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Estado de Minas

A com�dia humana de Bocaccio

As hist�rias ardilosas e picantes de Decameron, lidas em um pal�cio de Floren�a durante a peste negra, podem ser um eficiente ant�doto para a solid�o do isolamento social


postado em 22/05/2020 04:00 / atualizado em 22/05/2020 07:55


Especial para o EM

Em 17 de mar�o, iniciei meu isolamento, na indecente esperan�a de conseguir colocar a leitura em dia. H� anos adio a leitura de Ulisses, por exemplo. Dadas as circunst�ncias, pensei n’A peste, de Camus, presente em 10 entre 10 listas de leituras pand�micas. Ou Peste e c�lera, do franc�s Patrick Deville. Ou Os noivos, de Alessandro Manzoni. Mas eles podem esperar. Pelo rumo das coisas, certamente ainda chego l�. 

Fiz uma escolha um tanto �bvia, ainda que conste daquelas listas de livros citados, mas n�o lidos. Decidi iniciar o isolamento lendo hist�rias contadas nos arredores de Floren�a, num pal�cio vazio, arrumado e com uma boa adega, contando hist�rias uns para os outros durante a peste negra. E, assim, neste mesmo dia, peguei minha edi��o do Decameron, da L&PM, com tradu��o de Ivone C. Benedetti. Idealmente, passaria os primeiros 10 dias acompanhando as hist�rias de Pampinea e seus amigos.

Obviamente, n�o foi o que aconteceu. Fui tragado pelo home office, reuni�es remotas, ferramentas do Google. Tamb�m descobri o quanto custa manter um apartamento minimamente habit�vel – tarefa que os jovens de Boccaccio n�o desempenhavam. Para nossa felicidade, Boccaccio n�o conhecia o teletrabalho ou a videoconfer�ncia. Mas deu para ler em 20 dias.

Meu primeiro contato com Boccaccio foi aos 15 anos, atrav�s da antologia Mar de hist�rias, organizada por Paulo R�nai e Aur�lio Buarque de Holanda. No primeiro dos 10 volumes, o judeu Melquisedeque evita, com uma narrativa de tr�s an�is, um enorme perigo que lhe fora preparado por Saladino. Naquele momento, imaginei a obra como “apenas” uma colet�nea de contos, tal como a pr�pria cole��o que estava lendo. 

A escolha de R�nai e Aurelio foi muito feliz, mas, acima de tudo, bem-comportada. Basta ler algumas das narrativas para entender a raz�o pela qual a Igreja a condenou � �poca, procedimento que seria revivido s�culos depois, na China de Mao, na Espanha franquista e mesmo em cidades do Sul dos Estados Unidos: brigas, intrigas, conquistas, quase todas em busca de sexo. S�o amantes enganando pais, frades se aproveitando de mo�as inocentes, trai��es conjugais com finais felizes ou n�o. Se Boccaccio acrescentou “divina” � com�dia de Dante, sua obra maior pode bem ser lida como uma “Com�dia humana”, como disse Francesco De Sanctis. Uma com�dia humana 500 anos antes da que escreveu Honor� de Balzac.

Os 10 jovens j� tinham visto a morte e sofrido o suficiente. Como Sherazade, contavam hist�rias na esperan�a de chegar ao dia seguinte. N�o � pouco, e Boccaccio sabia que as hist�rias, em si, n�o curam, mas t�m impacto na nossa sa�de mental.

Decameron foi posto no rol das obras que hoje (quase) ningu�m l�, constata��o que muitos fazem tamb�m na It�lia – cl�ssicos s�o aqueles livros lidos, ou melhor, “vistos” na escola, para nunca mais na vida adulta – ainda que, em se tratando desse livro, eu duvide que se leiam hist�rias como a de Zeppa e Spinelloccio nas escolas.

Mas nada como uma nova pandemia para recuperar os cl�ssicos. Logo em 18 de mar�o, antes, ainda, do fechamento total na It�lia, saiu uma not�cia de que um grupo de jovens em Bevagna pretendia realizar o que chamavam de “Decameron 2.0” – a leitura, em 10 dias, dos 100 contos de Boccaccio. 

Os italianos estavam certos. Em meio � peste, os 10 jovens contavam hist�rias que n�o tinham absolutamente nenhuma rela��o com toda aquela desgra�a. � o que os italianos ao longo das in�meras pestes que enfrentaram. � o que precisamos em 2020. 


DECAMERON
• De Giovanni Bocaccio
• Tradu��o de Ivone Benedetti.
• L&PM Editores
• 632 p�ginas
• R$ 58,80

Fabio Guimar�es Bensoussan � procurador da Fazenda Nacional e mestre em direito empresarial


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