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Estado de Minas

Livros orientam crian�as sobre o drama e a esperan�a da migra��o

Publica��es infantis abrem nova perspectiva para os pequenos leitores acompanharem os pais na perspectiva de uma vida melhor


postado em 24/01/2020 04:00 / atualizado em 23/01/2020 17:56

(foto: aris messinis/afp)
(foto: aris messinis/afp)

Fab�ola Farias* 
Especial para o Estado de Minas

Em 2 de setembro de 2015, a imprensa internacional foi tomada pela fotografia do corpo de uma crian�a encontrado na praia de Bodrum, na Turquia. Aylan Kurdi, menino s�rio-curdo de 3 anos, viajava com sua fam�lia em uma das duas embarca��es clandestinas que sa�ram da cidade turca em dire��o � ilha grega de Kos, na Gr�cia. Sua m�e e seu irm�o, de 5 anos, tamb�m foram v�timas, junto a outras nove pessoas, do naufr�gio. Dois dias depois, durante o funeral da esposa e dos filhos, Abdullah Kurdi, que se salvou, pedia a paz na S�ria e a aten��o do mundo para os migrantes.

A fam�lia Kurdi, que tinha como destino final o Canad�, onde vive uma tia das crian�as, fugia do ambiente hostil das violentas batalhas entre militantes extremistas mu�ulmanos e for�as curdas na S�ria. A imagem do corpo da crian�a chocou o mundo e jogou luz sobre o grande movimento de migra��es que, h� alguns anos, avan�a sobre v�rios pa�ses, que, por motivos distintos – guerras, persegui��es pol�ticas, desemprego, fome –, expulsam pessoas, que passam a buscar outro lugar no mundo.

Migrantes, refugiados, campos, resgates e fronteiras s�o, entre outras que remetem a um tema comum a v�rios pa�ses, palavras que ocupam jornais, revistas e redes sociais, cotidianamente. Em perspectivas diferentes, cujos extremos s�o a mobiliza��o de esfor�os para o acolhimento de pessoas e a recusa � aceita��o de estrangeiros que podem significar o esgar�amento da j� comprometida presta��o de servi�os p�blicos e da ocupa��o das insuficientes vagas de trabalho, as migra��es se fazem presentes tamb�m nas narrativas que produzimos e experimentamos para entender o tempo, o espa�o e as rela��es que vivemos.

Entre essas narrativas, que incluem romances, poemas, contos, filmes, espet�culos teatrais, performances, fotografias, can��es e muitas outras formas de express�o, est�o os livros para crian�as. Embora sua circula��o seja pequena no Brasil, se considerados o n�mero de bibliotecas e livrarias e sua distribui��o no pa�s, os livros para a inf�ncia, por sua obrigat�ria presen�a nas escolas, s�o significativos instrumentos de forma��o, que trazem ao cotidiano de estudantes, desde muito pequenos, temas e abordagens que dificilmente se fariam presentes no ambiente dom�stico ou em outros espa�os de conviv�ncia da maioria das fam�lias, especialmente as de classes populares, com pouco ou nenhum acesso a equipamentos culturais.

Objeto de constante vigil�ncia e de den�ncias no Brasil atual, os livros para crian�as s�o de dif�cil defini��o, apesar de facilmente identificados nas se��es infantis de bibliotecas e livrarias. Formatos, temas, materiais, ilustra��es... o que faz de um livro um produto infantil? O que interessa �s crian�as? A discuss�o sobre os livros para esse p�blico navega em incertezas, mas, de um ponto de vista formativo, que toma a leitura de palavras e imagens como instrumento para a compreens�o do mundo (o que existe e os muitos outros que poderiam existir), tem como exig�ncia a considera��o de distintas inf�ncias e de diversas maneiras de ler.

O que parece um caminho sem volta, apesar das muitas tentativas de interdi��o de temas e abordagens inc�modos a determinados grupos sociais no Brasil, especialmente no que toca a bens art�stico-culturais, � a coragem e a sofistica��o que escritores, ilustradores e editores que se dedicam �s crian�as v�m demonstrando ao publicar o que vis�es de mundo conservadoras consideram inadequado para o p�blico infantil.

N�o faz muito tempo que �s crian�as eram oferecidas quase exclusivamente narrativas sobre o cotidiano – a fam�lia, a casa, o quintal, a escola, a fazenda, as f�rias, os animais de estima��o –, hist�rias da tradi��o popular e contos de fadas, que refletiam um ideal de inf�ncia e desconsideravam muitas outras formas concretas de exist�ncias infantis. Naturalmente, as crian�as que tiveram acesso a livros como esses se beneficiaram de suas leituras e muitos deles, que fizeram parte da forma��o de gera��es de leitores brasileiros, permanecem entre os cl�ssicos da nossa literatura.

Apostando na curiosidade e na sensibilidade das muitas inf�ncias e na leitura como instrumento de cultura, escritores, ilustradores e editores de livros para crian�as ampliaram o universo de temas que n�s, adultos, previamente estabelecemos como infantis, oferecendo �s crian�as narrativas, algumas feitas exclusivamente com ilustra��es, sobre quest�es permanentes na hist�ria da humanidade que, por algumas circunst�ncias, tocam especialmente ao nosso tempo. As migra��es e as tentativas de melhores condi��es de vida, bem como as interdi��es de v�rias ordens que se imp�em a milhares de pessoas que buscam um novo lugar para viver, figuram no repert�rio dos livros que hoje temos � disposi��o de parte das crian�as brasileiras – os livros, assim como a garantia de condi��es para ler e escrever, ainda n�o fazem parte da realidade de muitas.


BUSCA DE UM
LUGAR NO MUNDO

Marielle Mac�, professora de literatura e pesquisadora francesa, autora de Siderar, considerar: migrantes, formas de vida (Bazar do Tempo, 2018), ao observar e analisar um campo de migrantes e refugiados no cais de Austerlitz, em Paris, e sua rela��o com a cidade, se vale dos verbos siderar e considerar, indo da indiferen�a e da paralisa��o frente �quelas pessoas e suas condi��es de exist�ncia a uma movimenta��o investida de aten��o e cuidado para com elas.

Talvez possamos tomar os livros para crian�as que tratam das migra��es e seus muitos desdobramentos nas vidas humanas como forma de considera��o, nos termos propostos por Mac�, isto �, como uma maneira de perceber, de se dar conta e de abrir possibilidades de a��o, mesmo que essa a��o se restrinja � intimidade do pensamento.

Muitos livros publicados no Brasil para o p�blico infantil nos �ltimos anos tratam do tema e podem se tornar um convite para que crian�as experienciem a ang�stia, o medo, a dor e tamb�m a esperan�a de milhares de pessoas que transitam por terra e mar buscando melhores condi��es de vida para suas fam�lias. Palavras e imagens convocam os pequenos leitores a se aproximar de Emanuel, Amal, Marwan, Azzi, Youssef, Maryam, Geedi, Deng e outras crian�as sem nome, que, sozinhas ou com suas fam�lias, tentam encontrar um lugar para viver ou fazer da provisoriedade das caminhadas e da espera um cotidiano habit�vel. Algumas vivem em campos de refugiados, outras em permanente deslocamento, em busca de um lugar que as acolha. H� as que contam sobre a fuga de seus pa�ses e como foram recebidas em outros e os motivos que as expulsaram de seus lares, al�m da dolorosa separa��o de familiares e amigos. Todas t�m em comum uma hist�ria de medo, perdas, desamparo e adapta��o.

Jairo Buitrago e Rafael Yockteng, em Para onde vamos? (Pulo do Gato, 2016), narram o cotidiano de um pai e sua filha em suas tentativas de atravessar a fronteira de um pa�s qualquer, n�o identificado, mas marcado por imagens que j� se tornaram s�mbolos de situa��es como a que vivem: coiotes, linhas de trem, rios, viagens em carrocerias, barcos para travessias, muros e, claro, muitas outras pessoas na mesma situa��o que eles.

Em O caminho de Marwan, de Patricia de Arias e Laura Borr�s (Trioleca, 2017), acompanhamos a travessia do pequeno Marwan, que enquanto caminha a passos de gigante, em fuga, ouvindo a doce voz de sua m�e, relembra hist�rias antigas e can��es de sua aldeia, fazendo da tristeza da guerra que o expulsa de casa uma promessa de esperan�a de um dia retornar � sua terra.

A menina protagonista de Em fuga, de Pimm van Hest e Aron Dijkstra, publicado pela editora Gaud� (2018), tamb�m n�o tem nome, assim como os lugares do qual ela foge e ao qual chega. Um texto em versos e imagens de cores intensas narram juntos a destrui��o da guerra, a solid�o e o medo da fuga e a ang�stia de chegar a um pa�s no qual tudo � desconhecido: a l�ngua, as paisagens, as pessoas, a comida e, especialmente, os sentimentos de quem a recebe ou se recusa a isso.

Um outro pa�s para Azzi, de Sarah Garland (Pulo do Gato, 2012), um dos primeiros livros sobre o tema publicados no Brasil, conta em quadrinhos hist�ria parecida. Em uma narrativa �gil, apresenta a hist�ria da fam�lia em fuga de um lugar em guerra e sua chegada a outro pa�s, com destaque para a adapta��o da menina na escola, a busca de trabalho pelo pai, os problemas com a nova l�ngua, a saudade da av� que n�o acompanhara a fam�lia e a solidariedade das pessoas que os recebem, especialmente de outros refugiados.

Com maior volume de texto, O cometa � um sol que n�o deu certo, de Tadeu Sarmento, com ilustra��es de Apo Fousek, vencedor do Pr�mio Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil de 2017, narra o cotidiano de crian�as em um campo de refugiados. Emanuel encontra na amizade de outras crian�as e no encantamento pela menina Amal maneiras de habitar o espa�o �rido e hostil do campo, marcado pela escassez de �gua e comida e pelo sentimento de desconfian�a t�o comum onde a luta pela sobreviv�ncia se faz a cada minuto.

Dois meninos de Kakuma, com texto e fotografias de Marie Ange Bordas (Pulo do Gato, 2018), conta, pela hist�ria de Geedi, um menino somali que chegou ao campo na barriga da m�e, e Deng, um sudan�s, a vida de muitas crian�as que nasceram no campo de Kakuma, no Qu�nia, ou l� chegaram sozinhas ou acompanhadas de outras crian�as. Jogos de futebol, brincadeiras, dias de fome e de sede, as tentativas de conseguir algum dinheiro e a observa��o de jornalistas e ativistas que passam pelo lugar marcam a vida no campo, que existe provisoriamente h� mais de 25 anos e hoje abriga cerca de 200 mil pessoas.

Como Dois meninos de Kakuma, que localiza geograficamente a hist�ria que conta, Migrar, de Jos� Manuel Mateo e Javier Mart�nez Pedro (Pallas, 2013), narra a vida de uma fam�lia que sai do M�xico em dire��o a Los Angeles, nos Estados Unidos, em busca de trabalho e melhores condi��es de vida. N�o h� uma situa��o de guerra, como nos outros livros, mas a viol�ncia de uma travessia clandestina de fronteiras e a luta por trabalho e por condi��es dignas de sobreviv�ncia em um pa�s rico e desenvolvido. Chama a aten��o o sofisticado projeto gr�fico: o livro, que tem formato retangular, se abre na horizontal e suas p�ginas em sanfona apresentam a hist�ria em texto e em uma imagem �nica, uma esp�cie de mural vertical, que surpreende o leitor por sua exuber�ncia.


VIVER COM
DIGNIDADE

S�o muitas as hist�rias de pessoas em busca de um lugar no mundo onde possam viver com dignidade e o Brasil tem sido, cada vez mais, um ponto de chegada e uma esperan�a para muitos estrangeiros. Pode ser longo o caminho da sidera��o � considera��o; perceber e pensar o outro, muitas vezes t�o diferente de n�s, criando possibilidades de acolhimento, � uma tarefa que tem como exig�ncia o reconhecimento de outras exist�ncias e o desejo de tempos e rela��es mais justos. Oferecer �s crian�as hist�rias que as ajudem a compreender o tempo em que vivem faz parte de uma forma��o para a solidariedade e a justi�a, t�o necess�rias � humanidade, especialmente em tempos de elogio � intoler�ncia. 

Os livros considerados infantis, especialmente os liter�rios, podem dizer muito �s crian�as, e tamb�m aos adultos. Talvez em fun��o de seus formatos grandes ou n�o convencionais, pelo protagonismo das ilustra��es ou at� mesmo pelo pouco volume de texto, na maioria dos casos, os livros destinados �s crian�as fiquem restritos �s leituras dos pequenos e de professoras e bibliotec�rias no ambiente escolar. Belos e inventivos, t�m muito a oferecer aos leitores de todas as idades.

* Doutora em ci�ncia da informa��o pela  Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


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