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Estado de Minas LIVRO

Luiz Henrique Mandetta fala sobre o di�rio de um ano sombrio

Leitor de Albert Camus e Rubem Fonseca nas noites insones, ex-ministro antecipa o enfoque do livro que publicar� pela Companhia das Letras sobre o per�odo que combateu a pandemia at� ser demitido do Minist�rio da Sa�de: "Vai ter bastidores, mas justificados em fun��o do drama da doen�a"


postado em 22/05/2020 04:00 / atualizado em 22/05/2020 09:47

(foto: EVARISTO Sá/afp)
(foto: EVARISTO S�/afp)
Da palavra falada � escrita. Pouco mais de um m�s depois de ser demitido pelo presidente da Rep�blica Jair Bolsonaro, o m�dico e ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta trocou as reuni�es com sua equipe no Minist�rio da Sa�de e entrevistas coletivas di�rias por outro compromisso: escrever um livro. Com previs�o de lan�amento ainda indefinida entre julho e agosto, a obra ser� lan�ada pela Companhia das Letras e relatar� os bastidores do combate � pandemia at� a demiss�o depois de Mandetta insistir em conduzir o enfrentamento segundo orienta��o de cientistas, infectologistas, pneumologistas e os protocolos da Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS).

“N�o ser� um livro de fofocas”, antecipa. Segundo Mandetta, � a sua tentativa de contribuir com a documenta��o hist�rica do per�odo de sua gest�o na pasta entre 24 de janeiro deste ano e 16 de abril. Come�a, portanto, no �ltimo dia em que o ministro acompanhava o F�rum Econ�mico Mundial, em Davos, na Su��a – e a OMS reconheceu o problema na China – e vai at� a data em que, pela sua conta no Twitter, confirmou que havia sido demitido depois de breve reuni�o com o presidente no Pal�cio do Planalto.

 

Pelo telefone, de sua casa, em Campo Grande, Luiz Henrique Mandetta concedeu entrevista exclusiva ao Estado de Minas. Leitor entusiasmado, ele se empolga ao falar sobre a epidemia de var�ola na Guerra do Paraguai, que dizimou quase a metade da popula��o de Cuiab�, al�m de revelar as suas companhias em noites insones: Kalil Gibran, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca e Plat�o – fez uma alus�o ao Mito da Caverna, em entrevista coletiva no dia seis de abril, quando anunciou que permaneceria � frente do Minist�rio da Sa�de, cita��o interpretada como uma sutil ironia ao comportamento de Bolsonaro. Menos de tr�s semanas depois, foi demitido. E, na despedida, referiu-se ao presidente como uma pessoa “extremamente humanista”. A express�o, refer�ncia aos humanos que acreditavam ser capazes de vencer a morte, est� em outro livro que Mandetta releu recentemente: A peste, do franc�s Albert Camus. 

 

Por que o senhor decidiu escrever um livro sobre o combate � pandemia no tempo em que permaneceu no Minist�rio da Sa�de?

Quando fui pesquisar sobre o que havia de produ��o liter�ria cient�fica sobre a gripe espanhola no Brasil, de 1917, descobri que era est�ril. Os registros s�o muito poucos. Ent�o, quis fazer uma obra para documentar. Que permane�a. Quem poderia imaginar que, no s�culo 21, ter�amos uma doen�a infecciosa sem tratamento, e a �nica recomenda��o seria o isolamento? Parece uma grande fic��o cient�fica.

 

O livro vai revelar os embates com o Planalto e com as alas ideol�gicas que desqualificavam a doen�a tratando-a como uma “gripezinha”?

O livro � sobre esse per�odo, mas n�o vai ser de fofoca pol�tica. L�gico que vai ter bastidores, mas sempre justificados em fun��o do drama da doen�a. As passagens pol�ticas v�o ser aquelas que t�m correla��o com esse per�odo. Come�o o relato no dia em que a Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS) reconhece o problema na China; eu estava no F�rum Econ�mico Mundial, em Davos, na Su��a (�ltima semana de janeiro). Parto, ent�o, de Davos e vou at� o dia de minha sa�da do Minist�rio.  

 

O senhor nasceu em uma regi�o marcada por um dos maiores conflitos da hist�ria do Brasil: a Guerra do Paraguai. � poss�vel tra�ar paralelos entre uma guerra e o combate a uma pandemia?

Guerra e epidemias sempre andaram juntas. A Guerra do Paraguai tem passagem interessante relacionada � epidemia de var�ola. Quando os paraguaios invadiram o sul do Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), depois de atacar e ocupar o Forte de Nova Coimbra, avan�aram e tomaram em janeiro de 1865 as cidades de Albuquerque e Corumb�, que ficaram quatro anos na m�o dos paraguaios. O fato � que, quando o presidente da prov�ncia de Mato Grosso teve as informa��es de que o momento era bom para contra-atacar, uma coluna de mil homens desceu de Cuiab�. Retomou Corumb� com alguma facilidade, havia somente 30 a 40 paraguaios.

Os brasileiros hastearam a bandeira nacional. O presidente da Prov�ncia estava distante a uma hora de Corumb�, aguardando not�cias. Mandaram avis�-lo de que haviam conquistado a cidade, mas estava havendo um surto de var�ola e alertaram-no para n�o entrar. A coluna de combatentes brasileiros retornou para Cuiab�, que tinha uma popula��o estimada de 11 mil pessoas. Houve em Cuiab� cinco mil mortos pela var�ola, que inclusive n�o s�o contabilizados como mortes de guerra. 

 

H� um livro sobre este per�odo que � particularmente marcante para o senhor?

Li recentemente o livro Maldita guerra: nova hist�ria da Guerra do Paraguai (Companhia das Letras), de Francisco Doratioto (historiador paulista), que detalha toda a din�mica militar dos cinco anos de luta. Tamb�m na Primeira Guerra Mundial, tivemos a ampla e mortal pandemia que ficou conhecida como a gripe espanhola (1918-1919), que s� leva o nome porque a Espanha era neutra no conflito e noticiava a doen�a.

As guerras s�o feitas de segredos e estrat�gia: o inimigo voc� espiona, conhece, tenta surpreender. J� nas guerras contra os v�rus e as bact�rias n�o pode haver segredos: o v�rus n�o negocia com ningu�m, simplesmente � o que ele �. E, todas as vezes em que as pessoas torturam n�meros e n�o dizem a verdade, a maior v�tima � a popula��o.

 

Em que momentos iniciais a falta de transpar�ncia foi mais vis�vel nesta epidemia?

Tivemos uma falha de comunica��o absurda. O pano de fundo foi a maneira como a China tratou a doen�a no in�cio e como a apresentou para o mundo. Um pa�s que tem 1,5 bilh�o de habitantes, relata s� no final e que a doen�a ficou apenas em uma cidade? A OMS validou que esse v�rus, se controlado no come�o, n�o se espalharia. Mas a verdade � que, na China, n�o sabemos o que aconteceu.

 

Quando o senhor teve a dimens�o da gravidade do problema?

S� come�amos a ter no��o da gravidade das perdas humanas quando a Covid-19 chegou na It�lia. Nas sociedades ocidentais, a informa��o que retrata a nossa rela��o com a vida e com o processo de envelhecimento � totalmente diferente daquela na sociedade oriental. A� come�amos a ver o que acontecia na Espanha, na Fran�a, na Inglaterra e a ter uma ideia de como iria se comportar em nosso pa�s. Mas aqui temos maior diversidade cultural e populacional, abordada em Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre. Por exemplo: o �ndio tende a fugir para a floresta, para escapar da doen�a do branco que dizimou tantas tribos.

Vamos lembrar, que os Tamoios, para citar esta tribo, foram dizimados em S�o Paulo pelo sarampo trazido por Anchieta e N�brega. J� o negro n�o podia fazer o mesmo. Vivia em ambiente insalubre, nas senzalas, onde doen�as como a difteria se propagavam. Nessa hora entravam os brancos, que faziam procedimentos higienistas:  pegavam os doentes, isolavam, matavam porque tinham medo de a doen�a contaminar a casa grande.

 

Como o senhor lidava com o negacionismo da Covid-19 no alto escal�o da Rep�blica?

As epidemias mexem muito com a sociedade. Quando estudamos as rea��es humanas, sempre que temos not�cia ruim na �rea de sa�de, a primeira rea��o � negar. essa fase, quando � uma doen�a familiar, normalmente a pessoa diz: “Vou pedir uma segunda opini�o, vou a um segundo m�dico”. Vai no segundo e este diz a mesma coisa. A pessoa vai de nega��o em nega��o at� o passo seguinte: a raiva. Ela come�a a se perguntar: “Mas, por que eu?” Briga com Deus: “Sou uma pessoa t�o boa. Vai quebrar a minha loja, o meu com�rcio.”

A rejei��o aos fatos � ampliada pelo �dio. Depois vem a fase de rendi��o: a pessoa fica nocauteada em p�; fadiga emocional, depress�o. Nesta fase � comum at� o suic�dio. Com a ira, v�m a viol�ncia dom�stica e a agress�o �s pessoas pr�ximas. Nesta epidemia vivemos intensamente a fase da nega��o. Tem alguns que ainda est�o nessa fase. Muitos est�o na etapa da raiva contra o ministro, contra o m�dico, contra o pronto-socorro, contra o prefeito, contra o governador. Raiva, raiva. S� depois que passar a depress�o, � que a pessoa cai em si. Alguns pensam: “O que posso fazer para reconstruir?”. Gosto sempre de citar o exemplo da m�e do Cazuza (Lucinha Ara�jo), que, depois da morte do filho, montou a Funda��o Cazuza para evitar casos de Aids em outras fam�lias e a luta passa a ser a raz�o de sua vida.

Se eu n�o ficasse ali no momento da “gripezinha”, jamais ajudar�amos as pessoas a entender, a aceitar e a ajudar a cooperar. Tive de ter autocontrole, recorri a leituras e � minha espiritualidade. Eu leio muito e acabo relendo muito tamb�m. Reli os Di�logos de Plat�o, a Alegoria da Caverna. Voltei a O Profeta, de Kalil Gibran. Tamb�m reli Rubem Fonseca, Rachel de Queiroz. �s vezes estava lendo mecanicamente, sem estar no livro, na hist�ria. Era uma tentativa de relaxar e pegar no sono. Eu n�o conseguia dormir.

 

Quando um presidente da Rep�blica nega a gravidade de uma epidemia, qual o impacto na sociedade? 

Cada um nega por um motivo de foro �ntimo. A nega��o nunca � homog�nea entre as pessoas. H� quem negue porque adoece e negue at� a informa��o da doen�a � pr�pria fam�lia e a si mesmo. Tem gente com diagn�stico de HIV, nega, e n�o conta nem para os parceiros. Tanto que a fase t�pica da nega��o � dram�tica, em que h� mais contamina��o. No caso do personagem que mais nega, a nega��o vem dentro de uma perspectiva de debacle econ�mico, de inviabiliza��o de sua estrat�gia pol�tica. A crise econ�mica � um tempero ruim para quem tem aspira��es pol�ticas. S� que o v�rus vai se colocando como um fato e a nega��o � bombardeada pelo fato. Quem nega adorar criar hist�rias para dar suporte � nega��o. Mas a realidade � muito dura.

 

Como avalia a postura de segmentos da sociedade que alegam a liberdade individual para n�o usar m�scara e fazer aglomera��es, colocando em risco a sa�de coletiva?

Vamos entrar a� no questionamento da pr�pria modalidade de sociedade constru�da nos �ltimos anos, voltada para o consumo. Essa pr�pria sociedade, quando impede o consumo, entra em transe coletivo, pois vive do consumo. Desde as pessoas mais carentes, que est�o em absoluta exclus�o, vivendo dos restos produzidos pelas sociedades de consumo, n�o t�m mais a quem pedir. Os shoppings s�o templos de consumo, onde as pessoas mais gastam. Tudo isso levantou o questionamento, porque o motivo para o qual a proibi��o do consumo foi imposta era a preserva��o da vida, do sistema de sa�de, principalmente para 80% que s�o dependentes do SUS e precisam ter acesso � sa�de. Observo tamb�m muito o comportamento das fake news, que v�m do anonimato, passam para o compartilhamento coletivo e v�o formando o caldo de �dio, de ira, fazendo a fase negacionista aumentar.

Isso � usado por aqueles que querem negar. Vimos de tudo, aqueles que queriam desrespeitar as recomenda��es para provar que a teoria negacionista estava certa. Tenho colegas m�dicos, que come�aram a trazer teorias de cura, ch�s de vitamina D. Vi pastores de igreja prometendo cura. E quando lemos A Peste, de Albert Camus, vemos isso retratado em maior ou menor escala: continua sendo as mesmas sociedades, as mesmas rea��es, s� que agora, em uma sociedade informatizada. Mas � o mesmo ser humano, com as mesmas d�vidas, mesma pequenez diante da natureza e das for�as da natureza, reagindo com a sua mesma mesquinharia e cegueira. H� alguns, contudo, que est�o fazendo deste, um momento para reflex�o: passam rapidamente das primeiras fases de nega��o e raiva, chegando � reconstru��o. Que nos sirva de li��o este momento, a import�ncia da ci�ncia; que a gente aprenda, que precisamos organizar melhor nosso sistema de sa�de, que este n�o se cria da noite para o dia; que n�o devemos depender de um �nico pa�s para adquirir insumos. Que as v�timas sirvam de inspira��o para a fase de recupera��o econ�mica, social, moral, cientifica e �tica da sociedade brasileira.

 

Vivemos no Brasil um colapso dos sistemas de sa�de em alguns estados. O senhor se arrepende por ter encerrado o Programa Mais M�dicos com a sa�da de profissionais cubanos no atendimento de ponta em locais onde o m�dico brasileiro nem sempre est�?

Em absoluto. Lamento muito � que as faculdades apresentem um melhor programa de forma��o. Estamos formando 35 mil profissionais por ano; ser�o 350 mil por d�cada. Passamos de 148 faculdades em 2013 para 323, em 2015. Ent�o, fizemos uma forma��o por atacado, de baixa qualidade. O Brasil precisa melhorar a qualidade. Temos forma��o � dist�ncia para enfermagem, farm�cia, bioqu�mica. � l�gico que esse tipo de forma��o vai colher mais erro.

Ent�o temos uma cole��o de diplomas para dependurar na parede, mas sem qualidade. O ensino de como tratar o ser humano � presencial, � de pegar na m�o do aluno. Medicina n�o � ci�ncia; � uma arte. N�o se aprende se n�o houver conv�vio com um bom artista


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