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Estado de Minas LITERATURA

Fortaleza feminina: uma reflex�o sobre a representa��o da mulher na literatura brasileira

Reflex�o parte da leitura de A natureza da mordida, de Carla Madeira


postado em 29/05/2020 04:00 / atualizado em 29/05/2020 08:46

Carla Madeira: segundo livro da escritora mineira é um tratado de amizade-amor(foto: Fernando Rabelo)
Carla Madeira: segundo livro da escritora mineira � um tratado de amizade-amor (foto: Fernando Rabelo)
Em 2020, as hist�ricas Declara��o e Plataforma de A��o de Pequim est�o fazendo bodas de prata. Tidas como o maior projeto sobre o progresso dos direitos das mulheres, foram endossadas por 189 governos. Celebrando-as, evoco um romance primoroso cujo eixo � o feminino: A natureza da mordida (2018), da jornalista e publicit�ria Carla Madeira. N�o vamos fazer paralelos entre o projeto e o romance, pois aquele nem tratou de quest�es liter�rias, mas de situa��es do g�nero no mundo. A inten��o aqui � comentar cen�rios na representa��o da mulher em nossa literatura.

Inspirada na orelha do volume, a cr�tica tem-lhe classificado como romance sobre a amizade, marcado pelo amor � literatura. O livro � mais do que isso. Na tematiza��o da amizade, Carla alcan�a a perigosa fronteira do amor, perigosa n�o no sentido de qualquer preconceito de g�nero, denega��o sentimental ou mascaramento de amores homossexuais femininos. Sob v�rios �ngulos, a romancista embaralha essas fronteiras, ao mesmo tempo em que procura tra�ar uma linha divis�ria precisa. � sua estrat�gia narrativa.

Este � um dos v�rios encantos do romance: o leitor cair na boa armadilha de que vai ler ou est� lendo o amor entre mulheres, o Eros s�fico, mas encontrando, pelo caminho do enredo, a��es e situa��es do Eros demarcadas no horizonte h�tero. Entre as amizades/amores da obra, compostos e decompostos em rede familiar, destacam-se o de Ol�via por Bi� e vice-versa, e o de Ol�via por Rita e vice-versa. H� ainda outros pares, como Catarina e V�tor, Bi� e Teo, Laura e Eduardo

O t�tulo remete literalmente � mordida de Teo, ex-marido de Bi�, no irm�o dele, causando-lhe a perda de um olho e marcando-os para sempre. No entanto, interpreto que, metaforicamente, as figuras romanescas vivem e convivem com “a natureza da mordida”. N�o essa mordida “fraternal”, entre irm�os, nem a mordida da ma�� da �rvore ed�nica do bem e do mal, muito menos a envenenada do conto infantil, oferecida � menina da floresta, agenciada por agentes mal�ficos. 

As mordidas do mito ou da lenda – das quais Eva e Branca de Neve mal ou bem se salvam – nem se comparam � mordida da vida, “essa senhora banguela [que] n�o teme a feiura e faz coisas medonhas com sua boca murcha que n�o lhe inibe as gargalhadas” (p. 20). As coisas que essa velha e arrogante senhora faz nada salvam, ao contr�rio. Ela, inclusive, constr�i pontes para a morte. � uma mordida cravada em fogo: n�o h� nada a fazer porque suas marcas est�o l� (p. 80). Sua natureza � implac�vel, pois a sofrem todas as personagens do romance, acredito que “sem exce��o”.

AMIZADES-AMORES

O “mundo misturado” de amizade-amor, onde tudo � e n�o �, como quis Guimar�es Rosa em v�rios momentos de sua obra, perpassa o romance de Carla. Muito j� se escreveu sobre o amor, e nos mais diversos campos do saber, inclu�da neste a literatura. Parece haver certo consenso entre os especialistas de que se ama aquilo que n�o se tem, aquilo que se lhe falta – o que � conhecido por “tormento de amor” – express�o de Comte-Sponville, no Pequeno tratado das grandes virtudes. 

Na transposi��o do amor para a amizade, as personagens da romancista desmentem muitos dos escritos sobre o amor. As amigas romanescas s�o atormentadas pela falta. Esta � constru�da no desenrolar da hist�ria e vai desaguar na morte – tamb�m uma senhora banguela, realidade que n�o nos escapa – “enquanto nos agarramos a ela como n�ufragos”, invertendo o dito na ep�grafe: “A realidade nos escapa / como um peixe que agarramos da �gua com as m�os, / enquanto nos agarramos a ela como n�ufragos.” � poss�vel que no amor-amizade / amizade-amor o que buscamos no outro � mais do que aquilo que n�o se tem, mas o imposs�vel de se ter. Essa � uma situa��o comum no romance.

Seu eixo � o encontro entre a jovem Ol�via – marcada pelas rela��es dif�ceis com a m�e – e a velha Bi�, que se dedicou/dedica � psican�lise e � literatura. S�o as duas narradoras e tamb�m cada qual met�fora desses campos do conhecimento. Os encontros de ambas acontecem numa banca de jornais e revistas em Belo Horizonte, que tamb�m abriga um pequeno sebo com mesas em que elas conversam, escrevem ou leem. Cada qual tem os seus problemas familiares, que v�o sendo revelados aos poucos, nos di�logos orais e no papel, sob a forma de confid�ncias e mem�rias

Tais di�logos n�o t�m car�ter professoral nem autorit�rio, apesar da diferen�a de idade entre as mulheres. Muito mais do que simples troca de experi�ncias, a autora vai revelando o que � e como funciona a capacidade de ouvir, de interessar-se pelo discurso amigo – coisa rara nos tempos atuais – lembrando que a idosa foi professora e psicanalista. Ironicamente, trabalhou com a mem�ria alheia, e no tempo atual tem problemas com a pr�pria.

Assim, o romance, al�m de ser um “tratado” de amizade-amor, � tamb�m um “dicion�rio” ou sess�es do ouvir (psicanaliticamente) o outro, por�m, em m�o dupla: ambas as personagens se escutam e se interrogam, de igual para igual. A amizade, a confid�ncia, o amor feliz que se transforma em infelicidade, a solid�o irremedi�vel, a incompreens�o sem possibilidade de esclarecimentos, o abandono e a morte pairam acima de todas as coisas.

As narradoras contam a si mesmas, e uma � outra, suas pr�prias hist�rias, num processo lento e sofredor, repleto de longas pausas, �s vezes em dias distanciados, com muitas lacunas conscientes e inconscientes. Elas se envolvem num emaranhado de narrativas sobre as respectivas fam�lias, do passado para o presente e deste para aquele. Assim, fazem do livro um jogo de espelhos, refletindo como cada membro familiar se reduplica em outros membros. Reflete sobretudo como o encadeamento de sucessos e fracassos � constru�do e destru�do no universo familiar, repetindo-se o bord�o “s� a vers�o dos vivos permanece”. Nesse sentido, o livro prestar� tamb�m um �timo servi�o aos psicanalistas terapeutas de casal e fam�lia.

PLANOS NARRATIVOS

A sofistica��o na montagem dos planos narrativos � uma das marcas do romance, por�m, n�o dificulta nem desestabiliza a flu�ncia da leitura. Esta se sustenta na narrativa biogr�fica de Ol�via, que ela l� para Bi�. A autora joga essa leitura de fatos passados – mera leitura – com os acontecimentos do presente, ou seja, as a��es praticadas por Bi� em seu atual dia a dia. Interessante observar as marcas diferenciais da linguagem da autora-narradora em compara��o com a das personagens-narradoras – Ol�via e Bi�. 

Poucos escritores s�o capazes de trabalhar bem essas marcas diferenciadoras no discurso das personagens, como faz Carla Madeira. No estilo e no padr�o discursivo de Ol�via avultam uma narradora fluente e solta, cujo objetivo principal � narrar fatos, quase como se fosse uma jornalista produzindo uma mat�ria. Em contrapartida, no discurso de Bi� predominam a reflex�o, a cita��o indireta, a erudi��o e a experi�ncia da psicanalista “avariada”. 

Quando a autora desloca para Bi� a responsabilidade pelas apropria��es liter�rias, referenciando-as no final do livro, talvez cometa um pequeno equ�voco ao almejar uma originalidade discursiva num grau de pureza inexistente na literatura. � o que chamamos de transtextualidade. Entretanto, o mais comum � a intertextualidade, categoria h� anos explorada pela te�rica Julia Kristeva, que define o texto como uma permuta��o de textos, v�rios enunciados tomados de outros textos, que se interpenetram e neutralizam uns aos outros. � comum, tamb�m, o escritor nem se dar conta desse fen�meno, como no caso da frase “sem sofrimento n�o h� literatura”, de Or�genes Lessa, e que se encontra incorporada no texto do romance, sem aspas nem nas refer�ncias finais. Mas esse � um procedimento comum aos escritores.

Por fim, gostaria de assinalar a fortaleza do feminino no romance. Ele � um leque de hist�rias de mulheres de diversas faixas et�rias – algumas retratadas desde a inf�ncia – encenado numa Belo Horizonte que ainda sobrevivia de anos dourados. Nele, os leitores e leitoras v�o encontrar literarizadas diversas categorias de mulheres da realidade, cada qual vivendo a seu modo as boas e as m�s experi�ncias da condi��o feminina. 

Estas s�o as variadas categorias do feminino recriadas pela escritora: a mulher-crian�a rejeitada pelas vizinhas, devido a cal�nias; a menina rica e por isso invejada; a adolescente traidora, porque seduzida pelo charme do rapaz amado pela amiga; a jovem que perde sua melhor amizade-amor sem saber o motivo; a mulher casada v�tima de sua beleza e fidelidade; a mulher trabalhadora nos servi�os dom�sticos; a mulher submissa a um marido mau- car�ter; a mulher-filha que n�o se relaciona bem com a m�e ou que sai em busca do pai que a abandonara; a mulher profissional idosa, com problemas de sa�de f�sica e mental; a mulher profissional jovem e dedicada ao trabalho.

No geral, mulheres em busca do espa�o de direito, que procuram lidar com a rejei��o, o abandono, a discrimina��o e o desamor, nos encontros e desencontros e perigos desta vida. Afinal, 25 anos da Declara��o e da Plataforma de Pequim, em mar�o de 1995, ainda hoje avan�ando no fortalecimento do feminino, merecem comemora��o com a leitura do romance de Carla Madeira. 

*Let�cia Malard � professora em�rita de literatura brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais e autora, entre outros livros, de Literatura e dissid�ncia pol�tica (ensaios) e Divina dama (romance), publicados pela Editora UFMG

A natureza da mordida
De Carla Madeira
 quixote
268 p�ginas
R$ 52,90 


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