Reis replica: “Mas n�o foi assim que evolu�ram os acontecimentos, e o ‘corretivo’ fora aplicado pelos africanos, enquanto o susto e a surpresa paralisavam os poderes constitu�dos”.
VIDA IMPORTUNADA
Jo�o Jos� Reis dedica boa parte da obra a retratar, com o mesmo n�vel de acuidade, como a vida dos negros seguia sendo importunada por governo, imprensa e empres�rios, todos adeptos do plano xenof�bico de desafricaniza��o de Salvador. Fiscaliza��o ostensiva, impostos, chapa, fian�a, repress�o policial, concorr�ncia com um novo servi�o de carreto implantado por permission�rios do governo, tudo era feito com o intuito de prejudicar os negros, para que eles tomassem o rumo de volta ao seu continente natal. O que, como sabemos, jamais ocorreu.
O autor faz quest�o de deixar clara uma obviedade que nunca ser� demais repetir. Se os estrangeiros estavam no Brasil � porque “foram trazidos manietados, aqui escravizados, e onde apenas uma pequena minoria dos v�rios milh�es traficados conseguiria se alforriar”. Aos que ainda n�o est�o plenamente decididos a conhecer a Salvador por meio dos relatos de Reis, talvez um empolgante e edificante trecho da obra, contido logo no pr�logo, possa servir de incentivo: “Conforme aqui documentado, o objetivo era pressionar o ganhador africano a abandonar a capital baiana ‘espontaneamente’, fosse para viver como trabalhador dependente na rural, ainda n�o dominada pelos senhores de engenho, fosse para regressar � �frica com as m�os abanando. A greve de 1857 seria uma rea��o a essa campanha s�rdida contra os trabalhadores africanos. A greve evidencia que eles resistiram � press�o com enorme aud�cia, empenho e criatividade, fazendo ver a seus contempor�neos que control�-los n�o era tarefa f�cil, nem pouca”.

GANHADORES: A GREVE NEGRA DE 1857 NA BAHIA
De Jo�o Jos� Reis
Companhia das Letras
456 p�ginas
R$ 99,90
R$ 49,49 (e-book)