
Em termos de estrutura narrativa, quais as diferen�as de A tens�o superficial do tempo para seus romances anteriores?
Esse livro segue a voz narrativa que minha literatura assumiu desde O fot�grafo, e se intensificou nos romances seguintes, como Um erro emocional, O professor, A tradutora, A tirania do amor. Mas sinto que agora eu radicalizei alguns procedimentos.
O livro inteiro, o seu tempo cronol�gico, por assim dizer, se passa em praticamente meia hora, sempre na perspectiva solit�ria do personagem C�ndido, num momento de aguda crise pessoal por uma fratura amorosa. Neste caminho de “juntar os cacos” da mem�ria, o ro- mance vai erguendo a hist�ria pessoal de C�ndido. Para mim, � um processo mais instintivo da escrita do que um planejamento racional. Mas � um instinto j� educado pela experi�ncia, � claro.
Quais sensa��es e discuss�es o cinema � capaz de proporcionar e que voc� tentou incorporar ao novo livro?
O livro inteiro, o seu tempo cronol�gico, por assim dizer, se passa em praticamente meia hora, sempre na perspectiva solit�ria do personagem C�ndido, num momento de aguda crise pessoal por uma fratura amorosa. Neste caminho de “juntar os cacos” da mem�ria, o ro- mance vai erguendo a hist�ria pessoal de C�ndido. Para mim, � um processo mais instintivo da escrita do que um planejamento racional. Mas � um instinto j� educado pela experi�ncia, � claro.
Quais sensa��es e discuss�es o cinema � capaz de proporcionar e que voc� tentou incorporar ao novo livro?
O cinema, que � a mais impressionante “r�plica do mundo” que se inventou, tem uma presen�a avassaladora na vida das pessoas, em praticamente todos os aspectos – culturais, emocionais, intelectuais, sexuais, ideol�gicos, est�ticos, tudo. De certa forma, a literatura, em particular nas formas romanescas e narrativas, tamb�m teve historicamente este papel de “duplo” da realidade. O que impressiona no cinema � a ilus�o de pura realidade que a imagem cria pela for�a da sua exatid�o gr�fica. A chamada realidade s�o milh�es de fragmentos, e cada obra de arte monta o quebra-cabe�as de um jeito pr�prio.
Bem, voltando � pergunta: sinto que o cinema influenciou meu olhar liter�rio como t�cnica de recorte (eu s� consigo escrever a partir do que eu vejo; todo livro que escrevo come�a por uma imagem). Mas tem um outro aspecto, o tem�tico: no livro, o cinema entrou como um tema central do argumento: o perso- nagem � um pirateiro de internet, um “nerd” obsessivo que abastece sua m�e de filmes, e quase sempre filmes B, antigos, esquecidos.
Assim, fala-se muito de cinema no livro, mas numa abordagem comum, cotidiana, como a de todo mundo. Para a m�e de C�ndido, por exemplo, um filme n�o � um objeto est�tico a merecer considera��es te�ricas, mas apenas um divertimento instrutivo, uma fonte exemplar de avalia��o moral do comportamento das pessoas retrata- das. Milh�es de pessoas veem cinema assim.
Como a conjuntura pol�tica se insere na intimidade de seus personagens?
Se a narrativa tem uma pegada de base realista – tempo, espa�o, refer�ncias hist�ricas concretas –, inevitavelmente o entorno pol�tico, ou pelo menos sua sombra, acaba entrando na cabe�a dos personagens em um momento ou outro. Vai depender do foco da narra��o. Esse aspecto n�o era comum nos meus romances dos anos 1980 e 1990, embora aparecesse incidentalmente em alguns deles, como Uma noite em Curitiba ou O fantasma da inf�ncia.
Mas de uns anos pra c� – eu j� sou outra pessoa, o pa�s tamb�m mudou e o mundo � outro –, a pol�tica come�ou a entrar mais fortemente. N�o como tema, mas como pano de fundo. �s vezes, o personagem exige. Em A tirania do amor, por exemplo, como tratar um economista brilhante do mercado financeiro de ponta de S�o Paulo sem consi- derar seu imagin�rio pol�tico? Mesmo que voc� n�o queira, ele vai aparecer. No caso de A tens�o superficial do tempo, o personagem central � o tipo de pessoa que a minha gera��o chamaria de “alienado politicamente”.
Mas � um professor que convive com professores, num ambiente em que s� se fala de pol�tica, e, pior, em 2019, em pleno bolsonarismo. Al�m disso, ele se envolve de forma fulminante com a mulher de um procurador da Rep�blica; para onde quer que ele olhe ou sinta, a ang�stia pol�tica estar� presente. At� a m�e dele, a ve- lhinha que gosta de filmes, � vi�va de militar – imposs�vel o governo n�o entrar na conversa.
� arriscado fazer literatura sobre e no calor da hora? Ou os escrito-res brasileiros fazem pouco isso? Poderia citar alguns exemplos, nacionais ou internacionais, desta ou de outras �pocas, que lhe agradam?
Mas de uns anos pra c� – eu j� sou outra pessoa, o pa�s tamb�m mudou e o mundo � outro –, a pol�tica come�ou a entrar mais fortemente. N�o como tema, mas como pano de fundo. �s vezes, o personagem exige. Em A tirania do amor, por exemplo, como tratar um economista brilhante do mercado financeiro de ponta de S�o Paulo sem consi- derar seu imagin�rio pol�tico? Mesmo que voc� n�o queira, ele vai aparecer. No caso de A tens�o superficial do tempo, o personagem central � o tipo de pessoa que a minha gera��o chamaria de “alienado politicamente”.
Mas � um professor que convive com professores, num ambiente em que s� se fala de pol�tica, e, pior, em 2019, em pleno bolsonarismo. Al�m disso, ele se envolve de forma fulminante com a mulher de um procurador da Rep�blica; para onde quer que ele olhe ou sinta, a ang�stia pol�tica estar� presente. At� a m�e dele, a ve- lhinha que gosta de filmes, � vi�va de militar – imposs�vel o governo n�o entrar na conversa.
� arriscado fazer literatura sobre e no calor da hora? Ou os escrito-res brasileiros fazem pouco isso? Poderia citar alguns exemplos, nacionais ou internacionais, desta ou de outras �pocas, que lhe agradam?
� um risco que n�o me preocupa, porque meu objeto de narra��o sempre s�o as pessoas – o mo- mento pol�tico, quando aparece, � mero pano de fundo. � preciso separar literatura de panfleto pol�tico – que, ali�s, � um g�nero bastante espec�fico; a sua vida curta � o seu pr�prio DNA. O panfleto � escrito n�o sobre um momento, mas para um momento. Passado o momento, perde o sentido.
Mas a boa prosa liter�ria de fic��o, desde a sua constitui��o mais cl�ssica, sempre respirou o “calor da hora”, direta ou indiretamente. O romance, como g�- nero, sempre se alimenta deste presente vivo. Leiam-se os cl�ssicos do s�culo 19, por exemplo, Dickens, Stendhal, George Eliot, Flaubert, Zola, os russos todos – tudo que acontecia em torno reverberava naquelas p�ginas. Mesmo modernamente, a fic��o nunca perdeu este v�nculo com o instante presente. H� momentos hist�ricos em que esse tra�o � mais presente; em outros, menos.
Para a minha gera��o, romancistas como Carlos Heitor Cony e Antonio Callado, para citar dois exemplos bem n�tidos, n�o temiam as refer�ncias concretas do seu tempo. Dos anos 1980 em diante, esse contato perdeu alguma presen�a entre n�s, ou mudou de foco, mas de uns anos para c� parece que est� voltando. Na prosa de l�ngua inglesa – considerem-se Philip Roth e Ian McEwan – o “calor da hora” frequentemente se transforma em tema romanesco. Na Fran�a, pense em escritores co- mo Emmanuel Carr�re e Michel Houellebecq.
Qual a moral da literatura num pa�s de pessoas armadas at� os dentes na guerra ideol�gica?
Mas a boa prosa liter�ria de fic��o, desde a sua constitui��o mais cl�ssica, sempre respirou o “calor da hora”, direta ou indiretamente. O romance, como g�- nero, sempre se alimenta deste presente vivo. Leiam-se os cl�ssicos do s�culo 19, por exemplo, Dickens, Stendhal, George Eliot, Flaubert, Zola, os russos todos – tudo que acontecia em torno reverberava naquelas p�ginas. Mesmo modernamente, a fic��o nunca perdeu este v�nculo com o instante presente. H� momentos hist�ricos em que esse tra�o � mais presente; em outros, menos.
Para a minha gera��o, romancistas como Carlos Heitor Cony e Antonio Callado, para citar dois exemplos bem n�tidos, n�o temiam as refer�ncias concretas do seu tempo. Dos anos 1980 em diante, esse contato perdeu alguma presen�a entre n�s, ou mudou de foco, mas de uns anos para c� parece que est� voltando. Na prosa de l�ngua inglesa – considerem-se Philip Roth e Ian McEwan – o “calor da hora” frequentemente se transforma em tema romanesco. Na Fran�a, pense em escritores co- mo Emmanuel Carr�re e Michel Houellebecq.
Qual a moral da literatura num pa�s de pessoas armadas at� os dentes na guerra ideol�gica?
A literatura � uma reserva preciosa de sensibilidade da linguagem. No momento em que as palavras s�o massacradas impie- dosamente pela estupidez pol�tica, como agora, a literatura preserva todo o infinito potencial da linguagem, as sutilezas da percep��o da inescap�vel vida em comum. Um dos tra�os da sensibilidade liter�ria � manter permanentemente o ouvido atento ao mundo dos outros: s�o sempre os outros que povoam os bons livros, mesmo quando escrevemos sobre n�s mesmos.
A Rep�blica de Curitiba � uma verdade ou � uma fic��o? Como essa “rep�blica”, notabilizada nacio- nalmente pela Lava-Jato, se inse- riu em seu novo livro?
A Rep�blica de Curitiba � uma verdade ou � uma fic��o? Como essa “rep�blica”, notabilizada nacio- nalmente pela Lava-Jato, se inse- riu em seu novo livro?
A “Rep�blica de Curitiba” �, antes de tudo, uma express�o engra�ada – a ideia infantil de algo encastelado, resistente ao resto do mundo, como a aldeia de Asterix. Mas n�o veio do nada. Uma an�lise sociol�gica talvez observe a conjumin�ncia acidental de um processo jur�dico voluntarista realmente in�dito e surpreendente sobre aspectos da corrup��o pol�tica brasileira, com uma cidade bastante conservadora, que passou a ver, nesse processo puramente jur�dico-legal, uma bandeira pol�tica.
O que � uma combina��o quase sempre mortal. O Brasil gosta de admirar Curitiba como a cidade imagin�ria de algum sonho eu- ropeu, a fantasia de um Brasil sem Brasil. No meu romance, o v�nculo � apenas acidental – a mulher por quem C�ndido se apaixona � casada com um procurador da Rep�blica em crise por ter de se decidir se aceita ou n�o um cargo em Bras�lia.
O que � uma combina��o quase sempre mortal. O Brasil gosta de admirar Curitiba como a cidade imagin�ria de algum sonho eu- ropeu, a fantasia de um Brasil sem Brasil. No meu romance, o v�nculo � apenas acidental – a mulher por quem C�ndido se apaixona � casada com um procurador da Rep�blica em crise por ter de se decidir se aceita ou n�o um cargo em Bras�lia.
Quais devem ser os compromissos de um escritor que vive em um pa�s gigante, mas de poucos leitores?
Escritor tem de escrever. Ponto. Sinto que estamos entrando numa era perigosa de evangelismo liter�rio. Se o escritor n�o se preserva, vira pastor de almas.