(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas TABU

Romance Crocodilo aborda o mist�rio do fim da exist�ncia

Livro de Javier A. Contreras enfoca com coragem o maior tabu da humanidade ao narrar as dores profundas de um homem que tenta explicar o inexplic�vel ato do filho, o suic�dio


postado em 22/05/2020 04:00 / atualizado em 22/05/2020 07:48

“Hoje, meu filho Pedro pulou da janela do seu apartamento. Ele morava no d�cimo primeiro andar de um edif�cio antigo, de arquitetura cl�ssica, em uma rua pequena e charmosa, tomada de �rvores, que destoava muito das amplas e movimentadas avenidas ao redor. Ainda que houvesse sua cota de circula��o de pessoas, o lugar era quase uma ilha de tranquilidade em meio ao caos do centro da cidade. Isso, por�m, n�o deve ter feito a menor diferen�a no momento em que Pedro decidiu se jogar l� de cima e quebrar, com essa atitude, o clima de harmonia daquele pequeno trecho do bairro. Morreu na hora, me disseram no IML.”

Assim, de forma crua e direta, o escritor Javier A. Contreras come�a seu livro Crocodilo (Companhia das Letras), j� incomodando e fazendo o leitor refletir sobre um dos piores, talvez o pior, tabu da humanidade, o suic�dio. E, no caso, o do filho, que causa dor mais profunda ainda ao pai e � m�e. Se a morte natural j� � um desafio intranspon�vel, mas aceit�vel diante da finitude do corpo, o suic�dio � inadmiss�vel e inexplic�vel, n�o importa a motiva��o.

Longe de espantar o leitor, Crocodilo – que foi escolhido melhor romance de 2019 pela Associa��o Paulista de Cr�ticos de Arte  (APCA) – consegue fisg�-lo. Isso porque mergulha fundo nos sentimentos de um homem vivido. � o drama do jornalista Ruy, editor de um grande jornal, que aos 73 anos � surpreendido pelo ato inimagin�vel do filho Pedro, de 28, um documentarista aparentemente bem-sucedido e premiado, que pula do 11º andar do pr�dio onde mora.

Primeiro vem a nega��o, foi uma queda acidental ao trocar a cortina da sala ou limpar a janela. Depois, a resigna��o diante do tabu que ningu�m quer discutir, nem fam�lia nem o poder p�blico nem a m�dia nem a sociedade, pelo contr�rio, � omiss�o sobre omiss�o. O senso comum � que divulgar suic�dio � estimular outras pessoas a se matarem. Pois Contreras p�e abaixo esse dilema maldito de forma corajosa e objetiva na boca de Ruy, sem rodeios ou devaneios. Leva o leitor para o cora��o e a raz�o do pai em busca de explica��o. A �nica forma de tentar aceitar � saber o porqu�.

As evid�ncias s�o soco na cara, tanto que suic�dio � palavra  proibida. “Em nenhum momento, qualquer um de n�s pronunciou a palavra dura e inc�moda que se tornou um tabu de propor��es universais: suic�dio. Preferimos dizer: trag�dia. � quase sempre assim. A palavra � escamoteada desde o in�cio e vai permanecendo na obscuridade das entrelinhas at� finalmente todas as pessoas, das mais distantes �s mais pr�- ximas, sa�rem do luto e resolver seguir suas pr�prias vidas”, pensa Ruy.

Ele se desespera, d� vexame no vel�rio, desaparece de casa, se embebeda, para de se alimentar, � internado, foge do hospital. Amparado pelo melhor amigo e pela mulher, consegue sobreviver. Mas precisa amainar a dor, quer uma explica��o. E, ent�o, volta a ser o rep�rter que j� foi um dia, passa a investigar as causas do suic�dio do filho como um caso policial misterioso.

“N�o me conformava com o fato de algu�m tirar a pr�pria vida. Pedro n�o tinha os mesmos problemas sociais, raciais ou familiares dos moradores de rua que entrevistou. Ou de tantos outros. Ele tinha pai, m�e. Tinha uma fam�lia que sempre tentou dar o melhor de si. Estudou nos melhores col�gios. Viajou para onde quis. Teve uma adolesc�ncia saud�vel, sem repress�es. Tinha estudado o que queria. Tinha amigos fi�is, namoradas bonitas e inteligentes. Tinha uma carreira precoce de sucesso. Tinha tudo para estabelecer uma trajet�ria bonita e duradoura. O que mais ele queria? Para mim, naquele momento, suicidar-se era, sim, abdicar de lutar. Merda, a vida n�o era assim?! Por tudo isso, eu tinha muita raiva do Pedro”, desabafa o pai.

Ruy busca resposta nas conversas com a m�e, vai atr�s da namorada, do amigo e at� do psic�logo do filho para tentar desvendar as raz�es materiais, banais ou filos�ficas. “Eu n�o poderia simplesmente aceitar e corroborar a ideia de uma morte art�stica, po�tica, metaf�sica ou qualquer coisa do g�nero, que alguns propagavam na internet”, reflete. E mais ainda: “Nascidos depois das guerras, das depress�es econ�micas e das ditaduras militares, os filhos da minha gera��o tiveram uma exist�ncia um pouco menos conflituosa e mais serena do que a de gera��es anteriores. Manter e aprimorar tudo aquilo que havia sido conquistado talvez fosse o maior desafio. Uma miss�o mais paliativa; dif�cil, mas menos radical. Poderia ser isso. A aus�ncia de um inimigo. De um objetivo claro com uma linha de chegada”. Ent�o, onde est� a resposta?

ENIGMA FILOS�FICO

Quem sabe na filosofia? O suic�dio de Pedro tem um enigma filos�fico inspirado no comportamento de um crocodilo. Durante um certo tempo, ainda garoto, ele pediu ao pai para lev�-lo ao zool�gico, onde filmava o maior crocodilo do local. Sempre esperava o animal se mexer, mas ele ficava sempre inerte. “Talvez Pedro tenha compreendido que algumas coisas s�o imut�veis, que simplesmente s�o o que s�o, era a natureza do crocodilo. Seria Pedro como aquele crocodilo? Como um ser que se esconde e que, entretanto, n�o quer apenas camuflar a turbul�ncia, mas tamb�m o monstro humano que deseja vir � tona”, filosofa Ruy.

Contreras fala tamb�m de uma curiosidade do menino Pedro quando perguntou � m�e, Marta, o que era um bom livro. E ela respondeu: “Um bom livro � simplesmente aquele que a gente l� e no final se sente tocado de alguma forma. Tanto quanto te fazer pensar, o bom livro te faz sentir. Pode ser um sentimento bom, ruim ou algo indiferente, como um inc�modo ou uma provoca��o, meio sem explica��o”. Curiosamente, essa � a sensa��o quando acabamos de ler Crocodilo, um livro que faz a gente pensar sobre o profundo mist�rio da vida e como um simples impulso pode acabar com tudo de repente. Contreras chama o leitor para refletir com Ruy sobre o suic�dio, os valores e as dores da exist�ncia. E o conduz a um desfecho comovente no zool�gico.

ENTREVISTA

"Guardamos segredos e turbul�ncias", diz Contreras (foto: PARADA/DIVULGA��O)
JAVIER A. CONTRERAS / Escritor e jornalista

“Todos temos nossos dem�nios internos”

Por que voc� optou pelo dif�cil tema do suic�dio, rejeitado, inclusive, por muitos leitores? O livro � baseado em caso real?
Tenho um processo criativo bastante nebuloso e intuitivo. N�o escolho temas, n�o fa�o pesquisas preliminares ou elaboro cami- nhos acerca de algo antes de come�ar a escrever. Eu simplesmente sento e come�o a escrever alguma coisa que n�o tenho a menor ideia do que ser� ou onde ir� parar. Muitas vezes esse processo d� errado e, logo, percebo que ele n�o se transformar� em algo que valer� a pena seguir. Crocodilo foi um desses casos at�picos. Nunca me imaginei escrevendo um romance que abordasse o suic�dio, mas um dia a primeira frase veio e eu senti que devia ir em frente. Obviamente que temos coisas dentro da gente, nossa bagagem de vida, nosso entorno social, as hist�rias que escutamos aqui e ali que inconscientemente me fizeram escrever o ponto de partida. Mas isso, pra mim, s� vai se revelando efetivamente durante a escrita. Ent�o, posso dizer que de alguma forma o tema me escolheu e n�o o contr�rio.

Com o tempo, fui resgatando da mem�ria hist�rias de pessoas que conheci em algum momento da vida que haviam se suicidado e isso me mobilizou muito por n�o haver pensado com mais profundidade nas �pocas em que aconteceram. Acho que por isso, enquanto es- crevia, o personagem Pedro foi se transformando numa fus�o des- sas pessoas que conheci e outras tantas que n�o conheci, cujas his- t�rias tamb�m me emocionaram muito.

O poder p�blico e a m�dia omitem casos de suic�dio com o argumento de n�o estimular outros. A cada hora, em m�dia, 90 pessoas se matam no mundo, como voc� lembra no livro. Como, ent�o, fazer campanhas para ajudar quem precisa sem divulgar estat�sticas que comprovem a gravidade do problema?
� um tema complexo. Talvez n�o seja uma quest�o s� de omiss�o, pois os dados da Organiza��o Mundial da Sa�de, ainda que com muitos problemas devido � falta de pol�ticas p�blicas efetivas, est�o a�, mas sim de enfrentamento do problema de uma maneira mais firme. Os n�meros s�o claros e assustadores e cada vez mais vemos uma popula��o com graves dist�rbios de ordem psicol�gica ou psiqui�trica, uma melancolia iminente num agravamento de quadro. Especialistas apontam a depress�o como o mal do s�culo. Jovens e idosos est�o na linha de frente do problema.

Ent�o, o que acho que deve haver � uma a��o conjunta de todas as engrenagens do sistema, desde o setor p�blico at� o privado, passando pela imprensa, num grande debate educacional acerca do suic�dio. S� a atua��o dos Centros de Aten��o Psicossocial ou do Centro de Valoriza��o da Vida n�o � o suficiente. � parte isso, por�m, vejo um grande empecilho que parte de n�s mesmos: as pessoas, em geral, t�m muito medo e muito pudor em falar sobre o assunto. No imagin�rio social, falar sobre � como incentivar, dar margem a pensamentos sobre o assunto. Entretanto, todos os especialistas dizem o contr�rio, que quanto mais cedo a pessoa descobrir sintomas e causas que possam lev�-la a um quadro irrevers�vel, mais chance ela ter� de se cuidar e impedir que isso aconte�a. A informa��o e o debate s�o os primeiros rem�dios para o conter o avan�o do suic�dio.

Os protagonistas da obra, Ruy e Marta, s�o jornalistas e tamb�m n�o sabem lidar com o suic�dio. Voc� foi rep�rter policial. Suic�dio deve ou n�o ter cobertura da im- prensa?
O jornalismo, que � de onde venho, tem essa regra de n�o se noticiarem suic�dios e eu concordo sob a �tica do respeito � privacidade da v�tima. � diferente de noticiar um assassinato que engloba dois agentes, o agressor e a v�tima, em um caso que remete � viol�ncia extrema de um indiv�duo contra outro e que ter� investiga��es, apura��es, julgamentos ou pris�es. � papel da imprensa pressionar autoridades para que se investiguem e resolvam casos assim. J� o suic�dio, ainda que tamb�m se enquadre num caso de viol�ncia extrema, tem um aspecto �nico, �mpar, pois o suicida � ao mesmo tempo o agressor e a v�tima. Dessa forma, o suic�dio n�o � considerado um crime e, sim, um ato desesperado de um ser humano.

� um caso �ntimo, privado. Portanto, eticamente, n�o � algo que deva ser noticiado. Nos �ltimos anos, por�m, a grande quantidade de famosos que cometeram suic�dio fez com que muitos ve�culos, em alguns momentos, se vissem na obriga��o de noticiar. Casos como os de Kurt Cobain, Robin Willians e Anthony Bourdain, por exemplo. Ou dos atores brasileiros Walmor Chagas e Flavio Migliaccio. Como dizer aos leitores que esses grandes artistas amados pelo grande p�blico foram apenas encontrados mortos dentro de casa, ou ao lado do pr�dio onde viviam ou num quarto de hotel? Abordo essa dicotomia no livro atrav�s do Ruy, o que nos leva a um novo questionamento: como equacionar isso?. Acho que a cada caso de repercuss�o se devia fazer uma grande mat�ria falando do tema, com dados, n�meros e especialistas dissecando a problem�tica.

O cerne do livro � a analogia entre Pedro e o crocodilo inerte e sau- d�vel que ele admirava no zo- ol�gico. O pai conclui: “Como um ser que se esconde e que, entretanto, n�o quer apenas camuflar a turbul�ncia impenetr�vel, mas tamb�m o monstro humano que deseja vir � tona”. O que significa? O suic�dio pode vir de uma pessoa aparentemente feliz e bem-sucedida, com era o caso de Pedro?
O crocodilo � uma met�fora do que se camufla dentro de si sob uma coura�a impenetr�vel, sob �guas escuras e aparentemente calmas, do que se apresenta apenas superficialmente, do lado de fora, atrav�s dos olhos. O que � uma pessoa feliz e bem-sucedida? � um pouco isso o que o livro quer contar. Todos somos suscet�veis a isso. Todos temos nossos dem�- nios internos. Todos somos um pouco como o crocodilo, guarda- mos segredos e turbul�ncias dentro de n�s mesmos. O caso � que pessoas muito sens�veis acabam por represar demais esses sentimentos, como � o caso do perso- nagem Pedro, e um dia se sentem sozinhas demais no mundo. Por isso, a conversa, o entendimento daquilo que se est� sentindo, a procura de ajuda profissional s�o fundamentais para quebrar a sensa��o de isolamento.

Afinal, por que Pedro se matou? Sua ideia era deixar essa conclus�o para o leitor? Ou, como filosofa Ruy, o pai: “A morte, assim como a vida, n�o tem qualquer explica��o. Tudo o que est� vivo � absurdo. Tudo o que morre � consequ�ncia de ter estado vivo”.
Acho que a conclus�o filos�fica de Ruy n�o � uma muleta sentimental de algu�m que n�o alcan�ou respostas, mas sim um pensamento bastante sens�vel e maduro de um homem de 73 anos, vivido como ele, sobre a morte do filho. O nascimento, a vida, a morte e o suic�dio s�o mist�rios que talvez s� a filosofia possa nos ajudar a compreender. � o sentido de ser humano.

Em seu ensaio O mito de S�sifo, o escritor Albert Camus diz: “Existe apenas um problema filos�fico realmente s�rio: o suic�dio. Julgar se a vida vale ou n�o vale a pena ser vivida � responder � pergunta fundamental da filosofia”. Mas o suic�dio, segundo ele, seria ilus�o de liberdade. Dir�amos, ent�o, que � um desperd�cio de vida? Um dilema eterno?
N�o enxergo o suic�dio como ilus�o de liberdade, embora cada caso tenha suas particularidades. Na minha opini�o, mais que isso, � a interrup��o urgente de um sofrimento que supera o limite daquela pessoa e que, na maioria das vezes, ocorre de maneira impulsiva, brusca e at� irracional. E isso pra mim � categoricamente diferente de ir ao encontro da liberdade. Buscar o al�vio imediato daquela dor talvez seja um termo mais adequado. Uma an�lise mais filos�fica sobre a vida, como  prop�e Camus em seu ensaio, e como Ruy faz no decorrer do livro, n�o � algo corriqueiro que a maioria dos suicidas faz, acredito. O sentimento � mais visceral e emocional e menos um pensamento anal�tico filos�fico. A emo��o supera a raz�o em todos os sentidos.

O ator Flavio Migliaccio chegou aos 85 anos e concluiu que a vida como ela � n�o vale a pena, que o Homo sapiens n�o deu certo, e se matou. O que pensar de tamanho choque?
A morte de Flavio Migliaccio pro- vocou debates acalorados nas redes sociais. Muitos defendiam a privacidade do ato, outros tantos publicaram a carta como um �ltimo manifesto do artista sobre a vida e a sociedade. Honestamente, como jornalista, a princ�pio, critiquei a exposi��o da carta de despedida dele porque, ao que parece, n�o foi divulgada pela fam�lia, e sim por policiais que tiveram o primeiro acesso ao lugar onde ele se matou. E, depois de ler, n�o compreendi esse teor que quiseram colocar. Claro que Flavio Migliaccio era um artista inteligente e que poderia ter tomado esse tipo de atitude, como tomou, a de escrever. Mas � uma carta curta, em que ele diz que sua vida foi jogada fora.

Veja bem, n�o conhe�o sua vida pessoal, mas � sabido que ele era um ator querido que passou pelos anos de ouro do teatro e da teledramaturgia brasileira nos anos 60, 70 e 80. Era um artista que participou de coisas realmente relevantes e extraordin�rias para um ator. N�o consigo imaginar uma pessoa escrevendo que foram 85 anos jogados no lixo com uma passagem pela vida t�o memor�vel se ele n�o estivesse passando por problemas. O pr�prio filho escreveu a carta aberta nas redes sociais sobre a condi��o do pai nos �ltimos tempos. Talvez a carta de Migliaccio seja am�lgama das duas coisas. Triste carta de despedida, de protesto de um artista sens�vel em crise. Era a� que a imprensa deveria entrar. A condi��o dos idosos num pa�s como o nosso, os casos de suic�dio nessa faixa et�ria. Tudo isso � importante reportar. (PN)

TRECHO DO LIVRO

“O livre-arb�trio elevado � m�xima pot�ncia de morrer por vontade pr�pria podia at� ter uma defini��o jur�dica ou filos�fica, mas ningu�m sabia exatamente tratar um caso de suic�dio. Sempre foi algo relegado �s sombras. N�o ensinado, fora da rotina, dos livros, das escolas. O suic�dio era mais uma das coisas assustadoras da vida. Uma condi��o que ningu�m gostava de acompanhar e que sempre fora desconfort�vel para todos os agentes envolvidos. Desde o faxineiro do pr�dio, obrigado a lavar o sangue j� pegajoso na cal�ada da rua, at� os familiares que, constrangidos, calam-se ou apenas fingem para si mesmo que seu ente querido foi v�tima de uma trag�dia”.

CROCODILO
De Javier A. Contreras
Companhia das Letras
188 p�ginas
R$ 64,90
R$ 34,90 (e-book)


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)