O mundo em metamorfose, na palavra de intelectuais, professores e ativistas
Ciclo de palestras virtuais organizado pelas institui��es do Circuito Cultural Liberdade re�ne brasileiros para discutir as transforma��es provocadas pela pandemia
postado em 10/07/2020 04:00 / atualizado em 10/07/2020 08:22
Mundos paralelos, que se distanciam. Ao mesmo tempo em que a ci�ncia e a tecnologia empurram a intelig�ncia artificial para avan�os incr�veis, alguns ainda inimagin�veis; aprofunda-se a desigualdade, a exclus�o, a pobreza, dimens�o em que est� afundada a maior parte da popula��o global. Eis o paradoxo.
“Com esse futuro a gente precisa chorar. Que futuro � esse? Pra quem � esse futuro?”, indaga Grazi Mendes, professora, diretora de uma empresa multinacional de tecnologia e ativista pelas causas da diversidade e inclus�o, em refer�ncia ao aprofundamento de desigualdades sociais com a pandemia e aos jovens estudantes de periferia, que est�o sem acesso ao conte�do escolar porque n�o t�m internet, nem equipamentos. “Como podemos criar realidades e futuros no plural para de fato, utilizarmos a tecnologia com o potencial que ela tem, para trazer mais pessoas juntas e n�o continuar ampliando esses abismos?”, ela pergunta.
Eduardo da Motta e Albuquerque, professor titular do Departamento de Ci�ncias Econ�micas e do Cedeplar da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), assim resume a natureza do dilema a ser enfrentado pela nossa civiliza��o depois da pandemia: “Vamos ser um n�cleo de avan�o cient�fico e tecnol�gico num mar de precariedade? Ou teremos uma dissemina��o inclusiva do potencial criador e humanizador das novas tecnologias, que vai abarcando parcelas crescentes da humanidade?”.
S�o tantas perguntas, que em tempos de inflex�o na forma de trabalhar e agir a Casa Fiat de Cultura, o Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB, o Memorial Minas Gerais Vale e MM Gerdau – Museu das Minas e do Metal, integrantes do Circuito Liberdade, promovem, pela primeira vez em curadoria colaborativa, o webin�rio Conversas sobre perguntas com pensadores, intelectuais, professores e ativistas brasileiros.
Inicia-se com o l�der ind�gena Ailton Krenak, neste 14 de julho, estendendo-se at� 18 de agosto, todas as ter�as-feiras, �s 17h, em palestras transmitidas pelos canais do YouTube dos espa�os culturais. Os expositores apresentar�o respostas, ideias e mais perguntas. Eduardo e Grazi, palestrantes sobre Outras economias – Intelig�ncia artificial, modelos e futuro do trabalho, falar�o em 28 de julho.
A iniciativa – a primeira do g�nero reunindo em coopera��o empresas com marcas e posicionamentos distintos no mercado, – busca construir um conte�do provocativo, com elementos para reflex�es sobre as mudan�as reservadas a cada um e � sociedade, depois do colapso da vida cotidiana, explica Ana Vilela, gestora da Casa Fiat, uma das idealizadoras do evento.
Programa��o confirmada
» As pot�ncias do afeto, Ailton Krenak (14/7), YouTube Casa Fiat de Cultura
» As faces do futuro: mudan�as socioculturais, criatividade e inova��o, Lala Deheinzelin (21/7), YouTube MM Gerdau
» Outras economias – intelig�ncia artificial, modelos e futuro do trabalho, Eduardo da Motta e Albuquerque e Grazi Mendes (28/7), YouTube MM Gerdau
» Os novos desafios do eu – Psican�lise e vida p�s-pandemia, Christian Dunker (4/8), YouTube Memorial Minas Gerais Vale
» Narrativas para novo(s) mundo(s) – Os lugares da cultura, Concei��o Evaristo e J�lia Rebou�as (11/8), YouTube Memorial Minas Gerais Vale
servi�o
» Conversas sobre perguntas
» Quando: Entre 14/7 e 18/8, ter�as-feiras, �s 17h
» Onde: Canais do YouTube dos espa�os culturais Casa Fiat de Cultura, Centro Cultural Banco do Brasil, Memorial Minas Gerais Vale e MM Gerdau
Eduardo da Motta e Albuquerque
professor titular do Departamento de Ci�ncias Econ�micas e do Cedeplar da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisador das �reas de economia da ci�ncia e tecnologia
‘‘Estamos num momento onde nunca precisamos tanto e nunca tivemos tanto progresso tecnol�gico e cient�fico’’
Algumas pandemias representaram, ao longo da hist�ria, pontos de inflex�o nos sistemas pol�ticos. O que esperar desta pandemia que o mundo enfrenta?
As grandes pandemias na hist�ria t�m correla��o profunda com as condi��es do trabalho e as transi��es. Houve uma pandemia entre 541 e 750 d.C., que est� associada ao fim da escravid�o enquanto sistema econ�mico, pelo menos na It�lia e em regi�es da Espanha, porque mudou a rela��o de trabalho. Depois teve a peste negra, de 1347 a 1352, que est� associada ao fim da servid�o, o que ocorreu com o colapso do feudalismo.
A pandemia que vivemos hoje ainda deixa muitas interroga��es n�o respondidas. Estudando a influenza de 1918, aquele momento que se misturou com a Primeira Guerra Mundial, foram pelo menos tr�s ondas da pandemia at� parar. Neste momento, n�s n�o sabemos onde estamos. Podemos estar no meio e ter outras ondas. Mas olhando para o que � o capitalismo global, n�o vejo perspectiva de ruir neste momento. O que tem, sim, � a possibilidade de ter mudan�as profundas. O mundo do trabalho vai ser afetado porque o desemprego j� era alto no planeta antes da pandemia. Neste momento, a pandemia est� acelerando a digitaliza��o da economia.
E, nesse sentido, a intelig�ncia artificial est� sendo estimulada: agora � empurrada para maior velocidade. Certamente, devemos imaginar que v�m mudan�as. Tais mudan�as inclusive v�o estar associadas a importantes inflex�es da geopol�tica global. Olhar para a China � olhar para um pa�s que se sai muito bem nesta entrada do mundo digital. Ao considerar os dados do desemprego global e da precariza��o do trabalho, podemos supor que, depois da pandemia, nos aguarda um retorno a novas formas de escravid�o?
Qual � o dilema que vivemos? Estamos num momento onde nunca precisamos tanto e nunca tivemos tanto progresso tecnol�gico e cient�fico. Nunca o mundo produziu tantos artigos cient�ficos, nunca produziu tantas patentes, nunca teve tanta gente empregada em ci�ncia e em tecnologia. Ao mesmo tempo em que coisas sofisticadas, como a intelig�ncia artificial, avan�am, tudo est� surgindo ao lado de uma tremenda precariza��o.
Abra o relat�rio da Organiza��o Internacional do Trabalho (OIT) de 2018 e os dados s�o espantosos: primeiro temos o desemprego, segundo temos o trabalho vulner�vel, depois temos o trabalho prec�rio. No relat�rio da OIT de 2019, relativo aos dados de 2018, t�nhamos no mundo, no conjunto dos 5,7 bilh�es em idade de trabalhar, cerca de 3,3 bilh�es de trabalhadores empregados no planeta. Desses empregados, 61% eram trabalhadores informais; apenas 39% eram trabalhadores formais. Acho que essa associa��o entre novas tecnologias e precariza��o � uma das possibilidades. E negativa.
Cada progresso tecnol�gico em geral se associa ao desemprego. Mas n�o � a �nica possibilidade, porque cada m�quina nova poderia, ao inv�s de desempregar, reduzir a jornada, colocar as pessoas para estudar. Com mais estudo, mais capacita��o, a produtividade cresceria. Ent�o, h� alternativas de organiza��o. E � a sociedade que define isso. Ent�o, vamos ser um n�cleo de avan�o cient�fico e tecnol�gico num mar de precariedade?
Ou teremos uma dissemina��o inclusiva do potencial criador e humanizador das novas tecnologias, que vai abarcando parcelas crescentes da humanidade? Esse � o dilema. Eu vejo a ci�ncia e tecnologia para isso, eliminar trabalhos que colocam a vida humana em risco, que s�o para ser feitos por m�quinas e n�o por humanos.
A que momentos de nossa hist�ria econ�mica recente esta pandemia pode ser comparada?
Crise � momento de transforma��o estrutural do sistema capitalista. Este � um sistema que tem flexibilidade, uma capacidade de adapta��o tremenda. A crise de 1929 provocou o New Deal nos Estados Unidos, e depois um conjunto de mudan�as decorrentes do quadro de transi��o hegem�nica que culminou com o fim da Segunda Guerra Mundial, mudando o planeta completamente. Estamos vivendo algo similar. Possivelmente, tem espa�o para ter transforma��es estruturais importantes, que a pandemia vai for�ar.
Tem muita gente falando em Plano Marshall que os Estados Unidos implementaram na Segunda Guerra Mundial para recompor a economia. Mas esse plano foi depois que a guerra acabou. Antes teve o Projeto Manhattan, um tremendo investimento p�blico para gerar uma arma at�mica que for�ou o fim da guerra. O mundo precisa agora de um Projeto Manhattan, mas para gerar a vacina, abrindo assim a fase da p�s-pandemia. Para isso, vamos precisar ampliar o grau de colabora��o internacional, institui��es de sa�de internacionais, isso pode trazer um tipo de mudan�a institucional de um planeta mais cooperativo.
N�o sei se a crise de 1929 se relacionou com a montagem de sistemas de bem-estar social mais ou menos limitados em espa�os nacionais. Ser� que esta vai nos trazer elementos internacionais no sistema de bem-estar social? Por que n�o? Crise, como est� tudo questionado, chacoalhado, h� possibilidade de elementos alternativos e que v�o contra a deteriora��o da desigualdade. Crise � momento de transforma��o global, estrutural, n�o temos nem no��o de onde est� o fundo do po�o, precisamos de plano Manhattan internacional para gerar vacina global e depois coisas mais ofensivas do que o Plano Marshall para recompor a din�mica global. � uma possibilidade. Mas nada est� definido.
Grazi Mendes
professora, diretora de uma empresa multinacional de tecnologia e ativista pelas causas da diversidade e inclus�o
‘‘A pandemia veio e produziu uma lupa, e evidenciou no
contexto brasileiro uma s�rie de fragilidades que temos’’
Que tipo de desafios a pandemia trouxe para os modelos de trabalho?
Antes da pandemia j� discut�amos um futuro do trabalho que exclu�a muita gente. J� discut�amos os impactos da utiliza��o e digitaliza��o de uma s�rie de profiss�es e como isso j� nos colocava em rela��o ao desemprego e �s ocupa��es e � sa�da de uma s�rie de pessoas do mercado de trabalho. A pandemia veio e produziu uma lupa, e evidenciou no contexto brasileiro uma s�rie de fragilidades que temos.
N�o s� em rela��o � informalidade, mas � invisibilidade de milh�es de pessoas sem acesso � tecnologia. O abismo em rela��o �s quest�es de educa��o que estamos enfrentando agora, que est�o sendo desafiadas, e h� uma parte significativa da popula��o sem aula h� quatro meses. A pandemia joga na nossa cara o atraso em rela��o ao acesso � tecnologia e o desenvolvimento de habilidades de uma parte significativa da popula��o.
Como lidar com o aprofundamento da desigualdade no �mbito educacional na p�s-pandemia?
O Brasil sempre foi pa�s muito desigual e neste momento isso est� muito evidenciado. Estamos trabalhando junto da campanha para o adiamento do Enem, e temos realidades extremamente distintas, com pessoas que n�o t�m um dispositivo para estudar. A quest�o n�o � s� apenas o acesso � internet. Temos um ter�o da popula��o sem acesso � internet, o que cria uma s�rie de barreiras ao conte�do, ao desenvolvimento de uma s�rie de habilidades, que � o letramento digital.
Mas estamos falando sobre um agravamento de outras quest�es. Sou cofundadora de um projeto no Morro do Papagaio, que � exatamente preparat�rio para o Enem. E ao conversar com as pessoas, mesmo a gente pagando a internet, elas n�o t�m dispositivo para fazer esse acesso, estudar; n�o t�m um notebook; as condi��es que t�m em casa, sem espa�o para reservar ao local de estudo, o que dificulta na aten��o e na aprendizagem. Isso faz com que a barreira seja ainda maior.
Ent�o, s�o v�rias camadas que neste momento de pandemia est�o evidenciadas, provocando esse distanciamento, esse abismo ainda maior entre quem tem acesso ao ensino n�o presencial e quem n�o tem. O abismo entre diferentes mundos se amplia neste momento. Essa � d�vida que vamos carregar por muito tempo, pois � processo de excluir ainda mais quem j� estava exclu�do dessas conversas, desse futuro tecnol�gico que v�nhamos construindo.
Face a essa exclus�o que se aprofunda, e pensando tamb�m nas mortes violentas que impactam muito mais as periferias, pessoas pretas e pobres, o Brasil pode dispensar tamanho potencial criativo humano?
Esse � um aspecto central: o desperd�cio do potencial criativo e humano que est� presente e completamente abandonado, principalmente nas periferias. Jovens, meninos e meninas, na luta pela sobreviv�ncia, no contexto de muita falta, que v�m encontrando solu��es, v�m encontrando caminho para resolver problemas complexos. E essas s�o habilidades extremamente importantes para o contexto que temos. Esses grupos s�o totalmente invis�veis e desprovidos de qualquer olhar nessa perspectiva de constru��o de um projeto de pa�s.
� um projeto que joga na rua, que perde, mata e violenta esse potencial criativo que temos e est� exclu�do do acesso de oportunidades. Sabemos o que acontece na vida de uma pessoa quando tem acessos e oportunidades, o que ela pode se tornar. Falo de minha pr�pria hist�ria. Sou negra, de periferia, e filha de empregada dom�stica. Nesses espa�os voc� tem a redu��o do sonho, onde as pessoas se mant�m em profiss�es heredit�rias: a filha da empregada � treinada para ser a empregada da filha da patroa.
E � um desperd�cio quando falamos em ampliar o acesso � educa��o, ampliar o acesso principalmente � universidade, que deveriam ser ferramentas para a redu��o de desigualdades, isso precisa estar na pauta e numa pauta mais ampla. Eu tive 0,4% de chance de ter a hist�ria que tenho e de hoje ocupar papel de l�der numa empresa global de tecnologia. E a pergunta �: por que t�o poucas?. Por que aproveitamos t�o pouco esse potencial? Sem intencionalidade n�o vamos trabalhar com essas alavancas que podem aproveitar o potencial criativo que est� completamente desperdi�ado.
Intelig�ncia artificial e futuro do trabalho: h� espa�o para essa discuss�o neste contexto de mundos paralelos que n�o se cruzam?. De quantos Brasis estamos falando?
Essas s�o as perguntas e precisamos colocar o futuro no plural, j� que o futuro n�o existe, o futuro a gente cria, podemos nos mobilizar para criar realidades que v�o criar futuros mais plurais e mais inclusivos e, consequentemente, mais interessantes e ricos em termos de pot�ncia. Essa quest�o � central. Estamos discutindo uma intelig�ncia artificial, mas precisamos colocar nesta pauta as burrices humanas, quais s�o as burrices humanas que est�o escancaradas na pandemia e que t�m a ver com isso.
Um projeto de futuro para poucas pessoas. Um futuro que exclui, que amplia a desigualdade, e se o futuro que estamos construindo continua fazendo com que 70% das fam�lias mais pobres do pa�s n�o tenham acesso b�sico � internet, e que isso limita e impossibilita a entrada numa universidade, o que muda hist�rias e gera��es; esse futuro n�o deveria estar sendo para n�s. Se o futuro tecnol�gico que estamos construindo, se a intelig�ncia artificial coloca em condi��es prec�rias e subumanas de trabalho, como temos assistido agora, e como estamos nos dando conta de que por detr�s dos aplicativos de entrega h� pessoas jogadas sem o m�nimo, sem direitos, sem poder ter seguran�a, tendo de optar entre se expor ao v�rus e garantir o seu sustento b�sico.
Com esse futuro a gente precisa de chorar. Que futuro � esse? Pra quem � esse futuro? Quem � que ganha com esse futuro? Achei muito interessante a proposi��o de conversas sobre perguntas e quais perguntas podemos fazer neste momento para ampliar nossa consci�ncia sobre que futuro � esse que estamos construindo e como podemos criar realidades e futuros no plural para, de fato, utilizarmos a tecnologia com o potencial que ela tem, mas para trazer mais pessoas juntas e n�o continuar ampliando esses abismos.
Essa discuss�o precisa ser ampla, e precisamos incluir v�rios atores e a sociedade, pois � uma discuss�o complexa e pede chamado coletivo de mudan�as.