S�rgio de S�
Especial para o Estado de Minas

A ep�grafe do primeiro livro de Rubem Fonseca � tirada de Lao Tse: “Somos prisioneiros de n�s mesmos. Nunca se esque�a disso, e de que n�o h� fuga poss�vel”. Enclausurados, sentimos ainda mais a for�a dessa afirma��o da individualidade. A morte do escritor na �ltima quarta-feira (15), aos 94 anos, cutuca e avisa que a arte da fic��o abre portas para o leitor sair �s ruas, olhar, espernear, deambular pelo grande “mundo prostituto”, sem amarras.
A longa trajet�ria iniciada em 1963 com os contos de Os prisioneiros parece marcada, sobretudo, por esse pacto em torno do prazer libertador da leitura. No corpo do jovem de 15 anos foi uma porrada in�dita, �nica e para sempre, traduzida na del�cia do t�tulo do romance Vastas emo��es e pensamentos imperfeitos. Na alma liter�ria de muitos escritores brasileiros contempor�neos, sente-se at� hoje o impacto de tema e ritmo nas linhas.
Rubem Fonseca cometeu v�rios “crimes” no texto, para lembrar express�o da professora e ensa�sta Vera L�cia Follain de Figueiredo ao analisar a rela��o da obra com a narrativa policial. A literatura aqui quer falar diretamente com o leitor, sem ter a ilus�o de ser capaz de criar realidade que n�o seja representa��o. O “assassinato” da realidade baseia-se em enredos bem tramados, usa repeti��o como estrat�gia, dialoga com os meios de comunica��o.
Quando se pensa no beletrismo brasileiro, eterno incentivador do esot�rico, esses eram e s�o pecados mortais. A cr�tica costuma se dividir na abordagem dessa abertura poss�vel ao leitor comum. Mas Fonseca provou n�o ser apenas um Julio Cort�zar, isto �, dono de obra que se esgota quase toda na flor de entrada do �mpeto juvenil. Montou aos poucos o mais amplo painel humano de que se tem not�cia na literatura brasileira finissecular.
Tipos inesquec�veis
Acima de qualquer suspeita, criou tipos inesquec�veis. Os delegados Matos e Vilela. O advogado criminalista Mandrake. O escritor Gustavo Fl�vio. Nesses e em outros protagonistas, investiga��o e literatura se juntam na fic��o do autor para interpretar as leis de uma sociedade corrupta e moralmente degradada, um pa�s e uma cidade em particular, o Rio de Janeiro, que n�o deram certo. “S� rindo”, diria o Cobrador em sua vingan�a narrativa, assassina de todos que lhe devem tudo.
No trato da viol�ncia e do sexo (e da natureza violenta do sexo), Fonseca deu o pontap� na forma��o de fi�is leitores, chocados esteticamente diante da novidade: o que a literatura era capaz de fazer de modo despudorado! Pelo menos tr�s gera��es – anos 1960, 1970 e 1980 – aprenderam com narradores e personagens de seus contos (principalmente) e romances que a vida � surreal e intrinsecamente enigm�tica. “Macacos me mordam.”
Para rasgar de urbanidade a literatura brasileira – de uma vez por todas –, algo ruim h� mesmo de acontecer. A cidade, em condi��es normais, coloca indiv�duos em contato, na casa e na rua. E a� est� um dos grandes m�ritos de Fonseca, a partir da percep��o fora do comum sobre um dado humano incontorn�vel: falar, dizer, conversar. A vida em linguagem. Com um metaf�rico ouvido absoluto, ele construiu di�logos velozes e precisos.
Tamb�m compreendeu e real�ou, como nenhum outro escritor, o portugu�s falado em centros urbanos (carioca somente a princ�pio). Percorreu dic��es particulares do flerte, da paix�o, da repulsa, da paranoia, da vingan�a, da reden��o. Se o curitibano Dalton Trevisan criou um mundo-estilo pr�prio, Rubem Fonseca deu-lhe v�rias vozes, um coro sem imposta��o, amb�guo e visceral.
O autor de A coleira do c�o, L�cia McCartney, Feliz ano novo e Bufo & Spallanzani, entre outras obras espetaculares, posicionou-se a meio caminho entre erudito e popular, passeou com desenvoltura por diferentes classes sociais, testou limites de experimenta��o e comunicabilidade, fazendo com que esta se sobressa�sse em nome de uma “grande arte”.
N�o � menos verdade que nem tudo escrito por Rubem Fonseca resiste a uma lupa cr�tica rigorosa, especialmente desacertos como O selvagem da �pera e a produ��o bastante irregular dos �ltimos anos. Nada que lhe tire o brilho intenso, � bom frisar. N�o se lhe arranca assim, sem mais nem menos, a honestidade da escrita em comunh�o com o leitor, sobre o fio de uma navalha afiad�ssima.
Como rep�rter de cultura, num passado quase remoto, nunca tive a chance de encontrar o recluso Rubem Fonseca, tampouco recebi mensagens ou livros autografados como alguns amigos que tiveram essa sorte generosa. Dele, guardo o cora��o palpitante de poder v�-lo e ouvi-lo, por acaso, na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim, no come�o dos anos 1990.
Ele dividiu mesa com Caio Fernando Abreu. J� n�o recordo exatamente a pergunta feita ao escritor ga�cho. Sei que a resposta veio na forma de uma can��o de Caetano Veloso: “Uma tigresa de unhas negras e �ris cor de mel/ Uma mulher, uma beleza que me aconteceu...”. Caio puxou e Rubem certamente balbuciou ao ouvido da plateia: “Esfregando a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu/ Me falou que o mal � bom e o bem, cruel”.
Nada mais fonsequiano: a beleza de uma mulher expressa o que n�o se espera, o que n�o se aguarda na comodidade do cotidiano. O corpo do texto rasga o �bvio da realidade. E a chegada da morte do escritor, se f�ssemos uma na��o grata, invadiria a l�ngua portuguesa de tristeza e luto. Por enquanto, somos apenas prisioneiros de n�s mesmos e de nossas p�ginas viradas.
*Doutor em estudos liter�rios pela UFMG e autor de A reinven��o do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG), S�rgio de S� � professor na Universidade de Bras�lia.
Para gostar de Rubem Fonseca
Contos
A coleira do c�o (1965)
Feliz ano novo (1975)
Pequenas criaturas (2002)
Romances
O caso Morel (1973)
Bufo & Spallanzani (1985)
E do meio do mundo prostituto s� amores guardei ao meu charuto (1997)