
O seu c�none particular. Quase 30 anos passados, a experi�ncia continua a ser delicioso passeio conduzido pela m�o de quem soube aliar leveza � precis�o de an�lise: o especialista generoso que comunica erudi��o sem hermetismo. Chama a aten��o hoje, no entanto, o fato de n�o haver nenhuma escritora ali. O elenco dos chamados cl�ssicos, como quase tudo na vida, se transforma, ganha novos contornos a depender de quem l�, como l�, de onde l�. Sem pretens�o de revanchismo hist�rico ou gesto ressentido, valeria hoje uma conversa (ir�nica e bem-humorada, ao gosto do escritor) sobre a aus�ncia daquela que lhe foi pr�xima na vida e no of�cio. Calvino, cad� Natalia Ginzburg? Por incont�veis motivos, a escritora deveria estar ao lado de tantos grandes criadores.
A obra de Natalia Ginzburg (1916-1991) vem sendo republicada no Brasil, e neste planeta convulsionado pela pandemia do coronav�rus � fundamental escolher na companhia de quem se vai atravessar o confinamento: atualmente, atribu�mos novos sentidos �s formas de sociabilidade, repensamos (para quem tem) o conceito de casa e ressignificamos a ideia de fam�lia e de privacidade. As pequenas virtudes (1962) e L�xico familiar (1963) crescem quando lidos neste momento preciso.
A autora foi figura fundamental da cultura liter�ria italiana junto � Editora Einaudi, n�cleo da resist�ncia pol�tica de esquerda, e interlocutora de intelectuais proeminentes na vida p�blica de seu tempo, como o pr�prio Calvino, Elio Vittorini e o primeiro marido, Leone Ginzburg, professor de origem ucraniana e militante antifascista. Nascida Levi, de fam�lia de intelectuais judeus, Natalia Ginzburg recupera em L�xico familiar a hist�ria de pai, m�e e cinco filhos na Turim durante os primeiros anos do fascismo.
A narrativa autobiogr�fica venceu em 1963 o Strega, mais importante pr�mio liter�rio italiano. Como ca�ula, narra as din�micas do grupo familiar, em uma casa onde entravam sobretudo bi�logos, engenheiros e cientistas. Entre os irm�os, a narradora destaca a experi�ncia do vocabul�rio compartilhado, de cumplicidades cotidianas, mas nada banais:
A narrativa autobiogr�fica venceu em 1963 o Strega, mais importante pr�mio liter�rio italiano. Como ca�ula, narra as din�micas do grupo familiar, em uma casa onde entravam sobretudo bi�logos, engenheiros e cientistas. Entre os irm�os, a narradora destaca a experi�ncia do vocabul�rio compartilhado, de cumplicidades cotidianas, mas nada banais:
Somos cinco irm�os. Moramos em cidades diferentes, alguns de n�s est�o no exterior: e n�o nos correspondemos com frequ�ncia. Quando nos encontramos, podemos ser, um com o outro, indiferentes ou distra�dos. Mas, entre n�s, basta uma palavra. Basta uma palavra, uma frase: uma daquelas frases antigas, ouvidas e repetidas infinitas vezes, no tempo de nossa inf�ncia. (...) para restabelecer de imediato nossas antigas rela��es, nossa inf�ncia e juventude, ligadas indissoluvelmente a essas frases, a essas palavras. Uma dessas frases ou palavras faria com que n�s, irm�os, reconhec�ssemos uns aos outros na escurid�o de uma gruta, entre milh�es de pessoas.
As palavras s�o o testemunho de um n�cleo vital que se foi, mas sobrevive na exist�ncia de uma l�ngua partilhada. Em paralelo, a pol�tica se faz presente, e desse mundo patriarcal de uma fam�lia burguesa aparentemente comum surge a �tica feminina a dar sentido aos acontecimentos da vida p�blica – todos os homens de sua casa ser�o presos, exilados ou mortos, como o marido, Leone, assassinado em 1944 pelos nazistas em uma pris�o romana.
“Uma vez sofrida, jamais se esquece a experi�ncia do mal”, alerta a autora. Tais acontecimentos terr�veis s�o relatados em tom menor, sem alarde, mas nem por isso de forma menos sofrida. Era um tempo de sapatos rotos, de fugas no meio da noite, de trocas de nomes, de documentos falsificados – maneiras poss�veis de lidar com as famigeradas leis raciais decretadas por Mussolini, que oficializavam a persegui��o aos judeus. Ainda assim, Natalia n�o adota tintas pesadas para narrar as incont�veis perdas.
Como a de Cesare Pavese, poeta e romancista, que se suicida em 1950. A morte do grande amigo � referida como a de algu�m que tem pressa e n�o quer ser pego de surpresa, recusando imprevistos. Pavese ressurge em Retrato de um amigo, dolorida cr�nica inclu�da em As pequenas virtudes, reuni�o de ensaios escritos e publicados entre 1944 e 1962 em jornais e revistas.
Como a de Cesare Pavese, poeta e romancista, que se suicida em 1950. A morte do grande amigo � referida como a de algu�m que tem pressa e n�o quer ser pego de surpresa, recusando imprevistos. Pavese ressurge em Retrato de um amigo, dolorida cr�nica inclu�da em As pequenas virtudes, reuni�o de ensaios escritos e publicados entre 1944 e 1962 em jornais e revistas.
Com O meu of�cio, de 1949, tudo parece fazer sentido. Misto de testamento liter�rio, profiss�o de f� e convoca��o, o texto deveria ser leitura compuls�ria em qualquer aula, oficina de escrita ou disciplina sobre a cria��o. Sem dogmas, tra�a o retrato sincero da escritora em um pa�s engolido pelo fascismo. Tamb�m consiste em uma reflex�o sobre trabalhos que correm de forma simult�nea, o de m�e e intelectual: “Pensava que algum dia, mais cedo ou mais tarde, o recuperaria, mas n�o sabia quando: achava que deveria esperar que meus filhos se tornassem adultos e fossem embora de mim. Porque o que eu sentia por meus filhos naquela �poca era uma coisa que eu ainda n�o tinha aprendido a dominar. Mas depois, pouco a pouco, aprendi”. O tema da maternidade e da escrita � ponto at� hoje nebuloso e merece maior debate (ainda se pergunta a autoras estreantes como conseguem produzir tendo filhos – quest�o jamais endere�ada a um homem que escreve).
No universo da grande literatura do s�culo 20, Natalia Ginzburg se declara uma “pequena escritora”. N�o vai a� falsa mod�stia – trata-se de um modo particular de se posicionar como intelectual, na recusa da grandiloqu�ncia fascista e na escolha do gesto menor diante de um mundo assolado pela guerra, pela injusti�a e pela morte. Tradutora de Proust, cr�tica liter�ria, ficcionista, militante da resist�ncia ao totalitarismo, a escritora trouxe ao longo de sua obra a feroz lucidez de palavras mais do que necess�rias. Em tempos de ret�rica vazia e abuso de poder (ontem e hoje), o pequeno em Nat�lia � op��o e virtude.
* Stefania Chiarelli � professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF e autora de O cavaleiro inexistente de Italo Calvino – Uma alegoria contempor�nea (EDUCS).
Trechos
As pequenas virtudes
“Somos continuamente amea�ados por graves perigos j� no ato de preencher nossa p�gina. H� o perigo de come�armos a tentar seduzir e a cantar de repente. Sempre tenho uma vontade louca de come�ar a cantar, devo ficar muito atenta para n�o fazer isso. E h� o perigo de ludibriar com palavras que de fato n�o existem em n�s, que pescamos por acaso fora de n�s e que enfileiramos com destreza porque nos tornamos muito espertos. H� o perigo de bancar o esperto e enganar. Como veem, trata-se de um of�cio bastante complicado: mas � o melhor que h� no mundo” (De O meu of�cio).
“Jamais como hoje a sorte dos homens esteve t�o estreitamente conectada, umas �s outras, de modo que o desastre de um � o desastre de todos. Ent�o se verifica esse fato estranho: que os homens se encontram estreitamente ligados uns ao destino dos outros, de modo que a queda de um arrasta a queda de milhares de outros seres, e ao mesmo tempo todos est�o sufocados pelo sil�ncio, incapazes de trocar uma palavra em liberdade. (...)
O sil�ncio deve ser contemplado e julgado no �mbito da moral. Porque o sil�ncio, assim como a ac�dia e a lux�ria, � um pecado. O fato de que seja um pecado comum a todos os semelhantes de nossa �poca, de que seja o fruto amargo de nossa �poca mals�, n�o nos exime da obriga��o de reconhecer sua natureza e de cham�-lo por seu verdadeiro nome” (De Sil�ncio)
O sil�ncio deve ser contemplado e julgado no �mbito da moral. Porque o sil�ncio, assim como a ac�dia e a lux�ria, � um pecado. O fato de que seja um pecado comum a todos os semelhantes de nossa �poca, de que seja o fruto amargo de nossa �poca mals�, n�o nos exime da obriga��o de reconhecer sua natureza e de cham�-lo por seu verdadeiro nome” (De Sil�ncio)
L�xico familiar
“Depois da guerra, o mundo, ao contr�rio, parecia enorme, desconhecido e sem fronteiras. No entanto, minha m�e recome�ou a habit�-lo como podia. Recome�ou a habit�-lo com alegria, porque era alegre seu temperamento. Seu esp�rito n�o sabia envelhecer e jamais conheceu a velhice, que � estar afastado num canto, chorando o esfacelamento do passado. Minha m�e viu o esfacelamento do passado sem l�grimas, e n�o usou luto por ele.”
“No tempo do fascismo, os poetas viram-se obrigados a exprimir somente o mundo �rido, fechado e sibilino dos sonhos. Agora, havia de novo muitas palavras em circula��o, e a realidade parecia de novo ao alcance da m�o; por isso, esses antigos jejuadores puseram-se a vindimar com deleite (...). Mas depois aconteceu que a realidade se revelou complexa e secreta, indecifr�vel e obscura n�o menos que o mundo dos sonhos; e revelou-se ainda situada do outro lado do vidro, e a ilus�o de ter quebrado esse vidro revelou-se ef�mera.”

As pequenas virtudes
De Natalia Ginzburg
companhia das letras
123 p�ginas
R$ 44,90
L�xico familiar
De Natalia Ginzburg
companhia das letras
280 p�ginas
R$ 44