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Estado de Minas DE ANJOS A EXTERMINADORES

Parasita vai muito al�m da representa��o visual da luta de classes

Entre cumplicidades e antagonismos das duas fam�lias de protagonistas, o grande vencedor do Oscar 2020 � desses filmes em que, numa ocasi�o social cheia de tens�o civilizada, uma casca come�a a se quebrar�


postado em 14/02/2020 06:00 / atualizado em 14/02/2020 08:36



O marxismo criou a express�o “luta de classes” – se n�o a criou, pelo menos a transformou num utens�lio do idioma. Ou seja, uma express�o que qualquer estagi�rio de reda��o usa com plena convic��o de que sabe do que est� falando. Foi o que aconteceu com “trauma” de Freud, “paradigma” de Thomas S. Kuhn ou “qu�ntico” de Max Born.

N�o importa quem inventou o termo. Na verdade, nem importa quem o gravou na linguagem popular, um suporte mais duradouro do que o m�rmore. Importa que ap�s esse ato de nomear uma coisa abstrata ela se torna estranhamente concreta e as pessoas mais variadas (inclusive jornalistas culturais n�o remunerados, como eu) se julgam no direito de bot�-la no bolso e sac�-la sempre que for preciso.
Planejei falar do filme coreano Parasita, Palma de Ouro em Cannes em 2019 e o grande vencedor do Oscar 2020, sob a �tica da luta de classes, mas essa luta n�o � uma guerra t�o n�tida quanto – por exemplo – a guerra entre as formigas e os cupins. O que acontece entre os ricos e os pobres � luta, mas em certos aspectos � dan�a, em outros aspectos � intercurso sexual, em outros � esporte radical, em outros � jogo de cena, em outros � bestializa��o coletiva...

“Luta”, apenas, n�o descreve a rela��o que neste filme de Bong Joon-ho une a fam�lia rica (os Park) e a fam�lia pobre (os Kim). As duas s�o sim�tricas: pai trabalhador, m�e atarefada e cheia de ang�stias, filha lindinha, filho voluntarioso. Dentro desse quadro, cada um dos oito personagens cresce no seu pr�prio formato, atira-se no caminho sem volta de suas pr�prias decis�es, sejam pensadas ou aleat�rias.

A “luta” entre as classes, em termos como estes, tem algo de sedu��o e algo de estupro, tem algo de conviv�ncia pac�fica e de vizinhan�a em p� de guerra, tem algo de libido predat�ria e algo de nojo controlado. Como se fosse uma luta entre iguais, mas com armamentos distintos.

N�o ser� nenhum spoiler se eu disser que, por uma combina��o de circunst�ncias, a fam�lia de favelados consegue empregar um dos seus membros na casa da fam�lia rica; e depois, um segundo; e depois, um terceiro... E por a� vai.

O objetivo deles � previs�vel, e o resultado disso tamb�m. Conhe�o (aqui do lado de fora da tela) dezenas de hist�rias pitorescas sobre empregados que, no primeiro piscar de olhos dos patr�es, aprontam uma, em sua ansiedade de sentir o gostinho do conforto e do consumo.

Quando vou numa casa bem rica, como a arquitet�nica moradia da fam�lia Park, tenho �s vezes a fantasia de que me empreguei ali como mordomo e que, mais dia, menos dia, a fam�lia vai passar f�rias fora e eu ficarei durante uma semana inteira por dono da casa, sozinho. A partir da�, como dizem as sinopses na web, “mayhem ensues”. Instala-se o caos.

Algumas pessoas de classe baixa t�m atitude contradit�ria na rea��o � riqueza: h� admira��o, sonho, mas tamb�m surge o impulso da destrui��o quando est� ao alcance. Porque (a� � minha “mente rica” que interpreta) a gente s� d� valor ao que conquistou com esfor�o, e quando um grupo de gente maltrapilha se apossa de uma adega, de uma despensa, de uma mans�o, por que raz�o deveria tratar aquilo com rever�ncia e parcim�nia? O grande exemplo cinematogr�fico disso � a ceia dos mendigos no Viridiana (1960) de Lu�s Bu�uel.

Parasita � um exemplo interessante da figura narrativa que denomino A Tomada, por inspira��o do conto Casa tomada (1951), de Julio Cort�zar: uma situa��o em que pessoas permitem que seu ambiente seja gradativamente invadido, de forma aparentemente casual e pac�fica, por pessoas estranhas que de repente tomam o controle de tudo.

Outro exemplo cl�ssico disto � uma hist�ria de terror que nada tem de terror, mas que at� hoje me d� arrepios quando me lembro dela (como ocorreu ao ver esse filme). � o conto de Hugh Walpole A m�scara de prata (1932), que inclu� na minha antologia Freud e o estranho – Contos fant�sticos do inconsciente (Casa da Palavra, 2007). 

Existe algo ominoso, algo cruelmente veraz na sua brutalidade: o vulc�o virtual de viol�ncia que jaz sob cada jardim gramado onde uma fam�lia rica recebe convidados chiques – para uma festa-coquetel, para um casamento ao ar livre, um anivers�rio de crian�a...

Nesse filme, lembrei-me tamb�m, inexplicavelmente, do cl�ssico pouco conhecido da fic��o cient�fica As esposas de Stepford, livro de Ira Levin, filme de Bryan Forbes. Lembrei-me do arrepiante almo�o ao sol no filme Corra! (Get out), de Jordan Peele, em que um rapaz negro aceita o convite para um fim de semana na mans�o dos pais da noiva. 

Todo roteirista pode bem avaliar as possibilidades de variados efeitos quando encaixamos uma cena de festa seguida por uma cena de carnagem. Carnagem � o que cada espectador est� esperando ver, por este ou aquele motivo. Parasita � um desses filmes em que numa ocasi�o social cheia de tens�o civilizada come�a a se quebrar uma casca com for�a, e a gente sabe que algu�m vai matar algu�m de maneira horrenda. O bom � saber isso poss�vel em cada um deles. E quando acontece, a surpresa � igual, a plausibilidade tamb�m.

A luta de classes � sempre encarada como o equivalente sociol�gico ao choque de placas tect�nicas. As hist�rias humanas s�o as fa�scas produzidas por esse atrito. “Luta” � adequado, mas “parasitismo entre classes” talvez fosse um termo mais interessante, porque abriria caminho para compara��es possivelmente �teis.

As duas fam�lias tamb�m s�o parasitas das telecomunica��es. Tudo que fazem � mediado por selfies, wi-fi, mensagens, videofone, telefonemas, c�digo Morse. Pode-se igualmente dizer que, se como dizia William Burroughs, “a linguagem � um v�rus do espa�o exterior”, ent�o as webcomunica��es s�o um v�rus criado em laborat�rio e que est� nos parasitando at� agora.

Opor um n�cleo rico e um n�cleo pobre significa a possibilidade de jogar com cumplicidades rec�procas, quando convier � hist�ria, e antagonismos declarados, quando for o caso. As chanchadas de Oscarito e Grande Otelo n�o cansavam de arremessar essa dupla de toscos-simp�ticos nos ambientes mais gr�-finos da �poca. E, como em Parasita, instalava-se o caos.

Bong Joon-ho, sobre Parasita


Para pessoas de diferentes condi��es sociais, a vida em conjunto num mesmo espa�o n�o � coisa f�cil. � cada vez mais o que ocorre num mundo triste como o nosso: as rela��es humanas baseadas na coexist�ncia ou na simbiose n�o podem se sustentar, e um grupo � levado a assumir uma rela��o paras�tica quanto ao outro. No interior de um mundo assim, quem poder� apontar seu dedo contra uma fam�lia que batalha, uma fam�lia travando uma verdadeira briga pela sobreviv�ncia, e cham�-los de parasitas? Eles n�o eram parasitas desde sempre. Eles s�o nossos amigos, s�o nossos vizinhos, nossos colegas de traba- lho. Tudo que aconteceu foi que eles foram empurrados por sobre a borda de um precip�cio. Ao ser a descri��o da vida de pessoas comuns que caem numa trag�dia inevit�vel, o filme �: uma com�dia sem palha�os, uma trag�dia sem vil�es, e nele tudo conduz a um enfrentamento violento e uma queda de ponta-cabe�a escada abaixo. Estejam convidados a assistir � ferocidade incontrol�vel desta tragicom�dia.


* Braulio Tavares � escritor, poeta, tradutor e pesquisador de literatura fant�stica. Artigo originalmente publicado no blog https://mundofantasmo.blogspot.com 


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